domingo, 16 de junho de 2019

Constâncio: "Com as mesmas informações da época, crédito da CGD a Berardo teria hoje o mesmo tratamento"



Constâncio: "Com as mesmas informações da época, crédito da CGD a Berardo teria hoje o mesmo tratamento"

Entrevista DN/TSF a Vítor Constâncio, antigo ministro das Finanças, antigo candidato do PS a primeiro-ministro e por duas vezes governador do Banco de Portugal, além de vice-presidente do BCE durante a crise do euro. Garante que não tinha de autorizar ou deixar de autorizar empréstimo do banco público para compra de ações do BCP, referindo-se à polémica de 2007. E que os poderes do supervisor são hoje os mesmos, tanto em Portugal como no resto da Europa, e estes não passam por intrometer-se nos contratos da banca.

Leonídio Paulo Ferreira e Arsénio Reis (TSF)
16 Junho 2019 — 00:34

Vamos falar hoje muito de Caixa Geral de Depósitos [CGD] e muito de Banco de Portugal [BdP]. As cartas reveladas pelo Público mostram que o BdP foi informado acerca do empréstimo da Caixa a Joe Berardo para reforçar a posição do BCP, dando como garantias as próprias ações. O senhor na disse na comissão parlamentar de inquérito que não teve conhecimento prévio da operação e eu pergunto: teve ou não teve e, sobretudo, o governador do Banco de Portugal tinha condições naquele momento de travar um empréstimo da CGD que considerasse questionável a Joe Berardo?

Não tinha nessa altura nem agora. Visto que o Banco de Portugal, como supervisor, não tem poderes legais para aprovar operações de crédito cedidas pelos bancos, nem tem poderes para as anular ou fazer reverter. Isso não existe como poder de supervisão em nenhum país europeu ou em qualquer outro país desenvolvido. Esta é a realidade. Essas decisões são da competência legal dos órgãos de gestão das instituições de crédito. Aquilo que aconteceu foi que, em certo momento, vários acionistas do BCP pediram autorização para ultrapassarem uma posição no capital superior a 5 % e, de acordo com a lei em vigor, ao Banco de Portugal para tomar uma decisão que não é autorizar, é não objetar - uma ligeira diferença que não faz porventura para os nossos ouvintes muita diferença, mas era não objetar. O BdP para tomar essa decisão tinha de investigar duas coisas que, obviamente, foram investigadas pelos serviços. Primeiro: que a entidade requerente tinha idoneidade, isto é, que não tinha nenhum caso antigo ou pendente de processos criminais ou administrativos ou disciplinares. E a entidade requerente neste caso era a Fundação Berardo. Que nessa altura já tinha, aliás, mais de 3% do capital do BCP porque obviamente as fundações são investidores, todas as fundações que conhecemos. Portanto, primeiro, verificar a idoneidade. Em segundo lugar, verificar a origem dos fundos para evitar que pudessem ser, enfim, fundos clandestinos e não legais. E nesse sentido, os serviços do BdP obviamente pediram ao requerente que demonstrasse qual era a origem do dinheiro. E o requerente demonstrou, exibindo um contrato de empréstimo que já tinha assinado com a CGD, antes, em maio. O que ilustra que, de facto, o BdP, o supervisor, nunca tem conhecimento antecipado das decisões de crédito que os bancos vão tomar nem as pode fazer anular. E, portanto, foi verificado que os fundos tinham origem legal, a idoneidade. Não havia nada, nenhum registo contra a entidade, e a entidade tinha um balanço sólido.

Portanto, para os serviços do Banco de Portugal, nada fez soar os alarmes.

Não. Não havia nenhum registo, não havia nenhuma informação que pudesse ser utilizada para pôr em causa a idoneidade e a origem dos fundos, que era o mais legal possível: o contrato de empréstimo já assinado - e válido - com a Caixa Geral de Depósitos.

Nem o facto de o crédito ser de alguma forma garantido como era, através das próprias ações?

Não só das próprias ações. Se me permite, eu explicaria quais eram as garantias que constavam do contrato, visto que durante uma semana se discutiu em Portugal, com as mais infames calúnias a meu respeito a propósito desse contrato, e aparentemente ninguém leu o contrato. Eu pedi formalmente ao Banco de Portugal o contrato - tenho o contrato aqui -, li-o, e o contrato diz o seguinte: em primeiro lugar um dos pontos. Tem-se escrito que o empréstimo da Caixa estava "pendente". Dependia contratualmente do condicionado, escreveu um jornal, ao facto de o Banco de Portugal dar autorização para a participação acima dos 5%. Não é verdade. O contrato diz logo na primeira cláusula, numa das alíneas: a assinatura deste contrato e a assinatura de todas as obrigações dele decorrente (incluindo para a Caixa dar o crédito) não necessitam de qualquer autorização interna ou externa que não tenha sido devidamente obtida. Portanto, não havia nenhum condicionamento no contrato, que estava pendente de uma autorização de outro tipo, de dar ao requerente, à Fundação Berardo, os direitos de ser um acionista qualificado no BCP.

