João Pedro Ferreira
OPINIÃO
Habitação, o direito constitucional de morar (e de viver)
que está por cumprir
É fundamental que se tenha a coragem de dar um pulo de
gigante e dotar o Estado português da capacidade de intervir de facto na
habitação.
João Pedro Ferreira
21 de Junho de 2019, 3:47
Quando alguém quer saber onde outro habita, em geral pode
perguntar: “onde vives?”. A linguagem do quotidiano evidencia a associação
entre vida e o espaço “casa”, o lugar onde podemos estar com segurança e
privacidade e recuperar de um dia mau ou descansar para ter outro bom, seja
sozinhos ou acompanhados. O local para onde se quer voltar quando se parte para
trabalhar. É também isto viver. E não é privilégio. É um direito básico,
segundo a ONU.
A nossa Constituição também define a habitação como um
direito. Mas, nesta como noutras matérias, as palavras precisavam de fazer
sentido. De ter reflexo. Uma Constituição não pode ser uma obra lírica ou um
texto poético que conta uma história de um país imaginado. Um direito pleno e
absoluto não tem esta concretização “tosca”.
Uma casa é hoje um bem sujeito a preços flutuantes que sobem
e descem especulativamente e geram ganhos aos agiotas dos mercados financeiros.
Ao mesmo tempo, famílias “penhoradas” por 30 ou 40 anos pagam spreads que
alimentam práticas de casino (e outras loucuras dos banqueiros). Praticamente
ninguém foge disto: os que não têm casa própria e alugam; os que tendo se
endividaram brutalmente e vivem ou viveram com a corda na garganta para não
falhar uma prestação; e aqueles que, tendo uma vida mais frágil, assistem a um
Estado que não cumpre a Lei fundamental. Nestes três grupos estão mais de 90%
da população portuguesa.
São estes 90% que precisavam de outra resposta. Portugal é
dos países da União Europeia em que o preço da habitação mais subiu desde 2015.
Mais de 33%. Na UE a subida foi de 15%. Que direito é este, que pesa um terço
do orçamento das famílias e aumenta de preço mais de 33% em apenas quatro anos?
Difícil chamar direito. No mercado de arrendamento, em Lisboa, segundo o INE, o
valor mediano dos novos contratos de renda subiu 16% num ano. Em Portugal, 9%.
Dezasseis e 9% de custo a mais para quem arrenda casa. Temos o direito de lhe
chamar direito?
O Governo não consegue esconder esta realidade.
Recentemente, foram conhecidos os detalhes do “Programa renda acessível” onde o
Governo opta por beneficiar proprietários reduzindo os impostos pagos desde que
providenciem “rendas acessíveis”. As aspas fazem sentido. Um T1 em Lisboa é
considerado acessível até 900€ e um T3 até 1375€. Em Cascais, Oeiras e Porto,
um T1 é acessível até 775€ e um T3 até 1200€. Pelas regras, o peso da habitação
não pode ser mais que 35% do orçamento do casal. Como exemplo, em Lisboa, um
casal com um rendimento médio bruto de 900 euros por mês cada um, 21.600€/ano,
tem de arranjar uma casa que custe no máximo 630 euros/mês. Fomos a um site de
uma famosa imobiliária. Seleccionámos a opção de “arrendar” e o tipo de imóvel
“apartamento”. 88 opções. Colocámos o limite máximo de 630 euros – zero opções.
Zero. Tentámos outra imobiliária. 570 opções. Mais promissor. 630€ de restrição
– uma opção. Apartamento de 28 metros quadrados. Só esta. Como é que um
programa que proporciona “zero/uma” opção para um concelho como Lisboa está a
contribuir para consagrar um direito?
Na era em que nos comovemos e esquecemos a uma velocidade
relâmpago, a habitação é o garrote que surge no momento do pagamento do
empréstimo ao banco ou da renda, mas a vida segue rapidamente. Até ao mês
seguinte. Outra vez. E outra vez. No entretanto, nem reparamos que
provavelmente nos emocionámos com a idosa que foi expulsa de sua casa por uma
renda que não podia pagar. 82 anos, Nazaré, despejada em Janeiro, e com uma
reforma de 475 euros. Em Fevereiro é notícia que, em cinco anos, 238 famílias
foram despejadas no Porto. Em Março, as Associações de Moradores pedem a
eliminação dos juros de mora de 50% dos valores de rendas em atraso e ficamos a
saber que houve “980 despejos em 2018 em Portugal”. Em Abril, conhecemos a Rita
Vieira, que com duas filhas e a ganhar o salário mínimo ficou excluída do
concurso para uma casa municipal em Lisboa. Em Maio, um homem, que teve
recentemente um enfarte, acompanhado da sua esposa, portadora de doença de
Crohn, e os seus dois filhos são despejados de uma casa da Câmara de Lisboa que
ocupavam “ilegalmente”. Em Junho, a Câmara Municipal da Amadora avança com as
demolições na Quinta da Lage e deixa famílias inteiras desamparadas e sem
solução. É, então, legítima a pergunta: “Que espécie de direito é este?”. A uns
recusa casa e a outros obriga a apertar o cinto sistematicamente.
Como é dito recentemente na obra A nova questão da habitação
em Portugal, coordenada por Ana Cordeiro Santos, “a provisão de habitação em
Portugal não pode ser cabalmente compreendida sem se considerar a articulação
crescente com a finança”. Temos esta falsa sensação que o direito à habitação
existe porque usufruímos de uma casa. Mas, se numa altura de crise queremos
vender, a casa parece que não vale nada. Em contrapartida, se numa altura de
crescimento económico queremos comprar, parece que nos levam o couro e o
cabelo. O arrendamento é o que é, seja o dinheiro curto ou não para chegar ao
fim do mês. Sendo inegável a melhoria do parque habitacional em Portugal ao
longo das últimas décadas, parece que este “direito” tem funcionado bem melhor
para os bancos, proprietários e especuladores.
De acordo com a Iniciativa Europeia para a Habitação,
Portugal está no grupo de países da Europa onde a percentagem de casas que são
propriedade do Estado é residual (3,3% apenas). Na Holanda, 32% do parque
habitacional é propriedade pública. Na Dinamarca e na Suécia este valor está
também acima de 20%. França com 17% e a Alemanha com 6% estão também acima de
Portugal. Ou seja, um Estado demissionário, num país dual. Enquanto nos últimos
Censos mais de 450 mil fogos estavam vagos e fora do mercado, oito mil famílias
viviam em alojamentos feitos de madeira, barracas, improvisados ou móveis. E
468 mil viviam em casas consideradas sobrelotadas. Que direito é este? E que
Estado é este que falhou na prestação deste direito?
Discute-se agora uma nova Lei de Bases da Habitação. É
fundamental que se tenha a coragem de dar um pulo de gigante e dotar o Estado
português da capacidade de intervir de facto na habitação. Isso não passa
apenas por reforçar uma visão de um Estado subsidiário, que providencia casas
de má qualidade a quem não pode pagar. O avanço civilizacional está em defender
um Estado interveniente, capaz de ajudar eficazmente os mais fragilizados, mas
também (e acima de tudo) de controlar os fenómenos especulativos assumindo a
habitação como aquilo que ela é para mais de 90% dos portugueses... O lugar
onde se vive.
Investigador na área do planeamento regional e urbano na
Universidade de Rutgers, Nova Jersey, EUA
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