“Se não prestarmos atenção aos cavalos-marinhos, vamos
perdê-los”
A directora do Projecto Seahorse – aliança de investigadores
e apaixonados por cavalos-marinhos – esteve em Portugal e mostrou-se preocupada
com a situação destes animais no Algarve. Se em 2001 havia mais de 1,3 milhões
de cavalos-marinhos na ria Formosa, agora estima-se que sejam cerca de 155 mil.
TERESA SOFIA SERAFIM 5 de Novembro de 2018, 7:36
A bióloga canadiana Amanda Vincent lidera o Projecto
Seahorse
Quando perguntamos a Amanda Vincent porque decidiu estudar
cavalos-marinhos, a directora do Projecto Seahorse sorri e dá uma resposta
pronta: “Porque são os machos a engravidar. É fascinante.” Entretanto, já
passaram mais de 30 anos desde que começou a investigar estes animais e o
fascínio não se desvaneceu. “Depois, deixei de estudar o seu comportamento e
passei a estudar a sua conservação.” No fundo, a forma de reprodução lenta ou a
mobilidade reduzida dos cavalos-marinhos tornam estes animais muito vulneráveis
a ameaças como a pesca de arrasto.
Amanda Vincent veio a Lisboa para um encontro sobre a
família Syngnathidae (que inclui cavalos-marinhos) e para a assinatura da renovação
de um protocolo de apoio financeiro – de 100 mil euros por ano – da fabricante
de chocolates Guylian. A fabricante apadrinha o Projecto Seahorse há cerca de
20 anos e já deu mais de 1,7 milhões de euros para a conservação de
cavalos-marinhos. De vestido preto que contrastava com um pregador em forma de
cavalo-marinho, Amanda Vincent falou com o PÚBLICO e mostrou-se preocupada com
a situação na ria Formosa.
Em 1986, Amanda Vincent tornou-se a primeira cientista a
estudar cavalos-marinhos debaixo de água. Dez anos depois – juntamente com
Heather Koldewey e Helen Stanley – lançou o Projecto Seahorse, uma aliança de
investigadores e apaixonados por cavalos-marinhos.
A bióloga canadiana – que preside o grupo de especialistas
em cavalos-marinhos, marinhas e esgana-gatas da União Internacional para a
Conservação da Natureza (IUCN) – e o seu projecto chegaram a Portugal em 2000.
Tudo aconteceu devido a Janelle Curtis, aluna de doutoramento de Amanda
Vincent. A ideia inicial da então estudante era investigar uma população de
cavalos-marinhos no Sul de Espanha. Contudo, não encontrou o que pretendia.
Acabou por chegar ao Algarve, onde descobriu uma das populações de
cavalos-marinhos mais densas do mundo.
Nessa altura, Janelle Curtis convidou Amanda Vincent para
que esta visse o que tinha descoberto na ria Formosa. Desse tempo, a bióloga
recorda-se de uma história divertida. “A Janelle tinha-me dito que havia
milhares de cavalos-marinhos. Mas, quando mergulhei, olhei e voltei a olhar e
não vi nenhum. Mas ela tinha-me dito que estavam por todo o lado!”
Então, Amanda Vincent mudou de estratégia, até porque estes
animais têm o poder de se camuflarem: “Desviei as ervas marinhas, olhei para o
fundo e havia um cavalo-marinho enorme aqui e ali. Estava à procura de algo
pequeno e invisível e, afinal, estava rodeada de cavalos-marinhos.”
Entretanto, já mergulhou mais vezes neste local e não se
inibe de fazer elogios à ria Formosa, que tem o estatuto de parque natural. “É
um ecossistema extraordinário. Em Portugal, deviam estar muito orgulhosos dele
porque é uma zona húmida majestosa.” Amanda Vincent descreve este sistema
lagunar-estuarino de cerca de 60 quilómetros de comprimento como “um pântano
muito alagado que nos faz sentir integrados no oceano.”
