domingo, 25 de novembro de 2018

A alimentação é o que mais pesa na pegada ecológica de Portugal / Por detrás da “máscara” da indústria pecuária, esconde-se A Vaca que Não Ri /Alterações climáticas: ninguém repara nas vacas a pastar



A alimentação é o que mais pesa na pegada ecológica de Portugal

Saldo entre a pegada ecológica e a capacidade de regeneração dos recursos naturais coloca seis municípios portugueses sempre no papel de devedores. Concelhos do interior querem ser compensados pelo desempenho produtivo.

MARGARIDA DAVID CARDOSO 4 de Novembro de 2018, 7:00

O conceito de pegada ecológica é quase sempre colado à emissão de dióxido de carbono com origem nos transportes. E ainda que esta seja a segunda componente mais relevante, a alimentação é a principal alavanca das pegadas excessivas de seis municípios portugueses que quiseram calcular a pressão que o consumo dos seus cidadãos exerce sobre os ecossistemas. Foi isso que um projecto que junta a associação ambientalista Zero, a Global Footprint Network (responsável pelo conceito e métrica da pegada ecológica) e a Universidade de Aveiro fez para Almada, Bragança, Castelo Branco, Guimarães, Lagoa e Vila Nova de Gaia.

É a primeira vez que se olha para a pegada ecológica ao mesmo tempo que se calcula a biocapacidade dos municípios. A pegada ecológica mede a área – em terras de cultivo, pastagens, florestas, áreas de pesca – que um cidadão precisa para produzir o que consome e absorver o lixo que produz. A biocapacidade mede aquela que está disponível para regenerar esses recursos. Ambas são medidas em hectares globais (gha) por pessoa e, para este estudo, baseiam-se em dados de 2011 a 2016. Ficou demostrado que estes municípios – como, aliás, Portugal e outros cerca de 130 países – consomem mais recursos do que aqueles que estão disponíveis, ficando a dever à natureza. O peso do consumo insustentável de produtos alimentares é tão evidente neste cálculo que os investigadores decidiram desagregá-lo e calcular a pegada ecológica da alimentação.

Não é surpreendente que os municípios com mais população sejam aqueles com maior peso na pegada nacional: Vila Nova de Gaia, Almada e Guimarães representavam, respectivamente, 2,9%, 1,7% e 1,4% da pegada ecológica de Portugal, em 2016. E que a biocapacidade seja mais elevada nos concelhos com vasto manto florestal e agrícola. Castelo Branco e Bragança são, por isso, os que mais contribuem para o total nacional, com 0,9% e 0,7%, respectivamente.

O que não era esperado, diz Sara Moreno Pires, coordenadora científica do projecto e professora na Universidade de Aveiro, eram as elevadas pegadas ecológicas nestes dois municípios interiores. Um cidadão de Castelo Branco precisa de 4,02 gha – e um de Bragança de 4,01 gha – de área produtiva para suportar o seu estilo de vida. Em média, os portugueses precisam de 3,94 gha por pessoa.

Isto explica-se pelo que os cidadãos colocam no prato. Bragança tem uma pegada ecológica na alimentação 19% superior à média nacional (1,27 gha, quando a média é 1,16 gha). E a alimentação já é, para todo o país, o elemento que mais pressão traz aos ecossistemas. “Os nossos padrões de consumo são de tal forma similares nas zonas urbanas que o impacto que a interioridade poderia ter é diluído”, diz a investigadora da Universidade de Aveiro.

Nestes seis municípios, o consumo de proteína animal corresponde a mais de metade da pegada da alimentação: a carne pesa entre 23% a 28%, e o peixe cerca de 26%. E se tivermos em conta que a produção de carne vermelha, de bacalhau, atum e salmão – os peixes mais consumidos em Portugal – exige muitos recursos naturais, justifica-se por que Portugal é dos países mediterrânicos cuja alimentação mais mal faz ao planeta. É também dos que precisa de mais espaço produtivo para ter que comer, demonstrou um estudo de 2015 da Global Footprint Network.

“Isto reflecte a forma como vivemos em torno da comida. Temos que assumir uma mudança no consumo – passar de um quilo de bacalhau para um quilo de cavala, por exemplo”, diz Sara Moreno Pires. A mudança deve passar também pela redução do desperdício na restauração, a compra de produtos locais para as cantinas e a criação de redes de produtores locais.

Depois disso, só os transportes têm um peso significativo na pegada ecológica (entre 19 e 23%).

Em termos de pegada ecológica, os concelhos de Castelo Branco e Bragança só são ultrapassados por Almada, que chega aos 4,8 gha por pessoa. Aliás, se a população mundial consumisse como os cidadãos de um destes três municípios, seriam necessários 2,4 planetas para repor os recursos naturais.

