Os históricos Antiquário do Alecrim e Livraria Trindade
prometem resistir “com muita luta” ao anunciado despejo
Sofia Cristino
Texto
8 Novembro, 2018
O Antiquário do Alecrim e a Livraria Trindade têm, desde o
início deste ano, ordem para sair dos estabelecimentos onde estão há várias
dezenas de anos, na Rua do Alecrim. Receberam uma carta de não renovação do
contrato de arrendamento e, como resistiram a sair, o proprietário dos imóveis,
a Sociedade Imobiliária do Alecrim, enviou-lhes há poucos dias uma notificação
de despejo. “Estão a amedrontar-nos, sinto-me ameaçada. Com a mania que
Portugal e Lisboa estão na moda, as pessoas pensam que têm a liberdade de
pedirem o que quiserem”, critica a gerente do Antiquário do Alecrim. Ambos os
inquilinos candidataram-se à classificação como Lojas Com História. E aguardam
agora por publicação desse estatuto em Boletim Municipal. A advogada dos dois
estabelecimentos vai contestar a intenção de despejo e acredita que as casas
comerciais poderão ainda ver o contrato prolongado por mais cinco anos. O Corvo
tentou contactar o proprietário dos edifícios, mas não obteve resposta.
O Antiquário do Alecrim deveria ter saído do edifício onde
funciona desde 1956, no número 40 da Rua do Alecrim, no final de Setembro,
quando recebeu uma carta de não renovação do contrato de arrendamento. Mas
Margarida Leite, 53 anos, proprietária do estabelecimento no qual trabalha
desde os 20 anos, recusa-se a abandoná-lo. “Queriam o espaço livre e limpo até
dia 30 de Setembro, mas ainda estamos cá, com muita luta. O senhorio já veio
tentar levantar a chave, mas não entregamos, porque achamos que temos o direito
de continuar cá”, diz a O Corvo a dona da loja de antiguidades. No passado dia 24 de Outubro, e depois da
recusa em abandonar o imóvel, recebeu uma acção de despejo.
Na carta, pode ler-se que tem vinte dias para sair e que,
por cada mês que fique no espaço, a partir de agora, terá de pagar 16 mil
euros. “Estão a amedrontar-nos, sinto-me ameaçada. Com a mania de que Portugal
e Lisboa estão na moda, as pessoas pensam que têm a liberdade de pedirem o que
quiserem, acho que devíamos ter sido tratados com mais respeito. Sempre tivemos
uma boa relação, foi surpreendente esta mudança de comportamento”, diz a
responsável pela loja, actualmente a pagar uma renda mensal de 500 euros. A 9
Janeiro deste ano, o estabelecimento recebeu uma carta do proprietário do
prédio a informar da intenção de não renovação do contrato de arrendamento.
Desde aí, os donos da loja têm tentado prolongar a sua estadia no edifício.
Uma carta semelhante foi enviada, no mesmo mês, à Livraria
Trindade, situada uns metros abaixo. “Recebi uma carta fria e dura, sem
possibilidade de negociação. Houve uma mudança radical de atitude dos
senhorios, estamos aqui há muito tempo e tínhamos uma relação muito boa com
eles. A especulação imobiliária sobrepõe-se a qualquer relação de amizade. O
grosso das grandes lojas já fecharam, somos uma excepção no centro da cidade”,
lamenta António Trindade, 50 anos, à frente do negócio familiar da Livraria da
Trindade, que se encontra naquela morada – nº32 e 36 da Rua do Alecrim – há
três décadas.
Margarida Leite promete lutar pela permanência da sua loja
naquele local
Em Julho de 2016, os proprietários dos dois imóveis e de
outros edifícios na Rua do Alecrim – família descendente do Marquês de Pombal e
detentora da Sociedade Imobiliária do Alecrim – inauguraram no número 70 o
Palácio Chiado, espaço onde funcionam actualmente seis restaurantes. Mais
tarde, arrendaram o número 54 do mesmo arruamento, no qual abriria um
supermercado, em Agosto do ano passado. Os inquilinos agora ameaçados de despejo
temem que os espaços onde têm as suas lojas acabem por ter um destino
semelhante. Mas há outras hipóteses em cima da mesa. “Não nos dizem o que
querem fazer, mas há rumores de que poderá ser um hotel ou Airbnb e,
provavelmente, um prolongamento do Palácio Chiado”, arrisca Margarida Leite.