No limite, mesmo sem a autorização do Banco de Portugal para essa qualificação qualificada, como dizia, o contrato de empréstimo poderia estar válido e vigorar?

Absolutamente. Ou seja, suponhamos que o BdP, se tivesse na altura qualquer razão legal para não reconhecer a idoneidade do requerente, não tivesse autorizado a participação qualificada, o contrato continuava válido, a Fundação Berardo podia usar o crédito que estava já comprometido pela Caixa desde maio, podia comprar ações do BCP acima dos 5% e o que aconteceria, no máximo, é que, o Banco de Portugal nessa altura inibiria os direitos de voto das ações que fossem acima dos 5%. Mas não tocaria nem podia tocar nos direitos de propriedade dessas ações, de elas receberem os dividendos do banco e de ser uma operação completamente legal. Em suma, o contrato não estava condicionado à autorização do Banco de Portugal de não objetar a participação qualificada da Fundação Berardo, o que faz cair por terra uma das acusações principais e uma das confusões principais que circulou nesta semana.

Deixe-me só pedir um esclarecimento. O BdP, no fundo, é chamado a pronunciar-se sob a utilização desse dinheiro para aquisição de ações no BCP, mas se o dinheiro tivesse sido utilizado para outros fins, o Banco de Portugal nem sequer seria chamado a pronunciar-se?

Não, pois claro. Porque ele só pediu por passar dos 5% no BCP.

Mas poderia usar o dinheiro para outros fins?

Podia, porque o contrato, precisamente, enumera nove empresas que poderiam ser incluídas na utilização do empréstimo. Isto é, que a Fundação Berardo poderia comprar ações dessas nove grandes empresas portuguesas, fáceis de reconhecer, entre as quais estava o BCP.

Esse ponto é muito importante só para que todos os que nos ouvem perceberem. Ou seja, nem sequer no caso do contrato de crédito os 350 milhões estavam veiculados única e exclusivamente à compra de ações do BCP?

Não. Contratualmente, não. É muito claro, há uma lista de empresas, nove empresas, a PT, a EDP... Enfim, aquelas grandes empresas portuguesas. Estavam todas incluídas na possibilidade de utilização do crédito. Mas, em suma, cai por terra a ideia de que o contrato e a concessão do crédito dependiam da autorização do Banco de Portugal de não objetar à participação qualificada. Mas falemos agora das garantias do contrato que o Banco de Portugal não tinha que apreciar, não tinha de ter um julgamento de valor sobre um crédito que já estava concedido, comprometido e assinado.

Mas é verdade que nestes anos todos o que está em causa...

Eu sei, por isso mesmo o vou dizer. É o que está no contrato. As garantias podem resumir-se em três pontos principais. O primeiro é o seguinte: todas as ações que fossem compradas com o empréstimo, de qualquer das nove empresas, tinham de ser dadas em penhor à Caixa como garantia do empréstimo e, permanentemente, todos os dias, a Caixa tinha o poder contratual de verificar se o valor das ações dadas em penhor no mercado era superior ou inferior ao dinheiro em dívida. Todos os dias. E se fosse inferior ao dinheiro em dívida, o contrato dava à Caixa o poder de exigir mais ações ou outras ações. Quaisquer ações cotadas no mercado de primeira ordem para cobrir a diferença ou que o devedor pagasse uma parte da dívida e, portanto, reduzisse o valor em dívida. Este era o poder permanente diário. Mas mais do que isso, e de certo modo, talvez mais importante para os ouvintes: a segunda condição e a segunda garantia é que, apurando, ao fim de cada trimestre, o devedor tinha de assegurar que as ações em penhor em média dos três meses tinham um valor superior em 5% ao dinheiro que estivesse em dívida. Podem achar que 5% é pouco, mas não é. Se a Fundação Berardo já tivesse utilizado 350 milhões do empréstimo, nessa altura, isso significa mais 17 milhões e meio de euros de ações que tinham que ser postas em penhor. Obviamente, para cumprir uma média de três meses, isso significa que todos os dias tinha de ter lá mais, porque não era só no último dia que podia cumprir uma média. Portanto, essa garantia era muito importante, significando que não é qualquer pessoa que pode pedir um empréstimo e que depois tenha meios de, no caso de as ações que comprou com o empréstimo descerem de valor, ter de pôr lá outras ações que cubram o total da dívida.

