"Os hóspedes do alojamento local gastam muito menos
dinheiro e geram muito menos empregos"
ENTREVISTAS VISÃO 24.11.2018 às 7h57
Juan Requeso Liberal
esteve em Lisboa enquanto orador da Conferência Património Cultural – Desafios
XXI, realizada no âmbito do Ano Europeu do Património Cultural, na Fundação
Calouste Gulbenkian
Diana Tinoco
Leia ou releia a entrevista ao espanhol Juan Requejo
Liberal, especialista em turismo, planeamento territorial e ambiental e também
em estratégias de desenvolvimento
VÂNIA MAIA
Jornalista
Adora fazer analogias entre a comida e o turismo. Afinal, em
ambos os casos é essencial definir a quantidade certa. Mestre em Economia e em
Geografia, pela Universidade Autónoma de Barcelona, Juan Requejo Liberal é
especialista em turismo, planeamento territorial e ambiental e também em
estratégias de desenvolvimento. Aos 63 anos, já aconselhou vários governos e
autarquias nestas temáticas, incluindo em Portugal, e igualmente organizações
internacionais, como a Comissão Europeia e as Nações Unidas. Residente em
Sevilha, esteve em Lisboa, cidade que conhece bem, enquanto orador da
Conferência Património Cultural – Desafios XXI, realizada no âmbito do Ano
Europeu do Património Cultural. Crítico do alojamento local, identifica alguns
sinais de alarme na capital portuguesa. Tal como o movimento slow food surgiu
em oposição à fast food, acredita que também haverá uma mobilização para viajar
melhor, em resposta ao turismo massificado.
Gostamos de fazer turismo, mas não de turistas?
Não creio que não gostemos de turistas. Não há qualquer
problema nos territórios onde o número e a forma de os turistas se comportarem
são adequados. O problema surge quando determinadas zonas recebem um excesso de
visitantes, tendo em conta a sua capacidade de acolhimento.
É inevitável que os centros históricos das cidades se
transformem em parques temáticos para turistas?
Esse fenómeno tem-se desenvolvido muito rapidamente, assente
na combinação entre voos low cost e plataformas de alojamento de curta duração.
O comportamento nas grandes massas urbanas tem algumas semelhanças com a
indústria da fast food: as pessoas alimentam-se de calorias, ficam obesas, mas
não resolvem os seus problemas nutritivos. Uma boa parte do fenómeno turístico
massificado está relacionada com esta conduta. Os centros históricos das
cidades podem ser recuperados, na medida em que sejamos capazes de garantir que
só lá chegam visitantes interessados numa experiência cultural densa, e não
numa visita banal de colecionismo, tipo fast food.
Mas sem turismo os centros históricos não estariam
condenados ao abandono?
Absolutamente. É necessário alimentar a Humanidade, mas não
é preciso torná-la obesa. Com o turismo passa-se o mesmo. As cidades podem
utilizar o turismo em seu benefício, seja para gerar valor seja para incentivar
a interação cultural. Nas condições atuais, tal interação não é possível, uma vez
que há um desequilíbrio absoluto entre o número de visitantes e o de
habitantes. Os residentes não contactam com os visitantes porque não podem
viver onde eles estão. Os preços do arrendamento são-lhes inacessíveis, e os
proprietários vão viver para outras zonas das cidades, alugando as suas casas e
ganhando dinheiro suficiente para a subsistência.
Defende que as plataformas de alojamento temporário
prejudicam o interesse público. Porquê?
O Estado é constitucionalmente responsável por não dormirmos
na rua e por termos alojamento digno. O parque residencial deve ser habitado
pelos residentes das cidades. É do interesse público que assim seja. Depois há
o espaço público: se o perdemos, porque o comércio já não é para nós, mas para
vender o que os turistas precisam, o interesse público é afetado. Curiosamente,
também há um efeito ricochete relativamente ao interesse turístico. Visitar uma
cidade onde só existem turistas e lojas para eles não é o mesmo do que visitar
uma cidade onde vivem pessoas com a sua singularidade cultural.
