A alimentação é o que mais pesa na pegada ecológica de
Portugal
Saldo entre a pegada ecológica e a capacidade de regeneração
dos recursos naturais coloca seis municípios portugueses sempre no papel de
devedores. Concelhos do interior querem ser compensados pelo desempenho
produtivo.
MARGARIDA DAVID CARDOSO 4 de Novembro de 2018, 7:00
O conceito de pegada ecológica é quase sempre colado à
emissão de dióxido de carbono com origem nos transportes. E ainda que esta seja
a segunda componente mais relevante, a alimentação é a principal alavanca das
pegadas excessivas de seis municípios portugueses que quiseram calcular a
pressão que o consumo dos seus cidadãos exerce sobre os ecossistemas. Foi isso
que um projecto que junta a associação ambientalista Zero, a Global Footprint
Network (responsável pelo conceito e métrica da pegada ecológica) e a
Universidade de Aveiro fez para Almada, Bragança, Castelo Branco, Guimarães,
Lagoa e Vila Nova de Gaia.
É a primeira vez que se olha para a pegada ecológica ao
mesmo tempo que se calcula a biocapacidade dos municípios. A pegada ecológica
mede a área – em terras de cultivo, pastagens, florestas, áreas de pesca – que
um cidadão precisa para produzir o que consome e absorver o lixo que produz. A
biocapacidade mede aquela que está disponível para regenerar esses recursos.
Ambas são medidas em hectares globais (gha) por pessoa e, para este estudo,
baseiam-se em dados de 2011 a 2016. Ficou demostrado que estes municípios –
como, aliás, Portugal e outros cerca de 130 países – consomem mais recursos do
que aqueles que estão disponíveis, ficando a dever à natureza. O peso do
consumo insustentável de produtos alimentares é tão evidente neste cálculo que
os investigadores decidiram desagregá-lo e calcular a pegada ecológica da
alimentação.
Não é surpreendente que os municípios com mais população
sejam aqueles com maior peso na pegada nacional: Vila Nova de Gaia, Almada e
Guimarães representavam, respectivamente, 2,9%, 1,7% e 1,4% da pegada ecológica
de Portugal, em 2016. E que a biocapacidade seja mais elevada nos concelhos com
vasto manto florestal e agrícola. Castelo Branco e Bragança são, por isso, os
que mais contribuem para o total nacional, com 0,9% e 0,7%, respectivamente.
O que não era esperado, diz Sara Moreno Pires, coordenadora
científica do projecto e professora na Universidade de Aveiro, eram as elevadas
pegadas ecológicas nestes dois municípios interiores. Um cidadão de Castelo
Branco precisa de 4,02 gha – e um de Bragança de 4,01 gha – de área produtiva
para suportar o seu estilo de vida. Em média, os portugueses precisam de 3,94
gha por pessoa.
Isto explica-se pelo que os cidadãos colocam no prato.
Bragança tem uma pegada ecológica na alimentação 19% superior à média nacional
(1,27 gha, quando a média é 1,16 gha). E a alimentação já é, para todo o país,
o elemento que mais pressão traz aos ecossistemas. “Os nossos padrões de
consumo são de tal forma similares nas zonas urbanas que o impacto que a
interioridade poderia ter é diluído”, diz a investigadora da Universidade de
Aveiro.
Nestes seis municípios, o consumo de proteína animal
corresponde a mais de metade da pegada da alimentação: a carne pesa entre 23% a
28%, e o peixe cerca de 26%. E se tivermos em conta que a produção de carne
vermelha, de bacalhau, atum e salmão – os peixes mais consumidos em Portugal –
exige muitos recursos naturais, justifica-se por que Portugal é dos países
mediterrânicos cuja alimentação mais mal faz ao planeta. É também dos que
precisa de mais espaço produtivo para ter que comer, demonstrou um estudo de
2015 da Global Footprint Network.
“Isto reflecte a forma como vivemos em torno da comida.
Temos que assumir uma mudança no consumo – passar de um quilo de bacalhau para
um quilo de cavala, por exemplo”, diz Sara Moreno Pires. A mudança deve passar
também pela redução do desperdício na restauração, a compra de produtos locais
para as cantinas e a criação de redes de produtores locais.
Depois disso, só os transportes têm um peso significativo na
pegada ecológica (entre 19 e 23%).
Em termos de pegada ecológica, os concelhos de Castelo
Branco e Bragança só são ultrapassados por Almada, que chega aos 4,8 gha por
pessoa. Aliás, se a população mundial consumisse como os cidadãos de um destes
três municípios, seriam necessários 2,4 planetas para repor os recursos
naturais.