A questão pode ainda ser vista noutro prisma. Se a população mundial consumisse como consome, em média, um cidadão de Almada, os recursos que o planeta é capaz de produzir num ano teriam esgotado a 27 de Maio. O mesmo acontecia a 30 de Maio se todos fossem como os bragantinos ou os albicastrenses. No mais tardar, o dia de sobrecarga da Terra acontecia a 4 Julho, se o consumo humano seguisse o padrão dos habitantes de Lagoa. Este é o concelho com a menor pegada (3,25 gha), facto que os investigadores atribuem ao menor poder de compra. Também por isso, este valor diverge tanto da pegada ecológica média de um cidadão da região do Algarve (é 16% menor).

Estes dados, vistos de forma isolada, permitem aos municípios tomar políticas mais informadas e entender melhor os problemas ambientais do território. Mas Sara Moreno Pires considera que não se pode assumir que todas as cidades têm que ser, por si só, sustentáveis. Ainda que haja oportunidade para valorizar e proteger os recursos naturais, de forma a tirar melhor proveito deles, há condicionantes locais – como a densidade populacional em concelhos fortemente urbanos, os padrões de consumo e poder de compra, ou o perfil das actividades económicas – que são difíceis de ultrapassar para se equilibrar a balança entre o que se gasta e o que se produz.

Por isso, as “zonas urbanas precisam de valorizar os territórios do interior, porque é aí que está a capacidade produtiva”. São esses que permitem que a balança não seja mais desequilibrada. Esta necessidade de valorizar economicamente a biodiversidade e compensar os municípios que gerem territórios importantes para a sustentabilidade do país, que tem sido defendida por académicos e ambientalistas, foi apoiada pelos autarcas dos concelhos com maior biocapacidade, Bragança e Castelo Branco, durante a apresentação dos estudos, esta semana, nestas cidades. Afinal, o “equilíbrio litoral-interior é também vital para a sustentabilidade do país”, diz Sara Moreno Pires.

O mesmo é aplicável a nível local, por exemplo, se se “compensar um proprietário privado que tem uma área florestal importantíssima para o concelho para a poder preservar", exemplifica.

A partir do próximo ano, estes concelhos vão poder aprofundar estes resultados e testar opções de mitigação com o auxílio de calculadoras online de pegada ecológica que, pela primeira vez, serão alimentadas por dados portugueses, calibrados para o contexto de cada município. E outros municípios podem juntar-se ao projecto, conhecendo mais de si e ajudando a construir uma imagem mais completa da pegada que, localmente, se deixa no ecossistema nacional.




Por detrás da “máscara” da indústria pecuária, esconde-se A Vaca que Não Ri

Rui Pedro Fonseca, sociólogo, escreveu um livro onde explica as poucas razões que as vacas exploradas e mortas pela indústria pecuária teriam para se rir — mesmo que conseguissem fazê-lo. Nele, expõe a "máscara" usada por um "sistema cruel": "As práticas de exploração têm de ser expostas."

RENATA MONTEIRO 19 de Novembro de 2018, 8:15
https://www.publico.pt/2018/11/19/p3/noticia/tras-mascara-exploracao-animal-escondese-vaca-nao-ri-1851369

Há uma “vaca que ri” porque vive livre num prado verdejante, onde pode comunicar com o resto da manada, comer relva e produzir leite destinado à cria que prospera, na sua companhia. Mas fora da “utopia” dos anúncios publicitários da indústria pecuária — e dentro da realidade da linha de produção —, há milhões de vacas que não se riem porque vivem e morrem sempre “encarceradas”, longe da “luz solar e do ar fresco, sem espaço para se mexerem, sem conseguirem comunicar com o resto da manada; “doentes” e “com feridas expostas”;” vítimas de “violações reiteradas” e “ordenhas mecânicas” várias vezes ao dia; alvo de “pancadas e descargas eléctricas”, “mutilações” e “inseminações forçadas” que geram uma cria de quem é, muitas vezes, imediatamente separada.

Quando um bife nos chega ao prato, escreve Rui Pedro Fonseca, “todas estas práticas violentas foram omitidas". "Como poderemos, afinal, sentir empatia se não testemunhamos uma única parte do processo até que a vaca foi sujeita à morte e, posteriormente, fragmentada?” É esta “máscara” — usada como “defesa imprescindível” de um sistema que se esconde atrás de “representações idílicas” — que o sociólogo quer arrancar no livro A Vaca Que Não Ri – Animais, “Carne” e Leite Bovino na Cultura Dominante.