Mas o alojamento temporário foi fundamental para a
sobrevivência de muitas famílias, durante o período da crise económica.
Sem dúvida. O que eu tenho defendido em lugares históricos,
como Santiago de Compostela, é que a solução passa por alugar as casas, sem se
perder o residente. Na origem, estas plataformas de alojamento temporário
pretendiam fomentar a economia colaborativa e não uma economia especulativa.
Ainda que sejam famílias a especular, não deixa de ser especulação.
Atribui, então, ao turismo os problemas habitacionais das
cidades?
Totalmente. Milhões de pessoas com poucos recursos viajam
para as cidades e provocam que os habitantes mais vulneráveis desses locais
fiquem mais pobres. Isto gera um conflito entre populações consumistas pouco
endinheiradas e populações residentes com poucos recursos, que têm de dedicar
uma fatia cada vez maior dos seus parcos rendimentos para pagar aos senhorios.
Como se resolve esse problema?
É fundamental ter uma estratégia turística bem definida.
Atualmente, os movimentos massificados geram um visitante de baixa
rentabilidade. Os hóspedes do alojamento local gastam muito menos dinheiro e
geram muito menos empregos. E o turismo interessa-nos pelo seu potencial de
criar riqueza. Temos de encontrar fórmulas através das quais o uso do
território seja desconcentrado, no espaço e no tempo, com uma importante
participação de turistas com um gasto médio diário alto.
Isso não será elitista?
Pode soar elitista, mas não é. O comportamento dos turistas
está estudado, e quem viaja não o faz gastando o último euro que lhe resta. A
questão não é: se não viajar desta forma não o pode fazer de outra maneira. Em
vez de fazer oito viagens por ano, por exemplo, pode fazer três, mas mais
interessantes, profundas e culturais. Não queremos que gastem dinheiro em
elementos de luxo, mas no pagamento a pessoas que permitam conhecer o
património e vivenciá-lo. São empregos que se criam. Não é elitista; é uma
decisão de consumo.
Mas não podemos impedir as pessoas de viajar...
Claro que não, mas em vez de comprarem oito camisas baratas,
as pessoas podem comprar duas boas camisas. Quer dizer: não é necessário viajar
tanto, nem que tanta gente viaje ao mesmo tempo ou que todos se movimentem nas
mesmas zonas exíguas das cidades... Temos de tomar decisões diferentes: menos
viagens, mais bem planificadas e com experiências locais.
Não é uma interferência na forma como as pessoas querem
viver?
Sim, é. A comunidade também pode interferir nas grandes
decisões, tal como fazem as empresas. Devemos condicionar e influenciar as
opções dos nossos amabilíssimos e desejadíssimos turistas a nosso favor.
Temos esse direito?
Temos, sim. Em primeiro lugar, porque temos direito às
nossas cidades. Em segundo, porque temos o direito de procurar que as nossas
cidades respondam às estratégias que nos servem melhor, e não apenas aos
interesses dos operadores turísticos ou dos proprietários de alojamento local.
O que quer dizer quando se refere ao “turismo sem
inteligência”?
É o turismo passivo. A inteligência é perceber que, se está
a acontecer uma coisa que não é interessante, se os direitos dos turistas estão
em conflito com os direitos dos habitantes das cidades e com a conservação do
nosso património, então temos de pensar no que podemos fazer de diferente.
É inevitável que os destinos turísticos sejam cada vez mais
parecidos uns com os outros?
Inevitável não é, mas nós sentimos essa pressão. Tal como
sentimos com a fast food: será que ela vai provocar o desaparecimento da
cultura gastronómica espanhola ou portuguesa? Depende de nós. A “american way
of life” continua a impor-se. A China ainda não quer influenciar a nível
linguístico e cultural, mas se desejar ter uma posição hegemónica não poderá
ignorar estes fatores. Teremos de ver como tudo isto se relacionará.
Parece-lhe que Lisboa compete pelo melhor preço ou pela
diferenciação da oferta turística?
Não tenho conhecimento suficiente para dar uma resposta
conclusiva. A minha perceção é que Lisboa está a sofrer uma grande banalização,
mas ainda conserva muitos elementos valiosos na diferenciação da sua oferta. No
entanto, está numa situação de risco bastante elevada.
