Bombardeado por críticas ao projecto do Martim Moniz, Manuel
Salgado diz que vai analisar eventuais alterações
Samuel Alemão
Texto
21 Novembro, 2018
Uma grande dor de cabeça. Se Manuel Salgado, vereador do
Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa (CML), e os promotores privados do
projecto de reabilitação da zona central da Praça do Martim Moniz esperavam um
serão razoavelmente tranquilo, foi o oposto disso o que tiveram na noite desta
terça-feira (20 de Novembro). A sessão de apresentação do plano patrocinado
pela autarquia – revelado na manhã desse mesmo dia através da comunicação
social -, realizada num salão do Hotel Mundial completamente cheio e convocada
pela Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, serviu para se perceber o grau de
descontentamento da comunidade em relação ao que se propõe para uma da
principais praças da cidade. Ficou clara a inimizade ao plano promovido pela
empresa Moon Brigade, através do qual um recinto composto por contentores
tomará o espaço agora ocupado por quiosques. Uma solução em relação não se
ouviu uma única palavra de simpatia.
O encontro também permitiu aquilatar o grau de desconforto
para com o que muitos vêem como o processo de “turistificação” e de
“gentrificação” da capital portuguesa. E foi ainda muito criticada a forma
“pouco participada” como se chegou à actual versão do projecto de
requalificação do Martim Moniz. Ante tantos reparos, Salgado prometeu levar
notícia do descontentamento à restante vereação. “Mas não prometo nada”,
afirmou, refreando as esperanças infundadas. O vereador disse ter tomado a
devida nota da avalanche de críticas feitas pela audiência, composta por
moradores, autarcas e dirigentes associativos da zona, bem como por gente
interessada em discutir urbanismo. E até enumerou os principais desejos dos que
quiseram expressar a sua opinião. “As pessoas querem espaços vazios, espaços
abertos, querem um jardim, mas também alterar a circulação a automóvel”,
resumiu o responsável máximo pela política urbanística da cidade, depois de ter
sido o alvo preferencial dos fortes reparos vindos da audiência.
E Manuel Salgado fez um bom apanhado das propostas feitas
pelas cerca de duas dezenas de pessoas que participaram na sessão convocada por
Miguel Coelho (PS), o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior – o
qual também disse não gostar do projecto ali apresentado. Ao longo hora e meia
ocupada pela participação popular, após uma sucinta apresentação por Salgado e
pelos promotores do que se pretende fazer no Martim Moniz, o que mais se ouviu
foi o descontentamento “com mais negócios e esplanadas para turistas” e, em
simultâneo, o pedido para que o projecto fosse repensado de forma a criar um
espaço público aberto “onde se possa descansar, relaxar à sombra de uma árvore
e ler um livro”. “Por que não aproveitam esta oportunidade única para fazer um
jardim?”, questionou a arquitecta Susana, que, sendo moradora na zona,
confessou a sua dificuldade em encontrar um espaço onde possa estar com o seu
bebé ou a ler um livro, “sem ter de consumir”.
Uma intervenção que mereceu o aplauso da restante
assistência. Tal como todas as outras, aliás, revelando uma aparente
unanimidade dos presentes na recusa do projecto que, nas palavras dos
responsáveis pela empresa a quem a câmara pretende entregar a concessão daquela
área, “pretende humanizar” o espaço. Mas as confessas boas intenções dos
investidores não foram acolhidas de forma amigável por quem ali estava para
ouvir as explicações. “As pessoas precisam de um espaço livre, um local para
respirar. Não precisam de uma coisa destas”, disse Fernanda, moradora da Rua da
Madalena, a primeira usar da palavra, considerando desapropriada a colocação de
contentores na praça, ao impor o uso de um material “pesado” e tão pouco convidativo
ao lazer como o metal. “E também acho que o espaço, que é público, não deve ser
entregue a um privado”, acrescentou. As palmas em redor conferiam assentimento
ao que acabava de dizer e davam o tom geral para o resto da sessão.
A qual foi subindo de tom, até se começarem a ouvir bocas,
cada vez mais ruidosas, não só contra o plano da autarquia como também o
vereador do Urbanismo. “Tu não mandas na cidade, ó Manuel Salgado! A cidade é
nossa, das pessoas”, ouviu-se, a dado momento, quando os ânimos na sala se
começavam a evidenciar inversamente proporcionais à descida da temperatura lá
fora. Especialmente interventivo esteve um grupo de indivíduos ligados ao
movimento que tem liderado a contestação à intervenção, levada a cabo pela
Câmara de Lisboa, no Miradouro de Santa Catarina, por a mesma prever a
colocação de uma vedação e a imposição de um horário de acesso aquele espaço.
