quinta-feira, 20 de junho de 2019

Ainda há dúvidas sobre os riscos do SNS? / Grávidas sem urgências no Verão. Quatro maiores hospitais de Lisboa fecham serviços por falta de médicos



EDITORIAL
Ainda há dúvidas sobre os riscos do SNS?

O SNS tem de continuar a ser um dos grandes temas do debate dos próximos meses. O que está em causa já não é melhorá-lo. Se o país conseguir conservar o seu actual nível de desempenho será um grande feito

Manuel Carvalho
20 de Junho de 2019, 6:23

O debate sobre o estado do Serviço Nacional de Saúde vai longo, deu lugar a diversas armas de arremesso politico e transformou-se num palco para troca de acusações entre o Governo e a oposição. Chegou a hora de o retirar da esfera dos naturais interesses dos partidos e de circunscrever os dogmas ideológicos que o situam num combate entre a esquerda e a direita. A realidade exposta esta quinta-feira pelo PÚBLICO obriga a encarar de frente realidade: o estado do SNS é um dos principais problemas do país por estes dias. E é também um dos mais difíceis de resolver. É um problema que o Governo carrega, mas é também um problema do Estado e de toda a sociedade.

Custa a acreditar no cenário que a gravíssima falta de anestesistas e obstetras vai criar a milhares de mulheres grávidas que habitam em Lisboa. A possibilidade de os serviços de urgência obstétrica encerrarem durante o Verão é inadmissível num país europeu governado por uma coligação informal de partidos que coloca a qualidade dos serviços públicos na primeira linha das suas prioridades. A antecipação da falta de cuidados, especialmente consultas de rotina, de tempos excessivos de espera, de mudanças forçadas de hospital onde as mulheres são atendidas bastam por si só para se exigirem explicações sobre como foi possível chegarmos até aqui. E, principalmente, sobre o que pode e vai ser feito para evitar que esta ameaça não alastre.

O SNS está doente e não bastam os aumentos nas dotações orçamentais garantidas pelo Governo para que se reestabeleça. Vai ser necessário mais gestão e planeamento de recursos e ainda mais investimento público para travar a sangria de quadros médicos para o sector privado. Quando apenas 61% dos obstetras trabalham no sector público, torna-se obrigatório constatar que o Estado está a ter dificuldades em disputar o mercado de recursos humanos com os privados. Seja pelos salários ou pelas condições de trabalho, os médicos estão a afastar-se dos hospitais abertos a todos os cidadãos para prestarem serviço aos que têm mais recursos para pagar a sua saúde.

No meio deste drama que se vai avolumando, haverá quem tente resolvê-lo assacando culpas aos médicos ou aos privados, reclamando depois a sua asfixia. Não será por aí que se salva o SNS. Nem através de um aumento exponencial de recursos que o país não tem. A solução, como se escreveu, não se encontra num golpe de magia. O SNS tem de continuar a ser um dos grandes temas do debate dos próximos meses. O que está em causa já não é melhorá-lo. Se o país conseguir conservar o seu actual nível de desempenho será um grande feito.

tp.ocilbup@ohlavrac.leunam

 Grávidas sem urgências no Verão. Quatro maiores hospitais de Lisboa fecham serviços por falta de médicos

Maternidade Alfredo da Costa, Hospital de Santa Maria, São Francisco Xavier e Amadora-Sintra vão ter de fechar urgências de obstetrícia. Ministério da Saúde tenta minorar problema e propõe encerramentos rotativos durante mais de dois meses

Rita Ferreira 20 de Junho de 2019, 6:00

A partir da última semana de Julho e até ao final de Setembro, as urgências de obstetrícia de quatro dos maiores hospitais da Grande Lisboa vão estar fechadas num esquema de rotatividade. Esta foi a solução avançada ontem pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) numa reunião com os directores de serviço da Maternidade Alfredo da Costa, Hospital de Santa Maria, Hospital de São Francisco Xavier e Hospital Amadora-Sintra.

“É o completo caos em Lisboa. Não há preparação, não há estratégia e não há soluções”, avança ao PÚBLICO fonte de um destes quatro hospitais. A solução, contudo, não ficou fechada. Porque o cenário pode ser pior.