Quando olha na altura para essas condições impostas pela CGD, e usando o seu conhecimento do meio bancário, a Caixa Geral de Depósitos acautelou devidamente o empréstimo desse dinheiro?

Estas duas condições cobriam os riscos. Em qualquer momento a Caixa podia travar o empréstimo, apropriar-se das ações que estavam em penhor e vende-las.

A questão é que isso nunca foi executado, de facto.

É outra questão, essa.

Eu percebo que sim, mas hoje é fácil concluir, constatar, que de facto nenhuma dessas duas vertentes foi de facto levada...

Não sei, não posso responder porque essas decisões são da exclusiva responsabilidade dos órgãos de gestão da Caixa, como é evidente. Que não tem de informar o Banco de Portugal, que o Banco de Portugal não pode alterar... Qualquer que seja a decisão que a gestão da Caixa tome sobre essa execução do contrato, o Banco de Portugal não pode alterar. A única coisa que o supervisor faz, e é muito importante, e que, reconhecendo em certo momento, quando há inspeções, quando há análises, que há riscos de perdas significativas em operações que os bancos fazem livre e autonomamente, o supervisor pode mandar constituir provisões regulamentares para reforçar o capital da instituição. E que o capital da instituição nunca desça abaixo do mínimo legal, porque isso é uma garantia de solidez da instituição para garantir os direitos dos depositantes. Essa é a principal função da supervisão e dos poderes da supervisão. E os poderes de supervisão são iguais em Portugal, em toda a Europa, e em todos os países desenvolvidos, e diria em quase todos os países do mundo. Porque o supervisor, em qualquer país, não poderia ter como tarefa analisar os empréstimos tão numerosos que fazem os bancos todos e autorizá-los e mandá-los anular. Isso não existe em nenhum país como poderes de supervisão. Agora, exigir o reforço de capitais quando é necessário para cumprir os mínimos legais e manter a solidez da instituição, essa é a função da supervisão. E a Caixa nunca teve capitais abaixo do que a lei mandava. Essa constituição de previsões, tudo o que tem que ver com essa gestão do capital, foi assegurada pela supervisão.

Deixe-me só tentar, reproduzindo tão fielmente quanto conseguir, questioná-lo sobre o seguinte. Tentando citar António Lobo Xavier aqui no programa da Circulatura do Quadrado, na TSF, e se bem entendi o que ele disse. Ele diz que, de acordo com o regime das instituições de crédito, sempre que o Banco de Portugal tem conhecimento - e ele diz, julgo que tinha - de uma operação de crédito que envolva um risco elevado, deve notificar o banco que conhece o crédito para se abster de o fazer. Como o Banco de Portugal neste caso não fez, Lobo Xavier conclui "que isso indicia a concordância do regular com a referida operação de empréstimo". Foi isto que aconteceu?

Não, não é isso que está no contrato. Não foi isso que aconteceu nem poderia acontecer. Aliás, surpreende-me que um jurista como o Dr. Lobo Xavier tenha dito que o Banco de Portugal tinha o poder de anular a operação. Não tinha esse poder legal.

De alertar o banco para que ele se abstivesse de a fazer?

Não. Porque, precisamente, dentro da regulação existente, a Caixa não tinha, nem informou antes de tomar a decisão de dar o crédito, de assinar o contrato, não informou o Banco de Portugal, nem o Banco de Portugal tinha meios de saber que iam dar um crédito de certo tipo, traduzido depois num contrato. Quando a questão da participação qualificada chegou ao Banco de Portugal já esse contrato estava assinado, com toda a validade legal, com todos os compromissos a que se comprometiam quer o devedor quer a Caixa. Isso tudo já era válido e não podia ser alterado.

Ou seja, isso nunca foi sequer motivo de apreciação do Banco de Portugal porque ele não tinha competências legais para o fazer?

Sim, e além disso, não tinha conhecimento prévio de que uma determinada instituição ia fazer uma operação de crédito. Não tem esse conhecimento.

O Banco de Portugal, mais uma vez, só intervém aqui porque está em causa a aplicação do dinheiro num outro banco? A Caixa Geral de Depósitos e a forma como a Caixa Geral de Depósitos concede empréstimos não estavam a ser analisadas?

