EDITORIAL
Ainda há dúvidas sobre os riscos do SNS?
O SNS tem de continuar a ser um dos grandes temas do debate
dos próximos meses. O que está em causa já não é melhorá-lo. Se o país
conseguir conservar o seu actual nível de desempenho será um grande feito
Manuel Carvalho
20 de Junho de 2019, 6:23
O debate sobre o estado do Serviço Nacional de Saúde vai
longo, deu lugar a diversas armas de arremesso politico e transformou-se num
palco para troca de acusações entre o Governo e a oposição. Chegou a hora de o
retirar da esfera dos naturais interesses dos partidos e de circunscrever os
dogmas ideológicos que o situam num combate entre a esquerda e a direita. A realidade
exposta esta quinta-feira pelo PÚBLICO obriga a encarar de frente realidade: o
estado do SNS é um dos principais problemas do país por estes dias. E é também
um dos mais difíceis de resolver. É um problema que o Governo carrega, mas é
também um problema do Estado e de toda a sociedade.
Custa a acreditar no cenário que a gravíssima falta de
anestesistas e obstetras vai criar a milhares de mulheres grávidas que habitam
em Lisboa. A possibilidade de os serviços de urgência obstétrica encerrarem
durante o Verão é inadmissível num país europeu governado por uma coligação
informal de partidos que coloca a qualidade dos serviços públicos na primeira
linha das suas prioridades. A antecipação da falta de cuidados, especialmente
consultas de rotina, de tempos excessivos de espera, de mudanças forçadas de
hospital onde as mulheres são atendidas bastam por si só para se exigirem
explicações sobre como foi possível chegarmos até aqui. E, principalmente,
sobre o que pode e vai ser feito para evitar que esta ameaça não alastre.
O SNS está doente e não bastam os aumentos nas dotações
orçamentais garantidas pelo Governo para que se reestabeleça. Vai ser
necessário mais gestão e planeamento de recursos e ainda mais investimento
público para travar a sangria de quadros médicos para o sector privado. Quando
apenas 61% dos obstetras trabalham no sector público, torna-se obrigatório
constatar que o Estado está a ter dificuldades em disputar o mercado de
recursos humanos com os privados. Seja pelos salários ou pelas condições de
trabalho, os médicos estão a afastar-se dos hospitais abertos a todos os
cidadãos para prestarem serviço aos que têm mais recursos para pagar a sua
saúde.
No meio deste drama que se vai avolumando, haverá quem tente
resolvê-lo assacando culpas aos médicos ou aos privados, reclamando depois a
sua asfixia. Não será por aí que se salva o SNS. Nem através de um aumento
exponencial de recursos que o país não tem. A solução, como se escreveu, não se
encontra num golpe de magia. O SNS tem de continuar a ser um dos grandes temas
do debate dos próximos meses. O que está em causa já não é melhorá-lo. Se o
país conseguir conservar o seu actual nível de desempenho será um grande feito.
tp.ocilbup@ohlavrac.leunam
Maternidade Alfredo da Costa, Hospital de Santa Maria, São
Francisco Xavier e Amadora-Sintra vão ter de fechar urgências de obstetrícia.
Ministério da Saúde tenta minorar problema e propõe encerramentos rotativos
durante mais de dois meses
Rita Ferreira 20 de Junho de 2019, 6:00
A partir da última semana de Julho e até ao final de
Setembro, as urgências de obstetrícia de quatro dos maiores hospitais da Grande
Lisboa vão estar fechadas num esquema de rotatividade. Esta foi a solução
avançada ontem pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo
(ARSLVT) numa reunião com os directores de serviço da Maternidade Alfredo da
Costa, Hospital de Santa Maria, Hospital de São Francisco Xavier e Hospital
Amadora-Sintra.
“É o completo caos em Lisboa. Não há preparação, não há
estratégia e não há soluções”, avança ao PÚBLICO fonte de um destes quatro
hospitais. A solução, contudo, não ficou fechada. Porque o cenário pode ser
pior.
A falta de obstetras e anestesistas nestes quatro hospitais
não é uma novidade e têm sido muitos os alertas por parte dos profissionais de
saúde para as dificuldades em assegurar o funcionamento dos blocos de parto e a
assistência às grávidas. As férias de Verão vêm agravar o cenário e, perante a
iminência do encerramento das urgências de obstetrícia destes quatro hospitais,
o Ministério da Saúde, através da ARSLVT, tentou uma solução que tente pelo
menos minorar os efeitos da falta de médicos.