Tanto que Miguel Coelho se viu obrigado a ameaçar interromper a reunião, acaso
a “falta de respeito” persistisse.
O burburinho de tais
apartes não se revelou, todavia, suficiente para perturbar o timbre cordato,
mas acutilante, das intervenções que se iam sucedendo, todas contra a
intervenção proposta. E, uma a uma, iam colocando as mesmas questões, as mesmas
apreensões, as mesmas críticas e, também, os mesmos desejos. “Precisamos é de
um jardim e de espaços abertos para viver, porque esplanadas para os turistas
já as temos em barda”, afirmou Cristina, criticando ainda o excesso de
volumetria que os contentores trariam para local. Reparo que foi replicado em
várias intervenções. “Há quem tenha comprado um apartamento com vista para o
Castelo e vai ter vista para o contentor”, ouviu-se a dada altura, por parte de
uma participante na sessão. Mas a residente Cristina não terminou a sua
intervenção sem lastimar que “ a Câmara de Lisboa apresente isto sem o mínimo
de diálogo”.
Essa foi, de resto,
outras das razões para um sentimento geral de agastamento naquela sala do Hotel
Mundial. Quase todos criticaram o facto de o projecto ter sido apresentado à
população como um “facto consumado”. “Quantas pessoas, associações e entidades
de base local foram auscultadas para o desenho do projecto que é aqui agora
apresentado?”, perguntou Marta Silva, residente na zona e conhecida pelas suas
actividades associativas na área do Intendente através da Largo Residências e
do colectivo Sou. Fazendo uso da ironia, a dinamizadora sócio-cultural
perguntou a Manuel Salgado quando é que os prémios e o reconhecimento
internacional por uma gestão participativa da cidade “iam deixar de ser apenas
referentes à construção de canteiros e passavam a dizer respeito às decisões
relativas ao fazer cidade”. Mais adiante, Rita Silva, da Associação Habita,
desafiou mesmo o vereador a “interromper este processo e ouvir as pessoas”.
Uma ideia que não
desagradará ao presidente da Junta de Freguesia de Santa Maior. “Não gosto
deste projecto, que acho desadequado , mas esta é a minha opinião pessoal. A
junta não tem capacidade para o reverter, mas se ele for adiante, reclamamos o
controlo e licenciamento de todas as actividades que ali venham a ocorrer”,
exigiu Miguel Coelho, garantindo o bloqueio da autarquia por si liderada a
qualquer actividade de animação após as 22 horas. “O que se fizer em termos de
actividade cultural tem de ser muito controlado, porque as pessoas estão
fartas. Queremos fixar população, já temos muitos turistas. Não precisamos de
mais esplanadas e barulho até às tantas. Se isto depender das actividades
nocturnas para ser viável, vamos ter conflitos”, assegurou o autarca
socialista, que tem assumido, nos últimos anos, um discurso vincadamente
antagónico ao peso do turismo na zona histórica da cidade – e, muitas vezes, em
contramão com o discurso oficial da Câmara de Lisboa.
Depois de ouvir tal barragem de reparos, Paulo Silva, da
empresa Moon Brigade, responsável pela instalação e exploração comercial do
novo recinto composto por contentores, garantiu que não pretende ser um
“elemento intrusivo”. Negando que o
espaço venha a ser vedado, como chegou a ser admitido por Manuel Salgado ao
jornal PÚBLICO – a quem o vereador revelara os contornos da operação, na manhã
desta terça-feira -, o empresário asseverou o controlo do ruído das actividades
ali desenvolvidas e uma escolha “criteriosa dos novos inquilinos da praça”.
“Não foi nossa intenção criar um projecto turístico, mas para a população”,
afirmou, antes de informar que os contentores a instalar terão uma altura de
2,5 metros e que “pontualmente, terão um segundo piso”.
Antes das muitas
questões e críticas, ainda na apresentação do que se pretende implementar no
Martim Moniz, Paulo Silva explicou que a intenção é a de “aproveitar todo o
carácter multicultural da zona”. “Pretende-se recriar aqui um ambiente de
bairro que se perdeu naquela praça, com a criação de ruas através da colocação
de contentores, nascendo um tecido urbano que reavive essa vivência”, disse,
explicando que tal acontecerá através da instalação de estabelecimentos de
restauração (sobretudo cozinha do mundo), de comércio local (tanto o tradicional
como o de “conceitos emergentes”) e da actividades culturais e artísticas,
sendo estas comissariadas pela Galeria Underdogs. “Iremos temos uma programação
cultural ao longo do ano”, prometeu.