Não são “teorias da conspiração”, descarta o autor, logo nas primeiras páginas. O investigador de 39 anos garante que se fosse possível “aceder às práticas de maneio” dos animais criados para consumo, o consumo de produtos de origem animal “decairia de forma substancial”. A explicação é óbvia: “Se para a maior parte de nós o consumo destes animais é aceite como conveniente e prazeroso, cogitar sobre os respectivos processos de exploração pode constituir um processo penoso.” Dito de outra forma: pensar “na violência e na morte” inerentes à produção intensiva de milhões de milhões de seres sencientes levam a “sérios dilemas éticos”. E a um bife que, de repente, se torna bem menos apetitoso.

Será por isso que resistimos a uma “profunda reflexão ética” no momento em que escolhemos o que comer? O autor defende que o “mecanismo de fragmentar” o corpo do animal, a linguagem eufémica (“bife”, “bitoque”, “fêvera”), a falta de mediatização e escrutínio público das condições e dos processos de exploração animal e a própria localização das instalações intensivas, longe dos aglomerados urbanos, são aspectos chave para “que permaneçamos alheios e desligados emocionalmente face às cruéis práticas de exploração animal”.

O livro, lançado no início de Novembro, resulta de cinco anos de trabalho e do pós-doutoramento realizado no Centro de Investigação de Estudos em Sociologia, do Instituto Universitário de Lisboa. Nele, o sociólogo portuense — vegan há 16 anos e confesso activista pelos direitos dos animais — estudou O carnismo na Cultura mediática portuguesa, analisando os conteúdos dos três principais canais de televisão portugueses e de casos de estudo de anúncios publicitários bem conhecidos, protagonizados por “vacas felizes, bem tratadas e alimentadas”.

Ao “penetrar nas sombrias fendas da máscara”, o sociólogo põe a nu as questões éticas de reduzir um “ser vivo dotado de sensibilidade” a uma “coisa móvel” (termos usados na legislação portuguesa para descrever primeiro animais de companhia e depois animais de criação) e expõe os graves impactes ambientais de uma das indústrias mais poluentes do mundo, a gestão danosa dos recursos naturais (solo, água, energia, mau uso dos alimentos) e a “publicidade enganosa” cujo “objectivo é, tão-somente, suscitar a nossa adesão”.

Há 16 anos, vídeos gravados em matadouros e disponibilizados no YouTube por activistas “mudaram substancialmente a percepção” do investigador. Tal como acontece no maior parte dos casos, diz, decidir reflectir profundamente sobre um “sistema cruel” desencadeou “dilemas éticos” que abriram “o leque para novas opções e práticas alimentares diferenciadas das praticadas pela cultura dominante”.

Segundo dados da Happy Cow, há seis vezes mais restaurantes vegetarianos em Portugal do que havia há dez anos, sendo que um terço deles abriu portas entre 2016 e 2017. Na mesma década, o número de vegetarianos em Portugal terá quadruplicado, chegando às 120 mil pessoas. A maior parte delas terá entre 25 e 34 anos e será do sexo feminino, conclusões que não deixam Rui Pedro Fonseca espantado. “Os compromissos culturais em torno destes produtos são ainda muito fortes”, assegura, dizendo que existe um “consenso fabricado”. “A carne, principalmente, é um alimento muito simbólico. Está bastante enraizada com a ideia da masculinidade, de ter força física”, pelo que é "natural" que existam mais mulheres a abdicar dela.

Ainda, o consumo de leite e derivados, carne, ovos e peixe é visto pela grande maioria da população portuguesa “enquanto prática natural, normal e necessária”. E também por isso é que “a maior parte das pessoas que têm contacto com vegans ou vegetarianos usualmente tem um argumentário bastante padronizado. E também preconceitos.” Admite, ao P3: “Eu tinha os meus. Nomeadamente: a carne é o roteiro essencial para um homem, a carne tem a proteína por excelência, nós éramos caçadores, temos caninos descomunais.” Para isto, acrescenta, contribui também o uso da expressão “regime [vegetariano]”, que gera associações a outras palavras como “obrigatoriedade” ou “restrição”. “Há esta noção de que a comida vegetariana é muito restrita, quando na verdade é muito diversificada.”

Mas a discussão vai muito além do que cada um escolhe ao pegar no menu, acredita. “O pano de fundo da discussão deve ter como mote as repercussões de um consumo (totalmente desnecessário) de indivíduos cuja vontade de viver deverá ser mais valorizada relativamente à nossa vontade orientada pelo principio do prazer.”