Numa reunião que decorreu ontem durante toda a manhã, a
ARSLVT propôs aos directores de obstetrícia dos quatro hospitais que seja feita
uma escala para que o encerramento das urgências não aconteça em simultâneo.
A proposta que ficou em cima da mesa foi a de dividir as
semanas em blocos: um que abarca o fim de semana; outro nas segundas, terças e
quartas-feiras e o terceiro quintas e sextas-feiras. Este esquema decorreria
entre a última semana de Julho e os meses de Agosto e Setembro. A ser acordada
esta solução, significa que durante estes dois meses e uma semana haverá pelo
menos um destes quatro hospitais de referência com o serviço de urgência de
obstetrícia encerrado ao público.
Para se ter uma ideia, a urgência obstétrica do Hospital de
Santa Maria recebe em média, por dia, 80 grávidas, a Maternidade Alfredo da
Costa atende uma média de 100 pessoas e no São Francisco Xavier acorrem às
urgências de obstetrícia uma média de 70 mulheres por dia. Estas mulheres teriam
de ser reencaminhadas para outros hospitais sendo que, como qualquer um destes
quatro estabelecimentos de saúde é uma unidade de referência com serviços de
neonatologia e de acompanhamento de gravidez de risco, há casos em que o
reencaminhamento só pode ser feito para outros hospitais de referência.
Sobre esta matéria, uma das fontes ligadas ao processo que o
PÚBLICO ouviu referiu que terá ser assegurado o atendimento a situações de
emergência mesmo com a urgência encerrada. “Temos de salvaguardar situações
muito complicadas que possam surgir, como uma grávida em trabalho de parto
prematuro, por exemplo”, referiu.
Outro dos pontos que terá de ficar definido é a forma como
será comunicada a informação aos utentes e de como será feito o encaminhamento
das grávidas de uns hospitais para os outros.
Contactada pelo PÚBLICO, fonte oficial da ARSLVT confirmou a
realização da reunião e do tema nela abordado, remetendo para mais tarde
declarações, uma vez que o assunto não está encerrado.
Situação pode piorar (ainda mais)
Esta foi já a segunda reunião sobre o problema dos serviços
de obstetrícia durante o Verão nestes hospitais da Grande Lisboa. Na semana
passada a ARS esteve reunida com as administrações dos hospitais e ontem o
encontro com os directores de serviço já serviria para afinar soluções mais
concretas. Foi aí que surgiu a proposta do encerramento rotativo das urgências
dos quatro hospitais.
No entanto, e tal como refere a ARSLVT, nada ficou fechado.
Até porque há hospitais, neste grupo de quatro, que se debatem com um problema
na especialidade de anestesia. “A anestesia pode vir a complicar ainda mais
este cenário”, referiu fonte ligada ao processo. Só na próxima semana deverá
haver nova reunião, agora já com os dados dos serviços de anestesia em cima da
mesa.
PPP podem pagar mais à hora aos médicos
A falta de obstetras no Serviço Nacional de Saúde tem várias
causas, mas a principal é o dinheiro. É porque os privados pagam mais aos
médicos contratados e porque pagam mais aos tarefeiros que muitos especialistas
saem do SNS e muitos outros não chegam a entrar.
Ao PÚBLICO, o presidente do colégio de obstetrícia da Ordem
dos Médicos afirmou na semana passada que dos 1400 obstetras que existem em
Portugal, apenas 850 trabalham no Serviço Nacional de Saúde. Os restantes 39%
ou estão no sector privado, ou trabalham à tarefa, ou emigraram. No último ano,
especifica, dos 45 novos obstetras formados só metade ingressou no SNS.
O preço a que se pode pagar as horas aos médicos tarefeiros
também complica a vida do SNS. Se por exemplo a Maternidade Alfredo da Costa,
por lei, só pode pagar 26 euros/hora aos obstetras tarefeiros, numa PPPesse
limite não existe. O preço a pagar à hora pode ir até aos 39 euros no SNS, mas
só no caso de haver serviços em risco ou de hospitais em zonas definidas como
“carenciadas”.