A questão pode ainda ser vista noutro prisma. Se a população
mundial consumisse como consome, em média, um cidadão de Almada, os recursos
que o planeta é capaz de produzir num ano teriam esgotado a 27 de Maio. O mesmo
acontecia a 30 de Maio se todos fossem como os bragantinos ou os
albicastrenses. No mais tardar, o dia de sobrecarga da Terra acontecia a 4
Julho, se o consumo humano seguisse o padrão dos habitantes de Lagoa. Este é o
concelho com a menor pegada (3,25 gha), facto que os investigadores atribuem ao
menor poder de compra. Também por isso, este valor diverge tanto da pegada
ecológica média de um cidadão da região do Algarve (é 16% menor).
Estes dados, vistos de forma isolada, permitem aos
municípios tomar políticas mais informadas e entender melhor os problemas
ambientais do território. Mas Sara Moreno Pires considera que não se pode
assumir que todas as cidades têm que ser, por si só, sustentáveis. Ainda que
haja oportunidade para valorizar e proteger os recursos naturais, de forma a
tirar melhor proveito deles, há condicionantes locais – como a densidade
populacional em concelhos fortemente urbanos, os padrões de consumo e poder de
compra, ou o perfil das actividades económicas – que são difíceis de
ultrapassar para se equilibrar a balança entre o que se gasta e o que se
produz.
Por isso, as “zonas urbanas precisam de valorizar os
territórios do interior, porque é aí que está a capacidade produtiva”. São
esses que permitem que a balança não seja mais desequilibrada. Esta necessidade
de valorizar economicamente a biodiversidade e compensar os municípios que
gerem territórios importantes para a sustentabilidade do país, que tem sido
defendida por académicos e ambientalistas, foi apoiada pelos autarcas dos
concelhos com maior biocapacidade, Bragança e Castelo Branco, durante a
apresentação dos estudos, esta semana, nestas cidades. Afinal, o “equilíbrio
litoral-interior é também vital para a sustentabilidade do país”, diz Sara
Moreno Pires.
O mesmo é aplicável a nível local, por exemplo, se se
“compensar um proprietário privado que tem uma área florestal importantíssima
para o concelho para a poder preservar", exemplifica.
A partir do próximo ano, estes concelhos vão poder
aprofundar estes resultados e testar opções de mitigação com o auxílio de
calculadoras online de pegada ecológica que, pela primeira vez, serão
alimentadas por dados portugueses, calibrados para o contexto de cada
município. E outros municípios podem juntar-se ao projecto, conhecendo mais de
si e ajudando a construir uma imagem mais completa da pegada que, localmente,
se deixa no ecossistema nacional.
Por detrás da “máscara” da indústria pecuária, esconde-se A
Vaca que Não Ri
Rui Pedro Fonseca, sociólogo, escreveu um livro onde explica
as poucas razões que as vacas exploradas e mortas pela indústria pecuária
teriam para se rir — mesmo que conseguissem fazê-lo. Nele, expõe a
"máscara" usada por um "sistema cruel": "As práticas
de exploração têm de ser expostas."
RENATA MONTEIRO 19 de Novembro de 2018, 8:15
https://www.publico.pt/2018/11/19/p3/noticia/tras-mascara-exploracao-animal-escondese-vaca-nao-ri-1851369
Há uma “vaca que ri” porque vive livre num prado verdejante,
onde pode comunicar com o resto da manada, comer relva e produzir leite
destinado à cria que prospera, na sua companhia. Mas fora da “utopia” dos
anúncios publicitários da indústria pecuária — e dentro da realidade da linha
de produção —, há milhões de vacas que não se riem porque vivem e morrem sempre
“encarceradas”, longe da “luz solar e do ar fresco, sem espaço para se mexerem,
sem conseguirem comunicar com o resto da manada; “doentes” e “com feridas
expostas”;” vítimas de “violações reiteradas” e “ordenhas mecânicas” várias
vezes ao dia; alvo de “pancadas e descargas eléctricas”, “mutilações” e
“inseminações forçadas” que geram uma cria de quem é, muitas vezes,
imediatamente separada.
Quando um bife nos chega ao prato, escreve Rui Pedro
Fonseca, “todas estas práticas violentas foram omitidas". "Como
poderemos, afinal, sentir empatia se não testemunhamos uma única parte do
processo até que a vaca foi sujeita à morte e, posteriormente, fragmentada?” É
esta “máscara” — usada como “defesa imprescindível” de um sistema que se
esconde atrás de “representações idílicas” — que o sociólogo quer arrancar no
livro A Vaca Que Não Ri – Animais, “Carne” e Leite Bovino na Cultura Dominante.
