ALOJAMENTO LOCAL
Viagem a uma cidade em mudança à boleia da Airbnb
Plataforma de alojamento chegou ao Porto em 2009. E quase
uma década depois, a cidade é outra. Que relação existe entre a transformação
da urbe e a evolução da plataforma? Prejuízos e ganhos, políticas de regulação
e seus efeitos num “diagnóstico” à espera de tratamento. Livro O Porto e a
Airbnb é apresentado este sábado
MARIANA CORREIA PINTO
17 de Novembro de 2018, 9:02
São edifícios contíguos, de traça tradicional portuense, mas
vestem duas cidades distintas. Um deles, porta aberta para a rua, está
degradado e é a casa de Maria há já 69 anos. O outro, porta vermelha e
reabilitação impecável, assumiu o inglês como língua materna e escreveu a
palavra “studios” numa janela. Um serve habitação, mas já antecipa a chegada de
uma carta de despejo. O outro atende turismo, é um entra e sai de malas à
boleia da Airbnb. Na Rua de Trás, no Porto, um grupo de investigadores do
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento de Território, da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto, encontrou a metáfora de uma cidade em mudança.
Cientes dessa “transformação”, decidiram percorrer os quase dez anos de vida da
plataforma de alojamento temporário no Porto. Mergulharam nos dados da Airbnb,
esmiuçaram números, puseram-nos lado a lado com os indicadores da urbe. O
diagnóstico está feito no livro O Porto e a Airbnb, que quer agora promover um
conjunto de debates sobre o tema. O tratamento está ainda por prescrever.
Comecemos pelos números. Na base de dados da Airbnb, o
cenário parece agravar-se, se comparado com os indicadores do Registo Nacional
de Alojamento Local (RNAL). Em Maio, quando o estudo foi feito, existiam 15610
propriedades na Área Metropolitana do Porto (AMP), a maioria delas (74%) no
concelho do Porto, onde havia 11583 alojamentos locais. No final desse mesmo
mês, no RNAL, havia apenas 5504 registos no Porto. De onde vem a discrepância?
De casos que fogem do registo legal, licenças pendentes, hotéis com registos
dos seus quartos no Airbnb (teoricamente fora do conceito de alojamento local).
“Um misto de situações”, arrisca Pedro Chamusca, que assina o livro com Rio
Fernandes, Luís Carvalho e Thiago Mendes. A isto, juntam-se ainda os AL sem
actividade nos últimos tempos, podendo já não estar no RNAL mas permanecendo no
Airbnb. Nos últimos 12 meses, notaram, havia 4100 propriedades sem qualquer
registo.
A freguesia com mais actividade está situada na união de
freguesias do Centro Histórico do Porto: em Santo Ildefonso, havia 2729
registos (24% do total da cidade) no mês de Maio. Mas era na Vitória que o
rácio impressionava mais: uma propriedade por cada dois residentes. Se a 31 de
Maio todos os estabelecimentos de Airbnb estivessem ocupados, teríamos mais
visitantes do que residentes a dormir em Santo Ildefonso e na Sé.
Os investigadores não falam apenas de prejuízos. Do ponto de
vista económico, admite o geógrafo Rio Fernandes, a Airbnb trouxe boas novas à
cidade. E Luís Carvalho, economista, recorda o Porto existente há uma década
para relativizar o cenário: “Nessa altura estávamos em busca da fórmula para
reabilitar o Porto e ninguém a encontrava. O Airbnb e o turismo fez o que as
políticas não conseguiram.”
A cidade reabilitada deve, portanto, uma vénia à plataforma
nascida na Califórnia em 2007, quando dois jovens designers decidiram compor o
orçamento recebendo hóspedes na sua casa, em colchões de ar (airbed) e com pequeno-almoço
(breakfast) incluído. O problema veio depois.
No Porto, o crescimento da Airbnb é exponencial nos últimos
anos, mas foi quase insignificante nos primeiros. A 16 de Abril de 2009
aparecia na Rua de Monte dos Burgos o primeiro AL da cidade. E o único nesse
ano. Em 2010, houve oito registos. Em 2011 dá-se o primeiro grande salto: eram
já 94 e passaram a 324 no seguinte. A subida tem sido constante, com o boom a
acontecer a partir de 2014. “Nessa altura começaram a surgir conflitos, as
vantagens económicas começavam a não compensar as desvantagens sociais,
culturais, de identidade”, analisa o geógrafo Pedro Chamusca.
Rio Fernandes concentra as desvantagens em dois pontos:
urbanísticas e sociais. Por um lado, o crescimento descontrolado de AL produz
“cidades faz de conta”, espaços “insuflados de mundo”, assemelhados a uma
“Disneyland”. Algo que já “não é verdadeiramente o Porto”. Por outro, produz-se
um “processo de substituição” de moradores por turistas que “leva muitas vezes
à exclusão”, aponta: “Empurram-se pessoas para fora da cidade e não se consegue
trazer novos residentes.” Há contratos que, ao cessar, já não se renovam. E
despejos em crescimento.