Quais são os sinais de perigo?
Vi alguns números sobre o abandono dos habitantes citadinos.
Uma cidade que não tenha habitantes não é uma cidade viva. E o número crescente
de visitantes... Já se sente a temperatura a subir e, quando isso acontece,
temos de fazer um diagnóstico.
Como pode o turismo ser mais sustentável?
A palavra sustentável é problemática. Utilizamo-la para nos
referirmos ao que fazemos sem provocar danos, mas, mais do que desenvolvimento
sustentável, devemos falar de desenvolvimento compassivo. O turismo tem um
elemento básico de insustentabilidade: as viagens aéreas. Agora, podemos
desenvolver formas de turismo mais adaptadas. Em Navarra, criámos uma ponte
aérea com Frankfurt e chegámos a acordo para cada turista pagar uma taxa que,
depois, é aplicada na reflorestação. Temos de entender o turismo como o
principal instrumento de redistribuição da riqueza mundial. Em qualquer parte
do mundo, por mais pobre que seja, quando alguém pensa em melhorar a sua vida,
pensa no turismo – mas é um “material altamente inflamável”. É preciso
manejá-lo com muito cuidado.
O património pode ser uma das principais vítimas do turismo
massificado?
O aumento de intensidade do turismo faz com que ele passe de
uma função nutritiva para uma função predadora. As ramblas, quando eu vivia em
Barcelona, eram o nosso local de encontro, e os turistas também lá estavam
porque elas eram um lugar cosmopolita e atrativo. Agora, não há nenhum
barcelonês nas ramblas. Os turistas devoraram tudo. Os culpados não são os
turistas; somos nós que deixámos que isto acontecesse. São turistas a ver turistas.
Como imagina o turismo do futuro?
Com o desenvolvimento da Ásia, o fenómeno turístico será
muito mais intenso. Atrás virá a América Latina e África. E a maior pressão de
visitas será sobre a Europa. No entanto, acredito que é possível ter um turismo
inteligente, por exemplo, em aliança com as novas tecnologias. Podemos utilizar
a Inteligência Artificial em nosso benefício; em vez de trabalharmos todos em
função de Silicon Valley, podemos utilizá-la de forma mais humana,
identificando os padrões de consumo que interessam, por exemplo, a Lisboa.
Agora, para conseguirmos alterar as potentíssimas tendências de mercado, vamos
precisar de toda a ajuda do mundo: regulatória, tecnológica, social...
Concorda que o turismo é uma indústria de paz?
Sim, absolutamente. Tem perigos consumistas, mas não é
intrinsecamente consumista. É uma indústria de paz e também de intercâmbio
cultural. Quando não estamos a falar de viagens superficiais, de colecionismo
-‒ essas geram muito pouca interação.
Conhece bem Barcelona, um exemplo de gestão turística
desastrosa. O que resta da identidade da cidade?
Resistem ícones mortos. Gaudí converteu-se na identidade de
Barcelona, mas Barcelona não é apenas Gaudí. A cidade era enormemente atrativa
devido à sua condição mediterrânica, à sua tolerância e ao seu cosmopolitismo.
Tudo isto se ressente bastante. Muitos visitantes já só veem outros
estrangeiros. Não há contacto social e humano de qualquer tipo. Só se
identifica Barcelona com os azulejos de Gaudí.
Como se poderia ter evitado essa descaracterização?
Quando se decidiu tirar mais partido do turismo, depois da
oportunidade gerada pelas Olimpíadas [de 1992], acelerou-se a fundo. O problema
foi ter corrido demasiado bem. Além disso, Barcelona teve a má sorte de estar
sincronizada com o advento das multidões – e elas devoraram-na. Demorou-se a
reagir, alguns pensavam que eram resistências injustificadas de alguns cidadãos
intolerantes, mas agora todos estão conscientes do problema. Há empenho da
autarquia para se inverter a situação. Perdeu-se algo essencial: a identidade –
mas será recuperada.
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