Claro que não. Não podia ser, como é evidente, já estava uma decisão tomada. E repito, o poder do supervisor é, quando faz inspeções e verifica os riscos da instituição, ver se há riscos de perdas e mandar reforçar os capitais para garantir os capitais mínimos regulamentares, e defendemos depositantes e a solidez da instituição. Portanto, isto deve ser muito bem compreendido. Que em nenhum país o supervisor tem conhecimento prévio das operações, sejam quais forem, que os bancos vão fazer e não tem poderes para as mandar anular ou reverter.

Era aí que eu queria ouvir a sua opinião. Legalmente, pelo que acaba de dizer e pelo que estamos a concluir, é de facto permitido pedir dinheiro a um banco para comprar, imagine, ações, dando como garantia as próprias ações e outro tipo de garantias... O que eu lhe pergunto é, à luz do que sabemos hoje - e aqui estou a pedir mesmo a sua opinião -, isso continua a fazer sentido ou essas regras deveriam mudar?

As regras são as mesmas. Este tipo de operações que muitos bancos fazem, e continuam a fazer em Portugal e em todos os países, dar crédito para compra de ações... Os bancos protegem-se com o tipo de garantias que eu descrevi, porque a todo momento podem intervir, apropriar-se das ações que, neste caso, até tinham que estar acima do dinheiro em dívida. Como referi, podia apropriar-se dessas ações no caso de o devedor não pôr lá mais ações para cobrir a diferença ou não fazerem pagamento por forma a reduzir a dívida. Os bancos fazem estas operações porque recebem o juro, normalmente um juro satisfatório, para fazer o crédito, e têm lá estas garantias que podem executar a qualquer momento. Nas condições do contrato que eu acabei de descrever, e é por isso que as fazem. Fazem em Portugal, fazem em todos os sítios, e hoje continuam a fazer. As operações são legais, têm estas condições de garantias que eu referi, e esta é a lógica do sistema.

E o que eu lhe estava a perguntar é se essa lógica, em seu entender, e à luz de tudo o que nós conhecemos, deveria ou não ser alterada. Ou seja, fortalecendo de alguma forma o poder de supervisão que o Banco de Portugal tem...

Hoje teria de se fazer uma alteração da lei europeia para alterar os poderes do Banco de Portugal. Mas independentemente dessa questão, o ponto essencial é que é impossível que se pretenda que o supervisor, em qualquer país, perante muitos bancos e dezenas de milhares ou milhões de operações, tivesse o poder legal de analisar todas as operações de crédito e dizer "esta não é boa, agora faça favor de a anular". Não pode, isso era inexequível. E não acontece em nenhum país, nem acontecerá porque não é exequível, pura e simplesmente. O que faz o supervisor, repito, é verificar se há riscos de perda, mandar cobrir esses riscos com provisões e garantir a todo o momento que a instituição tem os capitais próprios indispensáveis para cumprir os mínimos legais estabelecidos.

Uma curiosidade: 350 milhões de euros em 2007 é um empréstimo completamente fora daquilo que era habitual, ou estes valores eram habituais na banca portuguesa?

Enfim, não lhe sei dizer. Houve certamente créditos para compra de ações noutros bancos portugueses. Não sei se eram iguais a esse montante, mas eram também de montantes avultados.

Este valor, para si, não é assim extraordinário? É alto mas não é um valor extraordinário?

É um valor alto, evidentemente. Tinha estas garantias que eu acabei de descrever. Tinha mais uma, de certo modo, que era o seguinte: uma outra condição contratual em que a Fundação Berardo tinha de manter um coeficiente entre os capitais próprios da Fundação e o total do seu balanço, o total dos seus ativos de, pelo menos, 20%. Portanto, o que é, digamos, uma relação de capital forte. E se não o tivesse, se não cumprisse esta condição, uma vez mais, o contrato dava os poderes à Caixa de exigir o cumprimento. E se o cumprimento não fosse feito, dava o poder de executar o penhor, tomar as ações, vende-las e acabar com a operação. Esse poder também existia. Mas enfim, as duas que eu citei primeiro, sobretudo a tal média trimestral acima do valor em dívida, de 5%. E 5 % de 350 milhões são 17 milhões e meio de outras ações adicionais que tinham de estar dadas em garantia. Os bancos fazem estas operações, rodeiam-se destas garantias e ganham os juros. Essas operações são legais em todos os países e existem como prática maior ou menor, consoante os países, os hábitos e os costumes... Mas existem e continuam a existir. E são legais.

Não quero ser opinativo e vou tentar ir aos factos. E os factos são: um empresário, que era uma das figuras mais relevantes da economia nacional querer reforçar a sua posição administrativa no maior banco privado português, financia-se no banco público, dando como garantia as próprias ações que estava a comprar. Estamos a falar de banca, onde a confiança é o elemento essencial, e eu pergunto: como é que acha que os portugueses olham para isto tudo?