Casa cheia disse "não" aos contentores no Martim
Moniz
Responsável pelo projecto disse querer "recriar
ambiente de bairro" no meio dos contentores, mas moradores e presidente da
junta dizem que o que faz mesmo falta ao bairro é um espaço verde, "de
silêncio".
João Pedro Pincha
JOÃO PEDRO PINCHA 21 de Novembro de 2018, 7:39
Foram unânimes e duras as críticas que a Câmara Municipal de
Lisboa e o concessionário do mercado do Martim Moniz ouviram esta terça-feira à
noite na apresentação pública do novo projecto comercial para a praça, que,
como o PÚBLICO antecipou, prevê a instalação de um recinto de contentores. Nas
duas horas que durou a reunião não se ouviu nenhuma intervenção favorável à
iniciativa, exceptuando as que foram feitas pelo promotor. O presidente da
junta de freguesia fez questão de afirmar que não gosta dos contentores e até o
vereador do Urbanismo deu a entender que a ideia não lhe agrada muito.
“Estamos com uma situação difícil neste momento. O nosso
problema é que a concessão está válida”, afirmou Manuel Salgado no fim da
sessão. “A larga maioria das pessoas prefere mais espaço aberto, prefere
[espaços] vazios e prefere um jardim. Isso ficou muito claro no meu espírito e
nos meus registos”, resumiu o vereador, comprometendo-se a fazer chegar a
mensagem a Fernando Medina. “Ouvi e obviamente que vou discutir isto no
executivo. Não vos prometo rigorosamente nada. Registei tudo o que foi dito, é
tudo o que vos posso dizer.”
As cerca de vinte pessoas que intervieram, quase sempre com
o ruidoso apoio das mais de 120 que encheram uma sala do Hotel Mundial,
manifestaram-se todas contra a instalação dos contentores, argumentando que é
uma ocupação desadequada para uma praça daquelas, que a multiculturalidade do
Martim Moniz pode ficar afectada e que o ruído dos futuros bares e restaurantes
pode vir a ser mais problemático do que o actual. Diversos participantes
sublinharam a necessidade de ali ser criado um espaço verde e de descanso, no
meio de uma Baixa sempre em festa.
No início, Salgado revelou que a solução do mercado de
contentores foi apresentada pela primeira vez à câmara em 2016, quando
município e concessionário do espaço se sentaram à mesa para resolver as dívidas
que este tinha para com a autarquia. “Já em 2017, depois de uma longa
negociação, houve uma transferência de concessão e apresentado um estudo mais
detalhado. Em Setembro de 2018 foi finalmente fechada uma adenda ao contrato e
este passou a ter um prazo mais longo”, explicou o vereador. Vários munícipes
quiseram saber qual a duração agora prevista mas ninguém respondeu. De acordo
com informações recolhidas pelo PÚBLICO, a concessão está em vigor por mais 14
anos.
O novo concessionário do mercado é a empresa Moonbrigade
Lda., que, segundo os documentos disponíveis no Portal da Justiça, foi criada
em Julho de 2017 e tem como sócios Arthur Moreno e uma empresa, Bronzeventure
Lda., detida por este e pelo irmão, Geoffroy Moreno. Os dois são também os
donos da Stone Capital, companhia responsável pela promoção de projectos
imobiliários como o Palácio de Santa Helena ou o Hospital da Marinha, entre
outros.
Pela Moonbrigade deu a cara Paulo Silva, explicando que o
novo mercado visa dar “continuidade ao projecto [anterior] mas com uma proposta
mais ambiciosa”. O engenheiro disse que os quiosques da praça, concessionados
até recentemente à NCS – Produção, Som e Vídeo, foram “um projecto que teve o
seu tempo” e que agora existe “uma oportunidade” com “algum potencial” para
reabilitar o Martim Moniz. “É uma praça pouco utilizada pela população de
Lisboa, é mais pela população local”, afirmou, acrescentando que ela tem hoje
uma imagem “pouco apelativa e pouco favorável”.
