quinta-feira, 1 de novembro de 2018

"Madalena Arrependida" (2)




OPINIÃO
David e Golias
Não é possível regular os novos conflitos de interesses na habitação com regras do século XX.

Helena Roseta
1 de Novembro de 2018, 6:25

Acaba de entrar em vigor a lei 64/2018, que garante o exercício do direito de preferência dos arrendatários na alienação onerosa dos imóveis onde residem, alterando o Código Civil nesta matéria.

O direito de preferência dos inquilinos quando o senhorio pretende alienar o locado está há muitos anos previsto na lei em Portugal e é uma das formas de garantir o acesso à casa própria consagrado no artigo 65.º da Constituição da República. É certo que, face aos valores crescentes das transacções do imobiliário habitacional, muitos inquilinos não têm qualquer possibilidade de optar por este caminho e também é verdade que os contratos de arrendamento se transmitem ao comprador, se não houver preferência dos arrendatários. Aparentemente, não seria necessário alterar a lei.

Sucede, porém, que o mercado imobiliário mudou de escala. São cada vez mais os casos de grandes portfolios de imóveis postos à venda em bloco pelo valor de centenas de milhões de euros, completamente inacessível aos arrendatários e aos municípios. São rapidamente adquiridos por fundos imobiliários internacionais sem nenhum interesse em manter os arrendamentos. O passo seguinte é o envio imediato das famosas “cartas de oposição à renovação” dos contratos, sem apelo nem agravo, mesmo quando os arrendatários têm 80 ou mais anos, residem há décadas no locado e estão protegidos pela lei portuguesa que tais fundos ignoram olimpicamente. Falta, aliás, uma Autoridade Nacional para as Condições de Habitação com poderes para fiscalizar e sancionar este e muitos outros abusos de que todos os dias temos conhecimento no panorama habitacional português.

A versão original da lei 64/2018 passou pelo veto político do Presidente da República mas acabou por ser promulgada, após clarificações por ele solicitadas e prontamente atendidas pelo Parlamento. Contou, desde a primeira hora, com a oposição do CDS-PP e do PSD e teve o apoio das restantes bancadas.

Resolveu a direita parlamentar solicitar agora a fiscalização sucessiva da constitucionalidade desta lei, um direito que lhe assiste. A palavra final caberá ao Tribunal Constitucional, sem embargo de a lei se manter em vigor até que este órgão delibere, eventualmente, no sentido de alguma inconstitucionalidade. Aguardemos, pois.

Estas matérias não devem no entanto ser discutidas no Parlamento à porta fechada. Defendo e pratico a maior transparência e o maior acesso de todos ao que está a ser legislado na área da habitação. É por isso que mantenho um sítio pessoal com toda a documentação envolvida, incluindo as múltiplas audições da sociedade civil.

Creio que não é possível regular os novos conflitos de interesses com regras do século XX. As desigualdades entre os poderes aquisitivos são cada vez maiores, com prejuízo de quem não consegue comprar uma casa para sua própria segurança.

Como deputada, procuro, em cada circunstância, que sejam protegidos os mais vulneráveis. Sei que não estou sozinha. E também sei que só assim poderão os pequenos David, com a razão e a lei do seu lado, tentar vencer os Golias deste tempo. Deputada, www.helenaroseta.pt

Arquitecta; presidente da Assembleia Municipal de Lisboa

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