Repito: as garantias não eram exclusivamente dar as ações que comprava, tinham as cláusulas que eu referi. Tinham de ter uma cobertura de 105% em média trimestral e portanto tinha de lá ter outras ações do BCP, do que fosse, igualmente relevantes, com liquidez no mercado de primeira ordem para garantir o empréstimo.

Mas admite que cada situação destas contribui muito para um elemento essencial, que é a não confiança dos portugueses...

É o sistema que existe em Portugal, na Europa, em todos os países desenvolvidos. É uma economia de mercado e há mercados financeiros, há transações de ações e há crédito para essas transações e para essas aquisições com as garantias adequadas que, repito, estavam no contrato. E que hoje muitos bancos continuam a fazer. E depois tudo depende, evidentemente, da forma como é gerido o contrato. Mas repito, também aí as decisões são da exclusiva responsabilidade da gestão dos bancos, e o Banco de Portugal não pode alterá-las, mesmo que tenha conhecimento a posteriori dessas operações. São decisões dos bancos.

À época gostava de ter tido outros instrumentos para impedir negócios como este que Berardo fez?

O negócio em si mesmo, nessa época, com as informações que havia, como digo, tinha este contrato, que existia em todos os países e que era um contrato do tipo normal com estas garantias e que teria permitido que uma execução rigorosa impedisse que a dívida fosse eventualmente crescendo, etc.

Mesmo que tivesse outros instrumentos, este negócio seria avalizado, digamos assim...

Seria legal, perfeitamente. Faz parte da lógica do sistema haver mercados de capitais, haver transações de ações e os bancos ganharem juro fazendo crédito, mas prevenindo-se com as garantias de não perderem o dinheiro. Isto é tudo independente de juízos morais que se possa fazer porque o supervisor só tem de cumprir a lei. Algumas das coisas que se tem dito apontam para "ah, devia ter ido além da lei". Bem, o Banco de Portugal não pode ir além da lei, como é evidente. Isso está fora de questão. Estas eram as leis do sistema e o Banco de Portugal tinha de cumprir as leis do sistema e os direitos dos cidadãos e das empresas que decorrem da lei.

Já agora, deixe-me só perguntar-lhe, para também isso ficar claro. Mesmo com as mudanças que houve na legislação, se a supervisão, naquela altura, tivesse as mesmas regras de hoje, a operação teria sido igualmente autorizada?

Com as mesmas informações da época sobre a idoneidade e a solidez financeira do requerente, teria tido o mesmo tratamento. E com as condições contratuais que permitiam que o credor cobrisse os seus riscos.

Disse na comissão de inquérito que estava mais ocupado com a definição de política monetária europeia do que com a supervisão, o que toda a gente reconhece como sendo verdade. O que lhe pergunto é o contrário. Alguma vez sentiu, enquanto governador, apesar de tudo, necessidade de reforçar os quadros do Banco de Portugal que estavam afetos à supervisão?

Sim, e foram reforçados ao longo do tempo. Uma das coisas que foram decididas ainda antes de eu acabar o meu mandato foi colocar inspetores do Banco de Portugal junto dos conselhos de administração dos principais bancos portugueses, para poderem seguir mais de perto aquilo que passava pelas decisões dos conselhos e terem informação muito atempada dos riscos que podiam emergir. Mas, repito, não se tratava de poder objetar, não autorizar ou mandar anular as decisões dos conselhos dos bancos. Isso é impossível em da face da lei. Mas era, digamos, ter um conhecimento atempado dos riscos que poderiam emergir. Se houvesse a possibilidade de os riscos aumentarem, poderia haver a decisão de mandar reforçar provisões e reforçar os capitais dos bancos para garantir a sua solidez, que é a função do supervisor.

Qual é a sua opinião de Filipe Pinhal?

O que eu verifico sobre isso é o seguinte. O Dr. Filipe Pinhal...

Estou a falar por causa dos comentários recentes que fez ao envolvimento político na banca.

O Dr. Filipe Pinhal, para mim, hoje, é uma pessoa sem credibilidade, visto que foi condenado em tribunais portugueses totalmente independentes por crimes cometidos no BCP. E, antes disso, foi também condenado em processo de contraordenação no Banco de Portugal e na Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários [CMVM]. Ou seja, não foi só o Banco de Portugal que abriu processos ao Dr. Filipe Pinhal. Portanto, as efabulações que ele faz no livro que publicou há anos e que ninguém ligou muito, e que repetiu agora, não apresentando qualquer fundamento ou qualquer elemento de prova...