Entrar no Antiquário do Alecrim “é como viajar numa máquina
do tempo”. Podemos encontrar o primeiro mapa impresso de Portugal, as primeiras
edições de alguns livros e documentos originais, desenhos e quadros raros,
livros do século XVI e XVII, manuscritos, cartas régias e carimbos antigos. “Em
1958, o meu pai comprou três desenhos do pintor Santa-Rita. Este artista
faleceu muito jovem e pediu que os seus trabalhos fossem queimados, e a maioria
foram, e só se conhecem cinco obras dele. Este é o tipo de trabalho que as
nossas lojas também fazem, conservar relíquias ao longo de gerações”, diz
Margarida Leite, que herdou o negócio do pai. O progenitor, Américo Marques,
que faleceu há uma década, instalou o negócio num espaço onde antes funcionara
a antiga Fábrica Âncora, vendedora de licores. Os rótulos originais das
garrafas, de 1882, ocupam grande parte das estantes e Margarida estava a pensar
criar um museu com um espólio destas peças. Um desejo que poderá ter de abandonar.
Mais do que deixar
sonhos para trás e uma casa com história, Margarida Leite não se conforma com a
maneira como foi tratada pelo senhorio. Uns dias antes de ter recebido a carta
de não renovação do contrato, tinha estado com o proprietário do prédio a fazer
obras numa sala do imóvel, solicitadas pela própria. “No início do ano, estava
a cair muita caliça das paredes, em salas menos usadas, porque a Muralha
Fernandina, que passa aqui, não deixa as águas escoarem bem. Falei com os
proprietários, que se prontificaram logo a arranjarem. Quem imaginava que íamos
receber uma carta de não renovação do contrato uns dias depois, a 9 de Janeiro?
Fomos apanhados completamente desprevenidos”, recorda. Depois da entrada em
vigor da nova lei do regulamento, em 2012, o contrato do Antiquário foi
renovado. “A renda foi aumentada para o dobro, mas ficamos tão satisfeitos por
chegarmos a acordo relativamente ao valor, que não percebemos que estávamos a
assinar a nossa sentença, sem o saber”, lamenta.
A inquilina ainda
tentou fazer uma revisão do valor da renda e negociar o seu prolongamento na
rua onde trabalha há mais de trinta anos. Mas foi-lhe feita uma proposta
incomportável. “Pediram-me 10 mil euros por mês. Mas, mesmo que pagasse,
disseram-me depois, queriam era ter o espaço livre. Foi um choque”, diz,
surpreendida. Já encaixotou milhares de livros, mas ainda tem a maioria dos
artigos expostos. Se tiver de sair, tem uma alternativa, uma pequena loja, com
20 metros quadrados, nos Armazéns do Chiado. “Neste momento, temos 400 metros
quadrados. Este tipo de lojas precisa de gente, de rua e de um centro
histórico, e lá perdemos isso tudo. Aqui, as pessoas entram e são envolvidas
pelas arcadas e a arquitectura. Temos clientes de outras partes do mundo, que voltam
cá passado uns anos só para nos visitarem”, conta.
“Lisboa está a ficar
vazia, a especulação imobiliária está a tirar o charme à cidade. Antigamente,
poucas pessoas conheciam o negócio das antiguidades. Hoje há mais informação,
mas continuamos a ter um papel fundamental na selecção dos livros, fazemos uma espécie
de selecção do trigo do joio”, acrescenta. Aqui, encontram-se livros do século
XVII, XVIII e XIX, obras que não se vendem nas grandes cadeias, mas também
peças antigas, desde cerâmicas, porcelanas, marfins, relógios, entre outros. “A
quantidade de estudantes universitários que vêm cá à procura de livros mostra
bem o actual panorama editorial português, há uma literatura muito massificada.
Há livrarias que hoje só estão feitas para os turistas visitarem. Nós ainda
fazemos uma selecção e conhecemos o nosso cliente, sabemos o que vale a pena
guardar e o que não vale”, explica António Trindade.
A advogada dos dois
inquilinos, Ana Navarro, promete contestar a acção de despejo, nos próximos
dias. E acredita que ambos os estabelecimentos poderão ter o mesmo desfecho que
a Casa Senna – loja de desporto situada na Rua Nova do Almada que, em Maio
deste ano, também estava em risco de fechar, mas que acabou por ver o contrato
renovado por mais cinco anos. “Estamos a retirar de Lisboa, mais do que lojas
com história, estabelecimentos extremamente importantes para a cidade, porque
têm encontrado peças e cartas de foral originais. O que está aqui em causa não
é despejarem as pessoas, é colocarem rendas acima de 10 e 15 mil euros. É uma
vergonha”, critica.
O Corvo tentou
contactar a Sociedade Imobiliária do Alecrim. Na falta de resposta, dirigiu-se,
na tarde desta quarta-feira (7 de Novembro), às instalações da empresa. Naquele
momento, contudo, já não se encontrava ninguém no espaço. Foram enviadas ainda algumas
questões ao advogado do proprietário, mas, até ao momento da publicação deste
artigo, as mesmas não obtiveram resposta.
Sem comentários:
Enviar um comentário