A falta de obstetras e anestesistas nestes quatro hospitais não é uma novidade e têm sido muitos os alertas por parte dos profissionais de saúde para as dificuldades em assegurar o funcionamento dos blocos de parto e a assistência às grávidas. As férias de Verão vêm agravar o cenário e, perante a iminência do encerramento das urgências de obstetrícia destes quatro hospitais, o Ministério da Saúde, através da ARSLVT, tentou uma solução que tente pelo menos minorar os efeitos da falta de médicos.

Numa reunião que decorreu ontem durante toda a manhã, a ARSLVT propôs aos directores de obstetrícia dos quatro hospitais que seja feita uma escala para que o encerramento das urgências não aconteça em simultâneo.

A proposta que ficou em cima da mesa foi a de dividir as semanas em blocos: um que abarca o fim de semana; outro nas segundas, terças e quartas-feiras e o terceiro quintas e sextas-feiras. Este esquema decorreria entre a última semana de Julho e os meses de Agosto e Setembro. A ser acordada esta solução, significa que durante estes dois meses e uma semana haverá pelo menos um destes quatro hospitais de referência com o serviço de urgência de obstetrícia encerrado ao público.

Para se ter uma ideia, a urgência obstétrica do Hospital de Santa Maria recebe em média, por dia, 80 grávidas, a Maternidade Alfredo da Costa atende uma média de 100 pessoas e no São Francisco Xavier acorrem às urgências de obstetrícia uma média de 70 mulheres por dia. Estas mulheres teriam de ser reencaminhadas para outros hospitais sendo que, como qualquer um destes quatro estabelecimentos de saúde é uma unidade de referência com serviços de neonatologia e de acompanhamento de gravidez de risco, há casos em que o reencaminhamento só pode ser feito para outros hospitais de referência.

Sobre esta matéria, uma das fontes ligadas ao processo que o PÚBLICO ouviu referiu que terá ser assegurado o atendimento a situações de emergência mesmo com a urgência encerrada. “Temos de salvaguardar situações muito complicadas que possam surgir, como uma grávida em trabalho de parto prematuro, por exemplo”, referiu.

Outro dos pontos que terá de ficar definido é a forma como será comunicada a informação aos utentes e de como será feito o encaminhamento das grávidas de uns hospitais para os outros.

Contactada pelo PÚBLICO, fonte oficial da ARSLVT confirmou a realização da reunião e do tema nela abordado, remetendo para mais tarde declarações, uma vez que o assunto não está encerrado.

Situação pode piorar (ainda mais)
Esta foi já a segunda reunião sobre o problema dos serviços de obstetrícia durante o Verão nestes hospitais da Grande Lisboa. Na semana passada a ARS esteve reunida com as administrações dos hospitais e ontem o encontro com os directores de serviço já serviria para afinar soluções mais concretas. Foi aí que surgiu a proposta do encerramento rotativo das urgências dos quatro hospitais.

No entanto, e tal como refere a ARSLVT, nada ficou fechado. Até porque há hospitais, neste grupo de quatro, que se debatem com um problema na especialidade de anestesia. “A anestesia pode vir a complicar ainda mais este cenário”, referiu fonte ligada ao processo. Só na próxima semana deverá haver nova reunião, agora já com os dados dos serviços de anestesia em cima da mesa.

PPP podem pagar mais à hora aos médicos
A falta de obstetras no Serviço Nacional de Saúde tem várias causas, mas a principal é o dinheiro. É porque os privados pagam mais aos médicos contratados e porque pagam mais aos tarefeiros que muitos especialistas saem do SNS e muitos outros não chegam a entrar.
Ao PÚBLICO, o presidente do colégio de obstetrícia da Ordem dos Médicos afirmou na semana passada que dos 1400 obstetras que existem em Portugal, apenas 850 trabalham no Serviço Nacional de Saúde. Os restantes 39% ou estão no sector privado, ou trabalham à tarefa, ou emigraram. No último ano, especifica, dos 45 novos obstetras formados só metade ingressou no SNS.
O preço a que se pode pagar as horas aos médicos tarefeiros também complica a vida do SNS. Se por exemplo a Maternidade Alfredo da Costa, por lei, só pode pagar 26 euros/hora aos obstetras tarefeiros, numa PPPesse limite não existe. O preço a pagar à hora pode ir até aos 39 euros no SNS, mas só no caso de haver serviços em risco ou de hospitais em zonas definidas como “carenciadas”.
As dificuldades de contratação de médicos por restrições orçamentais também têm contribuído para o agravamento da situação. No último concurso lançado pelo Ministério da Saúde foram abertas 27 vagas no total para a área de ginecologia/obstetrícia. São Francisco Xavier e Amadora-Sintra garantiram uma vaga cada, Maternidade Alfredo da Costa duas e o Santa Maria uma vaga de perfil.
Por fim, o envelhecimento: metade dos obstetras tem mais de 55 anos (e por isso dispensados de fazer urgências).