Mas na comissão de inquérito à Caixa, portanto, num sítio nobre, e recentemente fez as mesmas acusações.

Exato. Mas sem fundamento e sem factos que suportassem essa efabulação. Portanto, uma pessoa que foi condenada por tudo isto...

Estamos a falar do envolvimento da política na banca, para os ouvintes perceberem.

Não, não. Estamos a falar de que houve operações irregulares no BCP, isto é, a constituição de veículos no exterior com falsos acionistas para comprar ações do BCP e, digamos, influenciar a cotação dessas ações. Esses veículos não foram declarados ao Banco de Portugal e a intervenção no mercado de capitais era da alçada da CMVM, que também me pôs um processo, não foi só o Banco de Portugal que pôs processos. A própria ideia de um qualquer conluio não pode ser atribuída a alguém no Banco de Portugal porque também noutras instituições houve processos, e acabaram por essas ações, feitas por vários gestores no BCP, traduzir-se em condenações e penas em tribunais criminais portugueses. Eu pergunto: qual é a credibilidade de uma pessoa que tem este trajeto vir dizer que houve um conluio, e que lhe foram imputadas coisas que não seriam verdadeiras? Ele foi condenado em tribunal precisamente por essas ações.

Só para esclarecer quem nos ouve. Era um conluio que alegadamente envolvia o anterior primeiro-ministro José Sócrates, o anterior ministro das Finanças Teixeira dos Santos e o senhor, como governador do Banco de Portugal. O que lhe pergunto é ao contrário. Nunca sentiu que havia essa influência ou essa, no limite, tentativa de condução política da banca?

De maneira nenhuma. Não senti e seria totalmente impermeável a qualquer pressão nesse sentido. Nunca tomei nenhuma decisão sozinho, essa é outra questão que é fundamental as pessoas perceberem. Numa instituição grande como o Banco de Portugal, com as responsabilidades que tem, não há decisões pessoais. Há toda uma máquina de técnicos, de juristas que analisam os processos, que fazem propostas ao conselho de administração. E depois há uma decisão que envolve o conselho, quando são decisões importantes. Aliás, nos momentos das decisões mais importantes, sobre questões de supervisão, as coisas vinham a todos nós e a mim, como governador, sendo certo que, para a gestão mais corrente da supervisão, estava delegada num vice-coordenador, e tem estado sempre no Banco de Portugal delegada num vice-governador. Este é o procedimento. Não há ações do governador sozinho, que impõe, que faz, que decide. Isso não existe numa instituição como o Banco de Portugal. Tudo tem de ser fundado nas leis, nos pareceres técnicos que são preparados por equipas autónomas que preparam essas análises legais e económicas financeiras, de acordo com a regulamentação dos bancos, e que apresentam esses pareceres e essas propostas superiormente ao conselho de administração. É assim que funciona uma instituição como o Banco de Portugal. A ideia de conluios pessoais é totalmente estranha a este universo. O Banco de Portugal só trata de questões de direito, não trata de questões de, como foi dito, de lutas de poder entre acionistas. Os acionistas têm as suas ações, têm os seus direitos.

Eu gostaria de o questionar sobre isso, ainda assim. O que se passou no BCP naquela altura, em 2006/2007 se não estou a fazer mal as contas, é considerado por muitos um assalto ao poder dentro do banco. Esta leitura é legítima?

Não. A leitura não é legítima porque tudo o que aconteceu resultou de decisões da assembleia geral de acionistas dentro do banco. Claro, havia pessoas que estavam antes na gestão do banco e que não foram eleitas. Portanto, só pode falar em assalto quem estivesse nessa posição. Mas não é essa a questão. Os acionistas têm os seus direitos, de acordo com os votos a que têm direito, tomaram as suas decisões e só eles, em assembleia geral, podiam tomar essas decisões, mais ninguém. Não têm de pedir parecer a ninguém para escolherem os gestores que querem para o banco onde têm participações de capital. Não têm de pedir autorização a ninguém para fazerem as suas escolhas. As pessoas que forem escolhidas têm depois que ser sujeitas a um reconhecimento de idoneidade pelo supervisor, pelo Banco de Portugal. Isso é um dos poderes que o Banco tem, e isso tem de ser obtido, evidentemente, em todos os casos. Quando houve substituições no BCP, várias das pessoas que foram escolhidas pelos acionistas já estavam na banca e nem se punha a questão da sua idoneidade, que já estava automaticamente reconhecida. Não houve decisão nenhuma do Banco de Portugal sobre isso, nem nenhuma possibilidade de envolvimento em todo esse processo que era de facto uma eventual disputa entre grupos de acionistas. Mas o Banco de Portugal só trata de questões de direito e não podia ter qualquer interferência nessa questão. Mais, quando essas operações fraudulentas foram denunciadas na imprensa, porque alguém de dentro do banco enviou documentos denunciando essas operações, de que não tinham nunca sido comunicadas ao Banco de Portugal pelo BCP, e depois mandou ainda mais documentos para o Banco de Portugal e para a CMVM, recebendo todo um conjunto de elementos, foram abertos processos. Mas ninguém foi inibido de ser gestor da banca antes da conclusão desses processos, que levaram muito tempo e que só foram concluídos já depois de ter passado há muito tempo a assembleia geral e a escolha pelos acionistas dos gestores que queriam ter à frente do banco. Ninguém foi inibido pelo Banco de Portugal antes da conclusão dos processos, que levaram tempo e que foram muito posteriores à conclusão de todas essas decisões da assembleia geral do BCP.