As dificuldades de contratação de médicos por restrições
orçamentais também têm contribuído para o agravamento da situação. No último
concurso lançado pelo Ministério da Saúde foram abertas 27 vagas no total para
a área de ginecologia/obstetrícia. São Francisco Xavier e Amadora-Sintra
garantiram uma vaga cada, Maternidade Alfredo da Costa duas e o Santa Maria uma
vaga de perfil.
Por fim, o envelhecimento: metade dos obstetras tem mais de
55 anos (e por isso dispensados de fazer urgências).
Com Ana Maia
Este é o caso da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), que até
conseguiu fazer as escalas de Verão com os obstetras que tem nos seus serviços
- cerca de 60, embora nem todos façam urgências. O problema começou quando teve
de se garantir a presença de anestesistas nessas mesmas equipas.
Recorde-se que no Natal do ano passado, a MAC tinha apenas
um anestesista escalado para o dia 24 e outro para o dia 25, reduzindo os
serviços que estava a prestar a situações complicadas e reencaminhando as
urgências externas para outros hospitais.
Fonte da maior maternidade do país explicou ao PÚBLICO que o
concurso para vagas de anestesia que está aberto prevê a contratação de três
destes especialistas para todo o Centro Hospitalar de Lisboa, quando só a MAC
precisaria de cinco.
O secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos
(SIM) já tinha referido ao PÚBLICO na semana passada que “na região Sul quase
todos os dias são enviadas para os CODU [Centros de Orientação de Doentes
Urgentes do INEM] notificações a avisar que não mandem as grávidas” para várias
maternidades. No hospital Amadora-Sintra foi accionado o plano de contingência
nos dias 1 e 3 deste mês, o que significa que “durante a noite a maternidade
esteve encerrada, alegadamente por falta de anestesistas”, segundo o SIM.
No Amadora-Sintra o problema também se prende com a falta de
médicos anestesistas.
Restrições vão alastrar-se a outros serviços
E há ainda um outro dado a juntar a esta mistura já de si
complexa. Uma das fontes contactadas pelo PÚBLICO explica que estas restrições e
esta falta de meios não vai ficar-se pelos serviços de urgência. Porque ao ter
de afectar recursos para as equipas de urgência obstétrica, outras valências
acabam comprometidas. “Vem tudo atrás. Vamos ter de reduzir o número de
cirurgias, reduzir o número de consultas e reduzir a capacidade de
internamento.” Acrescenta outra fonte: “A ruptura chegará também às mulheres
grávidas que são seguidas nas consultas hospitalares.”
Em relação à MAC, por exemplo, há uma enfermaria com cerca
de vinte grávidas de alto risco internadas. E estas mulheres têm de ter equipas
em apoio permanente, porque a qualquer altura pode surgir uma situação que
passa a urgente à qual é preciso dar resposta.
O problema é que já se está no limite mínimo. “Primeiro
reduzimos equipas de cinco para quatro, depois de quatro para três e fomos
aguentando, mas agora já não podemos reduzir as equipas para dois médicos.” Na
mesma linha vai outra das fontes: “Vamos ter de tomar opções. Porque como é
fundamental manter a urgência desviam-se os meios para a urgência e ficam a
faltar recursos para cirurgias programadas, que acabam a ir com o cheque para
serem feitas no privado.”
Cada equipa de urgência deve ter no mínimo três obstetras e
para que uma urgência da dimensão destes hospitais funcione a 100% há que ter
asseguradas pelo menos oito equipas. No São Francisco Xavier, por exemplo, há
neste momento 14 obstetras e ginecologistas, quando deveria haver pelo menos
24. No Hospital de Santa Maria existem 28 obstetras (uma parte deles internos)
e seriam precisos 35 para assegurar sete equipas [aqui já tinha havido uma
redução do número de equipas] com dois especialistas e três internos. Na
Alfredo da Costa as equipas têm seis obstetras em dias normais e em férias
passam a cinco.
“Sempre acreditámos no SNS e agora começamos a ter todos um
sentimento pesaroso”, desabafa uma das fontes contactadas pelo PÚBLICO. Esta é
uma situação inédita, uma vez que os problemas de falta de especialistas
costumavam por vezes levar a encerramentos muito esporádicos, resolvidos até
entre hospitais. “Este ano as dificuldades são muito superiores”, refere uma
outra fonte ouvida pelo PÚBLICO.
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