Nesse “pântano alagado”, há muitas ervas-marinhas e outras
condições que o tornam um “oásis para os cavalos-marinhos”. Lá habitam duas
espécies destes elegantes animais: a Hippocampus hippocampus e a Hippocampus
guttulatus (mais abundante). “É um dos melhores sítios do mundo para encontrar
esses cavalos-marinhos. É por isso que estamos tão preocupados com os seus
números actuais”, alerta a bióloga.
Ameaçados pela pesca ilegal
Estima-se que em 2001 existissem mais de 1,3 milhões de
cavalos-marinhos na ria Formosa, segundo dados fornecidos por Miguel Correia,
cientista da Universidade do Algarve e investigador associado do Projecto
Seahorse. Em 2008, já só se contaram 126.900, existindo assim uma descida de
cerca de 90%. Quatro anos depois, a situação melhorou e calcularam-se 747.300
cavalos-marinhos. Mas esta subida não se manteve e os dados deste ano já
apontam para que sejam 155.100, segundo um censo feito a partir de uma campanha
lançada pela Fundação Oceano Azul e o Oceanário de Lisboa, uma descida de quase
21% face a 2012.
“Portugal tem um autêntico desafio”, frisa Amanda Vincent.
“Tem assinado os acordos internacionais [como o CITES – Convenção sobre o
Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de
Extinção], que ajudam a regulamentar o comércio, mas não tem implementado estes
acordos muito bem.” Amanda Vincent explica que, ao assinar o CITES, Portugal
tem de assegurar os esforços necessários para que a população de
cavalos-marinhos não seja prejudicada.
Entre as maiores ameaças aos cavalos-marinhos na ria Formosa
estão a pesca ilegal, a extracção de areias, a dragagem descuidada dos canais
ou a circulação descontrolada de embarcações de recreio que destrói ervas
marinhas. “Se há uma pesca ilegal significativa e a ria Formosa é um parque
natural, então isso não deveria estar a acontecer”, indica Amanda Vincent.
“Neste momento, Portugal não está a dar a atenção devida à população de
cavalos-marinhos na ria Formosa. Gostaria de ver mais responsabilidade.”
Miguel Correia explica que as populações de cavalos-marinhos
podem sofrer oscilações em termos de abundância de origem natural – como
através da alteração da temperatura da água que faz descer a abundância de
alimento – ou de origem artificial. Nessa categoria, o investigador indica que
a pesca ilegal de cavalos-marinhos através de redes de arrasto é um dos
principais factores de pressão. E refere que é difícil apanhar quem faz esta
actividade em flagrante. “Hoje em dia, há falta de efectivos e de uma rede de
vigilância suficientemente eficaz que consiga detectar os infractores a
tempo.”
O biólogo salienta ainda que tem existido “uma apanha
dirigida” para o mercado asiático que pode levar à extinção dos
cavalos-marinhos na ria Formosa. “Há uma investigação a decorrer [um
levantamento e consciencialização sobre a situação junto das comunidades] e
sabe-se que alguns compradores abordavam pescadores da ria Formosa sobre várias
espécies, entre as quais de pepinos-do-mar e cavalos-marinhos”, diz, indicando
que foi informação veio de relatos pescadores a partir de uma campanha de ONG
como a Sciaena - Associação de Ciências Marinhas e Cooperação ou a Associação
Natureza Portugal, a Fundação Oceano Azul e o Oceanário de Lisboa.
“Há investigações a decorrer sobre várias ilegalidades na
ria Formosa, mas especificamente só sobre cavalos-marinhos não”, diz ao PÚBLICO
o capitão do Porto de Faro, Nuno Cortes Lopes. “É bastante redutor que a razão
principal para a diminuição dos cavalos-marinhos na ria Formosa seja a apanha
ilegal nos últimos 15 anos”, acrescenta, referindo que há factores como a
poluição – como o tráfego de embarcações, nomeadamente de recreio e
marítimo-turísticas – ou a diminuição de pradarias na ria e até porque o número
destes animais é cada vez menor.