Não são “teorias da conspiração”, descarta o autor, logo nas
primeiras páginas. O investigador de 39 anos garante que se fosse possível
“aceder às práticas de maneio” dos animais criados para consumo, o consumo de
produtos de origem animal “decairia de forma substancial”. A explicação é
óbvia: “Se para a maior parte de nós o consumo destes animais é aceite como
conveniente e prazeroso, cogitar sobre os respectivos processos de exploração
pode constituir um processo penoso.” Dito de outra forma: pensar “na violência
e na morte” inerentes à produção intensiva de milhões de milhões de seres
sencientes levam a “sérios dilemas éticos”. E a um bife que, de repente, se torna
bem menos apetitoso.
Será por isso que resistimos a uma “profunda reflexão ética”
no momento em que escolhemos o que comer? O autor defende que o “mecanismo de
fragmentar” o corpo do animal, a linguagem eufémica (“bife”, “bitoque”,
“fêvera”), a falta de mediatização e escrutínio público das condições e dos
processos de exploração animal e a própria localização das instalações
intensivas, longe dos aglomerados urbanos, são aspectos chave para “que
permaneçamos alheios e desligados emocionalmente face às cruéis práticas de
exploração animal”.
O livro, lançado no início de Novembro, resulta de cinco
anos de trabalho e do pós-doutoramento realizado no Centro de Investigação de
Estudos em Sociologia, do Instituto Universitário de Lisboa. Nele, o sociólogo
portuense — vegan há 16 anos e confesso activista pelos direitos dos animais —
estudou O carnismo na Cultura mediática portuguesa, analisando os conteúdos dos
três principais canais de televisão portugueses e de casos de estudo de
anúncios publicitários bem conhecidos, protagonizados por “vacas felizes, bem
tratadas e alimentadas”.
Ao “penetrar nas sombrias fendas da máscara”, o sociólogo
põe a nu as questões éticas de reduzir um “ser vivo dotado de sensibilidade” a
uma “coisa móvel” (termos usados na legislação portuguesa para descrever
primeiro animais de companhia e depois animais de criação) e expõe os graves
impactes ambientais de uma das indústrias mais poluentes do mundo, a gestão
danosa dos recursos naturais (solo, água, energia, mau uso dos alimentos) e a
“publicidade enganosa” cujo “objectivo é, tão-somente, suscitar a nossa
adesão”.
Há 16 anos, vídeos gravados em matadouros e disponibilizados
no YouTube por activistas “mudaram substancialmente a percepção” do
investigador. Tal como acontece no maior parte dos casos, diz, decidir
reflectir profundamente sobre um “sistema cruel” desencadeou “dilemas éticos”
que abriram “o leque para novas opções e práticas alimentares diferenciadas das
praticadas pela cultura dominante”.
Segundo dados da Happy Cow, há seis vezes mais restaurantes
vegetarianos em Portugal do que havia há dez anos, sendo que um terço deles
abriu portas entre 2016 e 2017. Na mesma década, o número de vegetarianos em
Portugal terá quadruplicado, chegando às 120 mil pessoas. A maior parte delas
terá entre 25 e 34 anos e será do sexo feminino, conclusões que não deixam Rui
Pedro Fonseca espantado. “Os compromissos culturais em torno destes produtos
são ainda muito fortes”, assegura, dizendo que existe um “consenso fabricado”.
“A carne, principalmente, é um alimento muito simbólico. Está bastante
enraizada com a ideia da masculinidade, de ter força física”, pelo que é
"natural" que existam mais mulheres a abdicar dela.
Ainda, o consumo de leite e derivados, carne, ovos e peixe é
visto pela grande maioria da população portuguesa “enquanto prática natural,
normal e necessária”. E também por isso é que “a maior parte das pessoas que
têm contacto com vegans ou vegetarianos usualmente tem um argumentário bastante
padronizado. E também preconceitos.” Admite, ao P3: “Eu tinha os meus.
Nomeadamente: a carne é o roteiro essencial para um homem, a carne tem a
proteína por excelência, nós éramos caçadores, temos caninos descomunais.” Para
isto, acrescenta, contribui também o uso da expressão “regime [vegetariano]”,
que gera associações a outras palavras como “obrigatoriedade” ou “restrição”.
“Há esta noção de que a comida vegetariana é muito restrita, quando na verdade
é muito diversificada.”
Mas a discussão vai muito além do que cada um escolhe ao
pegar no menu, acredita. “O pano de fundo da discussão deve ter como mote as
repercussões de um consumo (totalmente desnecessário) de indivíduos cuja
vontade de viver deverá ser mais valorizada relativamente à nossa vontade
orientada pelo principio do prazer.”
Em último caso, comenta, é um paradoxo. Numa altura em que
nos preocupamos cada vez mais com o bem-estar animal, “continuamos a comer
animais, reproduzindo práticas (alimentares) que entram em conflito com os
nossos valores”. Às “questões éticas”, acrescem “questões ambientais urgentes”.