Tanto Paulo Silva como João Monteiro, arquitecto a quem a
Moonbrigade encomendou o projecto, explicaram que ele procurou inspirar-se no
tempo em que a Praça Martim Moniz não existia, quando era apenas a Mouraria a
espraiar-se até à outra encosta. Lembrando que aquele amplo espaço público só
foi criado em meados do século XX, João Monteiro disse que pretendeu “voltar a
dar-lhe uma malha urbana”, a qual “vai voltar a dar ambiente de vida à praça,
que ela actualmente não tem”. O arquitecto afirmou que o Martim Moniz é “um
espaço demasiado desumano” e que, através da disposição dos contentores, será
possível criar “pequenas praças” de encontro e lazer.
Os contentores “permitem de certa forma recriar um ambiente
de bairro, com ruas, com praças, todo um tecido urbano”, dissera já Paulo
Silva, que explicou que a intenção é ter ali restaurantes com “comida do
mundo”, comércio local (“talho, florista, cabeleireiro, conceitos emergentes”,
exemplificou), arte urbana e eventos culturais que não excluam as comunidades
locais, sobretudo as imigrantes, que há muito consideram o Martim Moniz o seu
ponto de encontro.
Oportunidade perdida?
As propostas da Moonbrigade foram mal recebidas pela
população na plateia. “As pessoas da Baixa precisam de vazios, de espaços
verdes, de silêncio. Nós não precisamos de mais animação”, disse a segunda
interveniente, Fernanda, arrancando o primeiro grande aplauso da noite. “Os
contentores são objectos lindíssimos mas não é para aqui. Uma praça desta
dimensão, em termos políticos, não pode ser dada a um concessionário para ser
ele a decidir o que a praça vai ser”, criticou ainda.
Outra munícipe, Paula, quis saber se esta reunião ia servir
para alterar alguma coisa ou se era apenas um pró-forma. “As pessoas que moram
aqui não têm direito ao seu descanso?”, questionou por sua vez Maria João,
opinando: “Só falta ali um carrossel para ser a Feira Popular.”
Xana Campos, arquitecta, declarou que “as praças não são
projectos comerciais” e que “este tipo de ocupação é casuístico” e “não tem
interesse absolutamente nenhum”. Fábio Salgado, eleito do BE na freguesia de
Santa Maria Maior, ironizou que o projecto apresentado mais parecia “um plano
de urbanização” e criticou a câmara por alargar o prazo de concessão, quando o
anterior contrato “falhou”.
“Porque não usar esta oportunidade para dar à cidade aquilo
que ela verdadeiramente precisa? Esta zona não tem um jardim público”, propôs a
munícipe Susana. “Nós não temos um espaço onde descansar a cabeça”, corroborou
Lurdes Pinheiro, da CDU da freguesia. “A câmara tem aqui uma boa oportunidade
de transformar o Martim Moniz num espaço para as pessoas”, disse.
“Só há uma alternativa: o arquitecto Salgado rever este
projecto porque não é um projecto que sirva”, declarou Francisco Maia,
ex-autarca de Alfama.
Depois de ouvir todas as opiniões, o presidente da junta de
Santa Maria Maior levantou-se para afirmar que lhe tinham prometido que “viria
para aqui um projecto de alto nível” e que não lhe competia pronunciar-se sobre
a qualidade do mesmo. Porém, fê-lo logo de seguida: “Não gosto nada deste
projecto, tem um impacto visual muito grande.”
O autarca disse que, caso avance o mercado de contentores,
“aquilo que a junta exige aos promotores é que o controlo de todas as
actividades públicas seja feita pela junta”, de modo a evitar ruído excessivo e
tardio ou ocupações abusivas do espaço público. “Não tive dúvidas nenhumas de
que isto ia correr assim”, afirmou, referindo-se à enxurrada de críticas antes
ouvidas.
“Não é nossa intenção
criar qualquer tipo de ruído ou perturbação no espaço público”, assegurou Paulo
Silva, acrescentando que os contratos que celebrar com os lojistas vão ter isso
especificado. O responsável da Moonbrigade ainda desmentiu Manuel Salgado, que
ao PÚBLICO dissera que “eventualmente” o mercado teria uma vedação à noite,
impedindo assim o atravessamento da praça a pé. “O espaço não irá ser vedado,
será permeável”, disse.
“Haverá um cuidado criterioso na escolha dos inquilinos”, garantiu
ainda, repetindo a vontade de ali “criar um espírito de mercado”. “Aquilo que
presidiu à concepção do projecto foi fazê-lo para a população local e para o
bairro. Não foi nossa intenção criar um projecto turístico.”
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