Em último caso, comenta, é um paradoxo. Numa altura em que nos preocupamos cada vez mais com o bem-estar animal, “continuamos a comer animais, reproduzindo práticas (alimentares) que entram em conflito com os nossos valores”. Às “questões éticas”, acrescem “questões ambientais urgentes”. “Se nós queremos um futuro sustentável temos de fazer uma escolha. A agropecuária está a destruir o planeta e eu receio que o lobby seja realmente forte. Da nossa parte acho que, no mínimo, a redução é uma obrigatoriedade.”


Alterações climáticas: ninguém repara nas vacas a pastar

Estima-se que a produção de animais seja responsável pela emissão global de cerca de 14,5% dos gases poluentes de estufa, ao passo que todos os transportes no mundo são responsáveis por 13% dessa emissão global, comparativamente.

Nuno Alvim

Nuno Alvim é activista e presidente da Associação Vegetariana Portuguesa, um confesso idealista e também um nadinha realista.

31 de Julho de 2018, 11:52
 https://www.publico.pt/2018/07/31/p3/cronica/alteracoes-climaticas-ninguem-repara-nas-vacas-a-pastar-1839632

Nunca antes foi tão urgente repensar o nosso modo de vivência neste planeta e a nossa relação com o ambiente, que é o nosso suporte de vida — o de todos os seres vivos e das gerações vindouras.

Torna-se assim cada vez mais pertinente descortinar quais as principais forças motrizes por detrás das alterações climáticas e adoptar uma abordagem pragmática e despolitizada, que faça efectivamente diferença. Será caso para dizer que, se a casa estiver a arder, não vamos fechar a torneira que deixamos aberta; vamos, sim, procurar apagar o incêndio.

O discurso das alterações climáticas tem sido dominado ao longo de décadas pelo problema do uso de combustíveis fósseis, cada vez mais visível, cada vez mais badalado, desde que Al Gore o popularizou no documentário Verdade Inconveniente. E, de facto, essa é uma problemática que tem de ser abordada. Construímos o nosso modelo civilizacional na base da suposição de que o petróleo duraria indefinidamente e numa altura em que não estávamos plenamente conscientes do impacto sistémico do seu uso, não só ecológico, mas também na saúde humana.

Em geral, a produção de qualquer alimento de origem vegetal tem uma pegada ecológica significativamente inferior à da produção de alimentos de origem animal.
E o que pode uma só pessoa fazer para combater este problema? Comprar um carro eléctrico, ou melhor, andar de bicicleta? Que outras soluções existem para além destas?

Num debate saturado com o tópico dos combustíveis fósseis, tem sido deixado de fora do espectro de discussão ambientalista um outro problema, o que porventura mais contribui para as alterações climáticas que enfrentamos, negligenciado na sua importância. Fala-se da indústria agropecuária, cujo impacto no ecossistema suplanta todas as outras. No entanto, parece que ninguém repara nas vacas a pastar. Estima-se que a produção de animais seja responsável pela emissão global de cerca de 14,5% dos gases poluentes de estufa, ao passo que todos os transportes no mundo são responsáveis por 13% dessa emissão global, comparativamente. Esta é a estimativa mais conservadora.

Em Portugal, a Quercus, reconhecida entidade ambientalista, constatou que a agricultura, inclusive a agropecuária, utiliza 80% dos recursos hídricos de Portugal. Estatísticas semelhantes encontram-se para outros países do mundo, onde a produção de animais em regime intensivo é uma das principais responsáveis pelo desgaste dos recursos hídricos e, no entanto, o nosso foco tem recaído essencialmente sobre os restantes 20%, uma percentagem marginal, em boa parte correspondendo ao uso doméstico.

Todavia, as campanhas de poupança de água e preservação dos recursos hídricos focam-se quase exclusivamente no uso doméstico, sem fazer qualquer referência ao impacto das nossas escolhas como consumidores. Se tivermos que esvaziar uma banheira cheia de água, não fará mais sentido tirarmos a tampa em vez de usarmos uma colher de chá?

Tal como sucede com o uso dos combustíveis fósseis, podemos, na nossa esfera individual, agir de forma relevante, com impacto político, introduzindo mudanças no nosso paradigma alimentar, começando pela redução do nosso consumo de carne e de outra proteína animal, privilegiando o consumo de legumes ou leguminosas. Sabemos que a produção de um único quilograma de carne de vaca, por exemplo, requer um dispêndio de cerca de 16.700 litros de água, ao passo que a produção de um quilograma de leguminosas como o feijão de soja requer apenas cerca de 2500 litros. Em geral, a produção de qualquer alimento de origem vegetal tem uma pegada ecológica significativamente inferior à da produção de alimentos de origem animal.

Munidos com esta informação, podemos tomar decisões simples enquanto consumidores, com consequências imediatas, que qualquer um de nós pode pôr em prática. Podemos ser agentes de mudança, através dos nossos pratos.

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