Uma realidade que “foge cada vez mais da lógica da
partilha”, refere Thiago Mendes, geógrafo que há coisa de três anos trocou o
Brasil por Portugal. Se as noções tradicionais de partilha não incluíam uma
“transação financeira”, essa permuta tornou-se fundamental na “maioria das
actividades da ‘nova’ economia da partilha”, onde actuam empresas como a
Google, o Facebook, a Apple e a própria Airbnb. Esta plataforma de alojamento
será “o maior bastião” desta economia, apontam os autores de O Porto e a Airbnb
(Book Cover, 17 euros), com apresentação marcada para este sábado, às 11h30, na
Fnac de Santa Catarina, no Porto.
Se provas forem precisas, Luís Carvalho sugere uma lupa na
análise dos proprietários dos AL. O número de “anfitriões profissionais” é
crescente e no Porto os 20 maiores “senhorios” exploram quase 1000 propriedades
(6% do total), sendo responsáveis por 8% do rendimento total da Airbnb na Área
Metropolitana do Porto (mais de 6,8 milhões de euros anuais). “Indicadores de
concentração muito fortes”, analisa. Mas há mais: as propriedades em regime de
“partilha” de facto (quartos privados e partilhados) eram, em Maio, 29% do
total de propriedades listadas no Porto e representavam menos de 10% do total
de receita, concluíram.
Numa primeira fase, a Airbnb funcionou como “um complemento”
do orçamento, resume Rio Fernandes, “mas depois passou a ser um negócio”. E
tudo isso aconteceu a uma “velocidade muito intensa” e de forma “desregulada”.
O discurso tem necessariamente de mudar, acredita: “Há dez anos dizíamos para
os turistas virem e reabilitarem à vontade. Hoje temos de dizer que se querem
investir podem fazê-lo em Campanhã, no Bonfim talvez.”
No Porto, a autarquia de Rui Moreira está há vários meses a
fazer um mapeamento do AL na cidade e a estudar formas de regular o sector com
os olhos postos em exemplos europeus. E são várias as abordagens de políticas
públicas possíveis. Em Berlim, a Airbnb foi proibida. Em Amesterdão e em
Londres os proprietários passaram a ter, em 2017, um limite automático do
número de noites em que alugam espaços a turistas. Em Barcelona, o tribunal já
interveio para multar a Airbnb por ter apartamentos a operar sem licença e
ultrapassar o limite máximo de dias de arrendamento. Em Copenhaga, quando a
Carlsberg pediu licença para fazer um loteamento no centro da cidade, a câmara
exigiu-lhe que 30% da habitação fosse económica. Em Lisboa, enquanto a solução
definitiva não é firmada, a autarquia já suspendeu a emissão de registos nos
bairros de Alfama, Mouraria, Castelo, Madragoa e Bairro Alto.
O perigo de ignorar o problema é grande. Desde logo, dizem,
“um risco de mudar a identidade” do Porto e perder o seu maior activo pelo
caminho. Saem os moradores, perde-se o comércio local. Aumenta a população flutuante,
aposta-se em produtos “neotradicionais”. É um modelo de “cidade cenário” ao
qual Rio Fernandes tem encontrado alguma oposição: “Tenho colegas que costumam
dizer-me: ‘Dessas criações não gosto, gosto de cidades reais.’”
Não há na posição dos autores, que produziram o livro em
cerca de três meses, uma recusa da evolução. “Objectivamente temos de aceitar
que as cidades mudam”, aponta Pedro Chamusca, para logo acrescentar: “A questão
é como regular e impedir que se perca o encanto, porque corremos o risco de o
Porto se tornar mais uma cidade, igual a tantas outras”.
O livro percorre a história do Airbnb e a mudança da cidade,
constrói um atlas da presença da plataforma na cidade, mostra dezenas de mapas
para compreender o problema, acrescenta diversos cartoons criados por Pedro
Figueiredo, arquitecto e um dos rostos do projecto Worst Tours, “ouve”
políticos e profissionais do ramo imobiliário. Turistas, moradores a relatar um
assédio constante, um sapateiro a contar a mudança do modelo de negócio: já não
há habitantes para consertar sapatos, mas as malas dos turistas precisam muitas
vezes de rodas novas.
Há quem não veja outro modelo capaz de atrair o investimento
privado e recuse a ideia de limitar ou proibir mais AL. Há quem defenda que o
travão na gentrificação se faz com mais oferta. Quem vislumbre problemas
futuros, peça limitações, lamente ver as casas usadas para fins fiscais e
turísticos, censure a “monocultura” dos T0 e peça restrições à proliferação dos
alojamentos.
Os dados, dizem os investigadores, estão lançados. Na capa
do livro, uma campainha digital mostra-se numa parede de pedra impecavelmente
limpa junto a uma porta vermelha. Naquela fotografia, cabe “a negação daquilo
que o Airbnb queria fazer na sua génese”, sugere Luís Carvalho: “Ligar pessoas,
o turismo como experiência sociais”. O bastião da economia de partilha não foi
causa, mas teve um efeito “catalisador” numa quase tragédia a habitar as
cidades. “As visões, as tecnologias e os modelos de negócio destas empresas
mudaram a sociedade”, concluem. Os investigadores vão respigar uma declaração
do vice-presidente da empresa de publicidade Havas Group, Tom Goodwin, para,
falando de evidências, centralizar o debate: “A Uber, maior empresa de serviço
de táxi no mundo, não possuí veículos. A Airbnb, o maior forncedore de
alojamento no mundo, não detém propriedades”, disse: “Algo interessante se está
a passar.”
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