“Se nós queremos um futuro sustentável temos de fazer uma escolha. A
agropecuária está a destruir o planeta e eu receio que o lobby seja realmente forte.
Da nossa parte acho que, no mínimo, a redução é uma obrigatoriedade.”
Alterações climáticas: ninguém repara nas vacas a pastar
Estima-se que a produção de animais seja responsável pela
emissão global de cerca de 14,5% dos gases poluentes de estufa, ao passo que
todos os transportes no mundo são responsáveis por 13% dessa emissão global,
comparativamente.
Nuno Alvim
Nuno Alvim é activista e presidente da Associação
Vegetariana Portuguesa, um confesso idealista e também um nadinha realista.
31 de Julho de 2018, 11:52
https://www.publico.pt/2018/07/31/p3/cronica/alteracoes-climaticas-ninguem-repara-nas-vacas-a-pastar-1839632
Nunca antes foi tão urgente repensar o nosso modo de
vivência neste planeta e a nossa relação com o ambiente, que é o nosso suporte
de vida — o de todos os seres vivos e das gerações vindouras.
Torna-se assim cada vez mais pertinente descortinar quais as
principais forças motrizes por detrás das alterações climáticas e adoptar uma
abordagem pragmática e despolitizada, que faça efectivamente diferença. Será
caso para dizer que, se a casa estiver a arder, não vamos fechar a torneira que
deixamos aberta; vamos, sim, procurar apagar o incêndio.
O discurso das alterações climáticas tem sido dominado ao
longo de décadas pelo problema do uso de combustíveis fósseis, cada vez mais
visível, cada vez mais badalado, desde que Al Gore o popularizou no
documentário Verdade Inconveniente. E, de facto, essa é uma problemática que
tem de ser abordada. Construímos o nosso modelo civilizacional na base da
suposição de que o petróleo duraria indefinidamente e numa altura em que não
estávamos plenamente conscientes do impacto sistémico do seu uso, não só
ecológico, mas também na saúde humana.
Em geral, a produção de qualquer alimento de origem vegetal
tem uma pegada ecológica significativamente inferior à da produção de alimentos
de origem animal.
E o que pode uma só pessoa fazer para combater este
problema? Comprar um carro eléctrico, ou melhor, andar de bicicleta? Que outras
soluções existem para além destas?
Num debate saturado com o tópico dos combustíveis fósseis,
tem sido deixado de fora do espectro de discussão ambientalista um outro
problema, o que porventura mais contribui para as alterações climáticas que
enfrentamos, negligenciado na sua importância. Fala-se da indústria
agropecuária, cujo impacto no ecossistema suplanta todas as outras. No entanto,
parece que ninguém repara nas vacas a pastar. Estima-se que a produção de
animais seja responsável pela emissão global de cerca de 14,5% dos gases
poluentes de estufa, ao passo que todos os transportes no mundo são
responsáveis por 13% dessa emissão global, comparativamente. Esta é a
estimativa mais conservadora.
Em Portugal, a Quercus, reconhecida entidade ambientalista,
constatou que a agricultura, inclusive a agropecuária, utiliza 80% dos recursos
hídricos de Portugal. Estatísticas semelhantes encontram-se para outros países
do mundo, onde a produção de animais em regime intensivo é uma das principais
responsáveis pelo desgaste dos recursos hídricos e, no entanto, o nosso foco
tem recaído essencialmente sobre os restantes 20%, uma percentagem marginal, em
boa parte correspondendo ao uso doméstico.
Todavia, as campanhas de poupança de água e preservação dos
recursos hídricos focam-se quase exclusivamente no uso doméstico, sem fazer
qualquer referência ao impacto das nossas escolhas como consumidores. Se
tivermos que esvaziar uma banheira cheia de água, não fará mais sentido
tirarmos a tampa em vez de usarmos uma colher de chá?
Tal como sucede com o uso dos combustíveis fósseis, podemos,
na nossa esfera individual, agir de forma relevante, com impacto político,
introduzindo mudanças no nosso paradigma alimentar, começando pela redução do
nosso consumo de carne e de outra proteína animal, privilegiando o consumo de
legumes ou leguminosas. Sabemos que a produção de um único quilograma de carne
de vaca, por exemplo, requer um dispêndio de cerca de 16.700 litros de água, ao
passo que a produção de um quilograma de leguminosas como o feijão de soja
requer apenas cerca de 2500 litros. Em geral, a produção de qualquer alimento
de origem vegetal tem uma pegada ecológica significativamente inferior à da
produção de alimentos de origem animal.
Munidos com esta informação, podemos tomar decisões simples
enquanto consumidores, com consequências imediatas, que qualquer um de nós pode
pôr em prática. Podemos ser agentes de mudança, através dos nossos pratos.
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