Vamos falar agora um pouco do seu período no Banco Central Europeu [BCE]. Trabalhou muito próximo de Mario Draghi. Aquela ideia do Super-Mario que conseguiu salvar a Europa - e Portugal também - da crise é justa? Ou aqui o trabalho também tem de ser atribuído a um coletivo?

É justa, seguramente, porque além do trabalho feito coletivamente, e obviamente que as coisas todas foram discutidas, e as possibilidades de agir em determinada direção, que acabou por ser a direção escolhida, resultou de um trabalho coletivo da instituição, de vários elementos da instituição e da comissão executiva. A expressão que Mario Draghi encontrou para refletir essa disposição que existia de tomar decisões difíceis, e que eram necessárias, é, em inglês, "whatever it takes". "Seja o que for que aconteça, nós asseguraremos a estabilidade do euro."

Era uma decisão mais política do que económica, não era?

A decisão de fazer o programa, de poder comprar obrigações dos Estados membros do euro, é uma decisão que não é política, é uma decisão de política monetária, se quiser. Mas é uma decisão de intervir nos mercados para estabilizar os mercados da dívida pública nacional, quando se verificava que os dados fundamentais dessas economias não justificavam a pressão do mercado de fazer descer o valor das obrigações soberanas emitidas por esses países mais vulneráveis, entre os quais Portugal. A decisão de comprar essas obrigações e, portanto, de suportar o seu preço, e consequentemente não fazer subir mais o custo da dívida dos países, foi tomada para estabilizar a área do euro, para estabilizar o euro e para salvar o euro. E que salvou, efetivamente. A expressão que ele encontrou é muito forte e muito feliz, e a verdade é que o instrumento que estava associado a essa afirmação até hoje ainda não foi usado. Porque bastou a afirmação de que existia, de que estava decidido que havia a decisão do Conselho de Governadores do Banco Central Europeu para tomar essa medida, e foi suficiente para acalmar os mercados, como os preços verificam.

Salvou-se o euro ou o euro também salvou a Europa?

Eu acho que o euro salvou a Europa, porque o euro é evidentemente o principal cimento que neste momento agrupa os países que fazem parte da zona euro. Visto que, uma vez constituídas essas interdependências, a passagem dos direitos soberanos sobre a moeda para o Banco Central Europeu...

Se o Reino Unido tivesse o euro em vez da libra, o Brexit seria muito mais dramático?

O Brexit seria muito mais dramático e, porventura, não aconteceria com a leveza, se me permite o adjetivo, com que está a acontecer.

Está a falar da parte dos 27 ou do Reino Unido?

Da parte do Reino Unido. Porque sair do euro e passar a moeda própria, nomeadamente se for um país vulnerável, implica correr o enorme risco de uma enorme desvalorização da moeda nacional para que o país reverteria, e de ter, permanentemente, grandes pressões nos mercados em relação aos seus instrumentos de dívida e em relação ao valor da moeda.

Em Portugal, durante a crise, quem falava do regresso ao escudo e do fim do euro defendia uma utopia sem sentido?

Uma utopia sem sentido.

Não resolve nada.

Não resolve nada, veja-se o caso da Grécia, onde houve até um governo que pensou que isso poderia ser feito e que fez um referendo e tudo o mais e depois teve de...

Ainda bem que fala da Grécia, porque, como sabe, o Syriza teve agora um mau resultado nas europeias, pediu eleições antecipadas e muito provavelmente perderá o poder. Em Portugal também, quem governou perdeu o poder. Quem fez a austeridade, seja à direita ou à esquerda, perde eleições?