Com Ana Maia

Este é o caso da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), que até conseguiu fazer as escalas de Verão com os obstetras que tem nos seus serviços - cerca de 60, embora nem todos façam urgências. O problema começou quando teve de se garantir a presença de anestesistas nessas mesmas equipas.

Recorde-se que no Natal do ano passado, a MAC tinha apenas um anestesista escalado para o dia 24 e outro para o dia 25, reduzindo os serviços que estava a prestar a situações complicadas e reencaminhando as urgências externas para outros hospitais.

Fonte da maior maternidade do país explicou ao PÚBLICO que o concurso para vagas de anestesia que está aberto prevê a contratação de três destes especialistas para todo o Centro Hospitalar de Lisboa, quando só a MAC precisaria de cinco.

O secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) já tinha referido ao PÚBLICO na semana passada que “na região Sul quase todos os dias são enviadas para os CODU [Centros de Orientação de Doentes Urgentes do INEM] notificações a avisar que não mandem as grávidas” para várias maternidades. No hospital Amadora-Sintra foi accionado o plano de contingência nos dias 1 e 3 deste mês, o que significa que “durante a noite a maternidade esteve encerrada, alegadamente por falta de anestesistas”, segundo o SIM.

No Amadora-Sintra o problema também se prende com a falta de médicos anestesistas.

Restrições vão alastrar-se a outros serviços
E há ainda um outro dado a juntar a esta mistura já de si complexa. Uma das fontes contactadas pelo PÚBLICO explica que estas restrições e esta falta de meios não vai ficar-se pelos serviços de urgência. Porque ao ter de afectar recursos para as equipas de urgência obstétrica, outras valências acabam comprometidas. “Vem tudo atrás. Vamos ter de reduzir o número de cirurgias, reduzir o número de consultas e reduzir a capacidade de internamento.” Acrescenta outra fonte: “A ruptura chegará também às mulheres grávidas que são seguidas nas consultas hospitalares.”

Em relação à MAC, por exemplo, há uma enfermaria com cerca de vinte grávidas de alto risco internadas. E estas mulheres têm de ter equipas em apoio permanente, porque a qualquer altura pode surgir uma situação que passa a urgente à qual é preciso dar resposta.

O problema é que já se está no limite mínimo. “Primeiro reduzimos equipas de cinco para quatro, depois de quatro para três e fomos aguentando, mas agora já não podemos reduzir as equipas para dois médicos.” Na mesma linha vai outra das fontes: “Vamos ter de tomar opções. Porque como é fundamental manter a urgência desviam-se os meios para a urgência e ficam a faltar recursos para cirurgias programadas, que acabam a ir com o cheque para serem feitas no privado.”

Cada equipa de urgência deve ter no mínimo três obstetras e para que uma urgência da dimensão destes hospitais funcione a 100% há que ter asseguradas pelo menos oito equipas. No São Francisco Xavier, por exemplo, há neste momento 14 obstetras e ginecologistas, quando deveria haver pelo menos 24. No Hospital de Santa Maria existem 28 obstetras (uma parte deles internos) e seriam precisos 35 para assegurar sete equipas [aqui já tinha havido uma redução do número de equipas] com dois especialistas e três internos. Na Alfredo da Costa as equipas têm seis obstetras em dias normais e em férias passam a cinco.

“Sempre acreditámos no SNS e agora começamos a ter todos um sentimento pesaroso”, desabafa uma das fontes contactadas pelo PÚBLICO. Esta é uma situação inédita, uma vez que os problemas de falta de especialistas costumavam por vezes levar a encerramentos muito esporádicos, resolvidos até entre hospitais. “Este ano as dificuldades são muito superiores”, refere uma outra fonte ouvida pelo PÚBLICO.

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