Depois de ter respondido aos deputados debaixo de uma crise
de amnésia, Constâncio revela agora uma memória minuciosa a detalhes.
Susana Peralta
14 de Junho de 2019, 5:33
Enquanto esperamos todos pelo regresso do Nuno Garoupa, ao
Jano ou a outro espaço de opinião à altura da qualidade dos seus textos,
passarei a assegurar semanalmente esta coluna. O Jano perde a sua diversidade,
depois de há mais de um ano ter saudavelmente alternado entre um homem e uma
mulher, uma visão de esquerda e outra de direita. Os leitores do PÚBLICO perdem
também o acesso às análises argutas do Nuno Garoupa, que tanta falta fazem a
Portugal, onde escasseiam os espíritos críticos e independentes. Devo à
generosidade do Nuno a partilha do Jano em partes iguais, e portanto também lhe
devo a notoriedade que me permite agora ficar com o espaço semanalmente.
A propósito da escassez de crítica e independência, tivemos
esta semana direito a mais um episódio da trágica novela da banca. Depois de
ter respondido aos deputados da comissão de inquérito debaixo de uma crise de
amnésia, Constâncio escreveu o seu direito de resposta ao PÚBLICO com uma
memória minuciosa a detalhes. Ficámos a saber que viajava amiúde para Frankfurt
e, por isso, não esteve na reunião que deu luz verde ao aumento da posição da
Fundação Berardo no capital do BCP. A verdade é que pouco importa se o
governador estava ou não sentado na reunião. O que interessa é perceber como é
que o governador não se debruça sobre uma questão tão fundamental como uma
tomada de posição acionista no maior banco privado de um país que não tem assim
tantos.
Vamos aos factos. Houve um aumento de posição acionista que
ia ser financiado com capitais próprios e um crédito, mas afinal o capital
próprio evaporou-se e ficou só o crédito. A contrapartida do crédito eram as
próprias ações que iam ser adquiridas. Se basta pedir um empréstimo no valor das
ações a adquirir e oferecer as ditas como contrapartida, eu também vou começar
a comprar bancos. Será que o Banco de Portugal devia aprovar a tomada de
posição de Berardo no capital do BCP, conhecendo as condições do malfadado
crédito que o sr. comendador ia utilizar para se financiar?
Não é preciso uma equipa de analistas financeiros
sofisticados para perceber que as condições do crédito indiciavam que Berardo
não tinha património para comprar bancos. No site do Banco Central Europeu
podemos ler que um dos critérios para a autorização de aquisição de uma posição
qualificada na estrutura acionista de uma instituição financeira é esta: “O
potencial adquirente tem capacidade para financiar a aquisição proposta e
manter uma estrutura financeira sólida num futuro próximo?”
Quando Constâncio nos diz que “há 12 anos não se
descortinavam quaisquer razões para deduzir oposição à idoneidade da Fundação
Berardo para deter entre 5% e 10% do capital do BCP” está a ignorar, ou a
querer que ignoremos, que o facto de Berardo não ter oferecido garantias
patrimoniais à CGD descortinava muita coisa. Constâncio afirma que o Banco de
Portugal não aprova créditos da CGD. Mas a questão não é essa. Se o Banco de
Portugal tivesse emitido um parecer desfavorável à tomada de posição da
Fundação Berardo, o empréstimo à CGD não tinha acontecido, apesar de Constâncio
não aprovar diretamente créditos da CGD.
Esta insustentável leveza de quem toma decisões críticas
sobre o sistema financeiro português contrasta com o peso no bolso dos contribuintes
do dinheiro que o Estado tem injetado na banca. Os números falam por si.
Segundo as estatísticas oficiais da Comissão Europeia, o passivo do Estado
português no sistema financeiro era no final de 2018 de 25 mil milhões de
euros, juntando-se a esta conta quase seis mil milhões de passivos contingentes
(associados a garantias várias dadas pelo Estado ao sistema financeiro). A
intervenção do Estado no sector financeiro contribuiu para o défice em todos os
anos desde 2010, ou seja, desde que a Comissão Europeia começou a recolher esta
informação de forma sistematizada. Em 2018, houve apenas dois países – Portugal
e Chipre – cujas intervenções no sector financeiro aumentaram o défice público.
Mas o maior problema nem é a dimensão ou frequência das
intervenções. É mesmo a falta de transparência do processo e de estudos que
convençam as portuguesas e os portugueses de que todo este dinheiro não foi
utilizado em vão. Nos Estados Unidos, o Troubled Asset Relief Program, lançado
em 2008 no calor da crise financeira, tem direito a uma extensa cobertura no
site do Tesouro Americano, onde qualquer pessoa interessada encontra detalhes
sobre os montantes injetados nos diferentes sectores da economia, acompanhados
de estudos sobre o programa. E até relatórios – sente-se, cara leitora, que
esta vai doer! – mensais acerca da evolução do TARP. Leu bem: a cada 30 dias, o
Tesouro presta contas sobre o dinheiro dos contribuintes. É com este nível de
exigência em mente que temos de avaliar as amnésias de Constâncio e de outros
que foram desfilando pelas comissões de inquérito do nosso descontentamento.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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