Nuno Cortes Lopes salienta que “nunca foi obtida informação
válida nem foi detectado a bordo de embarcações, ou na posse de sujeitos
interceptados, a presença de qualquer quantidade significativa de
cavalos-marinhos, embora existam notícias por comprovar que nos anos de 2013 a
2015 tenha havido o interesse na sua captura para o mercado asiático.”
Acrescenta ainda que em 2017 e 2018 foram realizadas várias acções dirigidas à
prevenção e combate de actividades ilegais na captura de espécies protegidas,
onde estão inseridos os cavalos-marinhos.
O capitão do Porto de Faro destaca que as capitanias dos
portos e comandos locais da Policia Marítima de Faro e de Olhão, “no seu
dia-a-dia e no âmbito das suas múltiplas competências, continuarão bastante
empenhados e atentos a esta complexa temática dos cavalos-marinhos na ria
Formosa, nomeadamente através da realização de operações de identificação e
controlo da espécie, bem como na fiscalização de eventuais actividades de
captura, não tendo, até ao momento, ocorrido nenhuma detecção de actividade
ilegal.” Além de o CITES estar em vigor em Portugal – proibindo a
comercialização destas espécies protegidas, considerando-o um crime ambiental
–, Nuno Cortes Lopes refere que a apanha e pesca lúdica de cavalos-marinhos
também são proibidas por portarias.
Miguel Correia ressalva ainda que, de facto, há legislação
que protege as espécies da apanha, assim como coimas para penalizar quem comete
essas infracções. Contudo, alerta que não há “uma regulamentação propriamente
dita” nem nenhum protocolo de boas-práticas para as actividades
marítimo-turísticas. “Surgiram na ria Formosa, quase de forma exponencial,
[actividades] marítimo-turísticas que fazem saídas das cidades principais para
as ilhas, assim como visitas para os canais secundários da ria e snorkeling
para ver cavalos-marinhos.”
Os cavalos-marinhos são animais sedentários e precisam de um
lugar abrigado para se reproduzirem. Em média, têm 200 a 400 filhos de cada vez
(no limite, podem ter mil)
Miguel Correia conta que as próprias empresas
marítimo-turísticas têm um biólogo que leva as pessoas a verem
cavalos-marinhos. Depois, durante a saída, apanha-os, faz com que circulem
pelos clientes ou até os põe num tupperware. “Esta não é a mensagem correcta
quando se pensa ao nível da conservação da espécie. A regulamentação dessa
actividade é premente.” Além disso, adianta que as empresas não têm pessoas com
formação que fazem esta prática e que para manusear um cavalo-marinho é preciso
autorização do CITES. Como tal, o biólogo diz estar disponível para estabelecer
um manual de boas-práticas para que esta actividade possa ser um meio de passar
a mensagem sobre a situação dos cavalos-marinhos.
Vagarosos na reprodução
Amanda Vincent destaca que o estilo de vida mais lento dos
cavalos-marinhos também os torna mais vulneráveis. “Na maior parte das
espécies, a fêmea e o macho juntam-se e dançam todas as manhãs e de forma
permanente. E se perderem o parceiro, podem parar de se reproduzir durante um
longo período de tempo.”
Quando se reproduzem, tudo acontece de forma vagarosa. A
fêmea transfere ovos para a bolsa do macho e ele fica grávido. Depois, tem de
se cuidar das crias durante a “gravidez” para que os ovos sejam fertilizados
dentro da bolsa durante duas a três semanas. Por fim, os juvenis eclodem e são
expelidos através de movimentos de bombardeamento.
Para que isto aconteça, têm de encontrar um lugar abrigado e
com estruturas. Além disso, os cavalos-marinhos não se movimentam muito. “Se
encontrar hoje um cavalo-marinho, vai encontrá-lo de novo amanhã [no mesmo
local]. Se se pensar nas espécies que são mais lentas na reprodução, têm uma
estrutura forte e não se movimentam muito.” Como tal, se se pescar
intensamente, isso vai deixá-los vulneráveis. “A ria Formosa está muito
vulnerável neste momento”, assinala a bióloga.