É um pouco verdade, é no fundo o resultado da democracia. As pessoas sentem o peso da austeridade nos períodos em que ela é aplicada e depois no voto seguinte, de certo modo, penalizam quem viram tomar essas decisões. E aconteceu em todos os países, fosse qual fosse a natureza do governo.

Mas quando olhava, a partir de Frankfurt, para a Grécia e para Portugal, e para a forma como os dois governos estavam a reagir, Portugal estava a reagir melhor do que a Grécia?

Sem dúvida, e os mercados reconheceram isso. As posições que o governo do Syriza tomou na Grécia, contra as regras europeias, acentuaram as pressões dos mercados e acentuaram a crise para a Grécia. A atitude em Portugal e na Espanha foi completamente diferente, foi a de tentar ajustar-se às regras europeias e de fazer o ajustamento necessário. E como vimos isso deu resultado. Veja-se agora qual é a situação dos dois países em todos os aspetos, quer da evolução da economia, da recuperação económica, quer do valor da dívida portuguesa, que neste momento paga, como sabe, muito pouco nos mercados financeiros europeus.

Estamos mesmo a terminar. Queria só perguntar-lhe duas coisas para respostas, se puder, o mais rápidas possível. A economia portuguesa, em seu entender, está a crescer a um ritmo desejável?

Tem estado a crescer praticamente na média europeia e até ligeiramente acima nestes últimos dois anos. É algo que, vindo de uma situação que requereu um ajustamento difícil, é visto como muito positivo em toda a Europa, em todos os mercados. É o que contribui para que neste momento Portugal pague pouco mais de 1% pela dívida que emite há dez anos. É uma situação que não existiu durante muitos, muitos anos.

Outra questão também para uma resposta rápida. Houve um momento da sua vida em que foi candidato a primeiro-ministro. Se tivesse sido primeiro-ministro nos últimos anos, o que é que teria feito de diferente em relação a António Costa?

Não vou responder, teria de estar a pensar em todos os domínios de todas as decisões do governo, e disse-me que tinha um minuto para responder... Tenho de reconhecer que manifestamente é impossível agrupar o conjunto de questões em que eu pudesse ter orientação diferente. Não estou em condições de responder.

Mas reconhece mérito ao governo de Passos Coelho, como já disse anteriormente, para lançar este período de maior prosperidade que o PS já assumiu ao chegar ao governo?

Houve várias coisas. Não vou entrar em julgamentos políticos. Nunca entrei quando era governador. Fiz, a pedido de governos diferentes, como se recordará, operações de verificação de défice orçamental, independentemente da natureza desse governo. Nunca fiz, enquanto governador, qualquer julgamento ou qualquer decisão com base em julgamentos políticos, portanto não vou fazer também em pormenor nos termos em que me pergunta. É evidente que Portugal, desde 2010, quando emergiu na Europa, na chamada crise das dívidas soberanas, tinha de fazer um ajustamento, fosse qual fosse o governo que estivesse. Mais, menos, pode-se discutir o grau, até onde é que se foi - e os partidos discutem isso - se foram longe de mais, se não foram longe de mais, não exprimo qualquer opinião. O ajustamento tinha de ser feito, foi feito e depois foram tomadas medidas que ajudaram à recuperação económica. No fundo, a recuperação resulta de tudo. Esta ideia que há na luta política de que o que acontece num período em que está um governo é da culpa desse governo é uma ideia que não existe. A economia tem uma inércia enorme, é um magma que evolui para além das decisões que os governos vão tomando. Um economista olha para isto de uma forma mais desligada, do período em que esteve este governo e do período em que esteve aquele governo. Como eu disse, tinha de haver um ajustamento mais ou menos, isso é que eles discutem. Em geral, o ajustamento que foi feito na Europa, em todos os países, foi excessivo, isso também é verdade para Portugal. Mas foi ainda mais verdade para a Grécia, foi ainda mais verdade para outros países. Isso é reconhecido nos relatórios feitos a posteriori pelo Fundo Monetário Internacional. E todas as análises feitas verificam que o ajustamento foi excessivo em todos os países, não só em Portugal, não era necessário tanto. Houve erros de programação, porque é muito difícil calcular qual é o efeito que tem uma medida sobre o défice orçamental. Esses erros são normais.

Mas neste momento Portugal está num bom caminho económico?

Exato. Portugal fez um ajustamento, equilibrou as contas públicas, equilibrou o défice externo e tem neste momento uma visão positiva internacional associada a esta recuperação e ao cumprimento das regras europeias. Porque isso é muito importante para um país que é membro do euro.

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