Quanto vale uma vida em Borba
Catarina Carvalho
25 Novembro 2018 — 06:08
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/25-nov-2018/interior/quanto-vale-uma-vida-em-borba-10232630.html
Sim, temos de ser virgens ofendidas, cara deputada
Quanto vale uma vida perdida numa estrada de Borba? Mesmo os
não jornalistas conhecem aquela regra dos mortos por quilómetro, a que diz que
um morto na cidade do leitor vale mais do que 2000 a muitos de distância. Mas,
como em tudo no jornalismo e na vida, também nesta regra... depende.
Acompanhámos com fervor a árdua retirada da gruta dos jovens tailandeses do
outro lado do mundo, a 11 mil quilómetros de distância. E, nesta semana,
percebemos que cinco mortes em Borba valem pouco - sobretudo para os que mais
perto delas estavam.
Houve manchetes, é verdade, horas e horas de transmissões,
investigação jornalística que sacou documentos importantes, relatórios que
estavam escondidos em gavetas. Tudo isso houve, e bem. Uma responsabilidade já
redimiu: a dos jornalistas e jornalismo, cada vez mais fechado nos gabinetes
citadinos, menos próximo do que se passa, de facto, na vida das pessoas. Ainda
nos vale o brio profissional de quem sabe o que tem de fazer, mesmo que não o
consiga sempre fazer.
Feito este mea culpa, faltam os outros. Por tudo o que
ficámos a saber, não há hoje dúvida de que este era um acidente à espera de
acontecer. Uma tragédia mais do que anunciada. Sabemos que muitos sabiam. Não
sabemos ainda todos, mas houve alertas e foram ouvidos e escritos. Só que
ninguém tirou ilações. Nem na altura nem agora.
Na altura, ninguém fez nada. Agora, ninguém pediu desculpas.
Um pedido de desculpas, nesta altura, quando ainda não estão apuradas as
culpas, até podia parecer excessivo. Não fosse pouco face a cinco mortos
inocentes e a toda a incúria e negligência - no mínimo - que está à vista.
Do que sabemos, neste caso, as responsabilidades têm de ser
partilhadas e por muitos. Dos donos das pedreiras que escavaram até à estrada,
pouco se importando com quem trabalhava em baixo ou passava em cima, à câmara
municipal, a dona da estrada, até às direções gerais que fizeram pareceres e
lavaram burocraticamente as mãos, acabando nos ministérios que os receberam, ao
governo, aos governos.
Há, neste caso, tantas questões civilizacionais - aqui, sim
- e culturais que podia tornar-se uma fábula. O problema das fábulas é que adoçam
a realidade, e esta tem de ser olhada de forma dura. Há um interior votado ao
desprezo dos media, políticos e até das leis. Mas há também muita
incompetência, muito encolher de ombros, muito deixar andar. Ou, então, muita
gente a apontar o dedo e a tirar a água do capote - para usar uma expressão
alentejana.
Hoje sabemos, como contamos nesta edição, que foi
precisamente um braço do Estado central - a Direção Regional da Economia - que
alertou para o perigo desta estrada. E que tanto os empresários locais como a
própria câmara assobiaram para o lado. A cadeia de incompetências e burocracias
que levou à tragédia de Borba é um bom retrato de várias coisas, entre elas a
falta de cultura cívica. Obviamente, a responsabilidade é diretamente
proporcional ao poder. Mas isso não significa que a cadeia tenha de
responsabilizar num sentido, e ilibar noutro. E este é que é, em Portugal, um
assunto de civilização.
Pouca cultura democrática e muitos anos de paternalismo de
Estado trouxeram o país a este estado em que o civismo e a responsabilidade
individual se diluem. Os vizinhos deixam o lixo à porta até o condomínio os
avisar de que não o podem fazer, os carros estacionam em cima do passeio,
impedindo os carrinhos de bebé, até serem multados. As pedreiras constroem até
ao limite das estradas, até alguém cair, as entidades responsáveis não fecham
estradas até morrer alguém, os governos não agem até a imprensa lhes cair em
cima.
Quem é que teria mais interesse em fechar uma pequena
estrada de paralelepípedos em Borba? Quem lá passa, ou quem está num gabinete
em Lisboa? Não teria sido mais eficaz a luta pelos que sentiam o perigo do que
pelos que apenas sabiam dele?
Agora, que o mal está feito e o assunto se tornou nacional,
é preciso apurar responsabilidades. Mas todas. De baixo para cima. Ou antes, de
cima para baixo. Porque, qualquer que seja o cenário e a forma, foi o Estado
que falhou. Mais uma vez, por não saber representar-se, por não saber delegar
em condições, organizar-se até ao mais ínfimo denominador comum, até à
proximidade das populações.
E continuamos, mais um dia, sem um pedido de desculpa de
ninguém.
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