Mas nem só a situação no Algarve preocupa Amanda Vincent.
“Em todo o mundo, o maior problema é a pesca do arrasto, porque quando a rede
se solta leva tudo com ela. Nada escapa ao arrasto e os cavalos-marinhos vivem
em habitats onde se aplica o arrasto.” No México, Tailândia, Vietname e
Moçambique estão algumas das áreas que preocupam a bióloga, que adianta que a
situação não só é alarmante para as mais de 40 espécies de cavalos-marinhos
como também para as restantes espécies.
Quanto ao comércio, refere que os cavalos-marinhos são
usados como lembranças ou na medicina tradicional chinesa. “O maior [uso] é, de
longe, a medicina tradicional. Na medicina chinesa, os cavalos-marinhos são
usados há milhares de anos e faz parte daquela cultura. O problema não é o seu
uso, é o seu uso excessivo”, considera, referindo que o comércio tem de ser
regulado e o ilegal controlado.
Actualmente, a transacção de cavalos-marinhos (secos, vivos
ou mortos) para a medicina tradicional chinesa é de dezenas de milhões de
indivíduos por ano para mais de 80 países, segundo um relatório feito a partir
da base de dados do CITES. Miguel Correia refere que, por exemplo em Hong Kong,
um quilo de cavalos-marinhos secos pode chegar a cerca de 2200 euros. Mas
Amanda Vincent confessa que a associação de comerciantes de medicina chinesa de
Hong Kong tem sido uma aliada do Projecto Seahorse.
Portanto, a sua grande luta é a pesca de arrasto. “Se tiras
um cavalo-marinho da água, do ponto de vista da conservação, não interessa se o
tiras por curiosidade ou para a medicina. Devemos preocupar-nos mais a nível da
pressão e não do uso por si só”, avisa. “Não é só com os cavalos-marinhos, mas
com tudo o que vai na rede. Também não é bom para a segurança alimentar porque
muitos juvenis ou espécies comerciais importantes acabam nas redes.”
Como solução para a devastação dos habitats dos
cavalos-marinhos e das suas populações, Amanda Vincent nomeia a importância da
combinação entre áreas marinhas protegidas – o Projecto Seahorse já ajudou a
criar 36 –, pescas, limites na comercialização, mudanças na legislação,
sensibilização nas escolas e das comunidades ou actividades de observação de
cidadãos que poderão ajudar a encontrar mais informação (em falta) sobre os
cavalos-marinhos.
“Não sabemos o
suficiente para fazermos uma avaliação para toda a Europa. Mas sabemos que o
Algarve precisa de atenção”, frisa Amanda Vincent. Miguel Correia acrescenta
que as duas espécies existentes no Algarve estão classificadas como espécies
com falta de informação pela IUCN. Por isso, no futuro – até porque existem
cavalos-marinhos nos estuários do Tejo e do Sado ou na lagoa de Melides –
pretende fazer uma avaliação global e depois regional e nacional da população
de cavalos-marinhos.
Por fim, Amanda Vincent aconselha: “Recusem-se a comer
qualquer coisa que venha da pesca de arrasto. Se vai a um restaurante ou a um
supermercado devia perguntar se o que come vem da pesca de arrasto. Se não
sabem, então é porque não é um bom supermercado ou restaurante.” Também recomenda
que se questionem os governos sobre a implementação das leis ou da criação de
áreas protegidas.
“Algumas pessoas pensavam que os cavalos-marinhos nem
existiam, que eram mágicos. É alguma dessa magia que me atrai”, revela. “Já
passei milhares de horas a observá-los. Há já uma parte de mim neles e uma
parte deles em mim.” Além disso, relembra que estão na economia, que configuram
habitats porque são grandes predadores e perduram na nossa cultura. “Desde
sempre que há cavalos-marinhos nas narrativas. Toda a gente fala sobre eles.
Mas se não prestarmos atenção, vamos perdê-los.”
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