Criar mais estacionamento em Lisboa pode “convidar” ao uso
do carro e desincentivar mobilidade sustentável
Samuel Alemão
Texto
14 Novembro, 2018
Apesar dos constantes anúncios de mais lugares de
estacionamento em Lisboa, eles parecem sempre ser insuficientes para a procura.
Provam-no os protestos frequentes de quem mora ou trabalha na capital. Que
acontecem agora com mais intensidade, quando a EMEL expande as zonas tarifadas
para os bairros onde ainda não operava. Até 2022, deverá controlar mais 60 mil
lugares na via pública. A empresa municipal e a câmara vão respondendo às
queixas, prometendo “mais bolsas de estacionamento”. Prevêem-se 5.600 novos
lugares em parques fechados, no mesmo período. Dinâmica que parece
contraditória com o objectivo da autarquia de reduzir a dependência face ao
automóvel, privilegiando os transportes públicos. Criar mais estacionamento não
será, afinal, o oposto da mobilidade
sustentável? Há quem considere existir “falta de coragem política para mostrar
os números”. Mas também quem enfatize o que de bom tem sido feito. Certo é que
a nível internacional há cada vez mais cidades a suprimir o espaço dado aos
carros.
Os próximos anos serão de crescimento para da EMEL (Empresa
Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa), que passará a explorar
mais 60 mil lugares na via pública, até 2022. Só no próximo ano, surgirão 20 mil.
Valores a somar aos 78 mil lugares tarifados e de residentes que se estima
estarem disponíveis até ao final de 2018. Ou seja, prevê-se que, daqui a quatro
anos, a empresa controlará 138 mil lugares de estacionamento na via pública.
Dinâmica que tem muito que ver com o alargar da malha de influência para as
zonas da cidade onde ainda não operava, as quais deixarão progressivamente de
existir – desde Agosto de 2016, aliás, todo o território da capital está sob
sua jurisdição. Em paralelo, a empresa garante no último plano de actividades –
em que prevê também o próximo quadriénio -, 5.600 novos lugares, disponíveis
até ao final desse período, distribuídos por parques dissuasores e para
residentes da cidade.
Parecem números relevantes, sem dúvida. Mas não será este
crescimento da oferta de parqueamento regulado contraditório com a propalada
menor dependência do automóvel, em favor da mobilidade sustentável? Há quem
ache que sim. “Há uma grande falta de coragem política para mostrar os números
e dizer às pessoas que não há possibilidade de oferecer mais lugares e para
todos. Não está escrito em lado nenhum, na Constituição da República
Portuguesa, que os poderes públicos têm de garantir lugares de estacionamento
para os donos de automóveis particulares”, diz Mário Alves, consultor na área
da mobilidade e dos transportes e, em simultâneo, dirigente da MUBI (Associação
pela Mobilidade Urbana em Bicicleta) – estando também vinculado à Associação de
Cidadãos Auto-Mobilizados (ACAM). E se tem uma visão crítica em relação ao
papel central desempenhado pelo automóvel na nossa sociedade, Mário acaba por
ter uma apreciação bem menos negativa da entidade que regula o estacionamento
na capital portuguesa – e que tão odiada parece ser por muita gente.
Até 2022, serão criados 5.600 lugares em parque dissuasores
e vocacionados para residentes
“Apesar de tudo, há quem perceba que a intervenção da EMEL
é, provavelmente, a única forma de proteger o bairro. Mas a generalidade das
pessoas vai estar sempre insatisfeita, vai sempre protestar. Até porque se
criou a ideia de quem protesta consegue sempre uma cedência dos decisores
políticos”, afirma o investigador e activista por um padrão de mobilidade mais
ecológico, lamentando “os maus hábitos”
decorrentes da dependência generalizada em relação ao automóvel. Afinal,
até os 12 euros anuais de emolumentos relativos à renovação o “selo da EMEL” –
“quase o valor de uma bica por mês” – são contestados por muitos.
“É sempre impossível
garantir a satisfação do desejo de estacionar à porta de casa, em zonas
urbanas, e será sempre impossível garantir estacionamento no próprio bairro, no
caso das zonas históricas”, diz Mário Alves, lembrando que, no caso da cidade
holandesa de Amesterdão, as zonas históricas têm limite de emissão de cartões
de residente e filas de espera de vários anos para a obtenção desses
comprovativos. “Quem está à espera tem que estacionar na periferia da cidade e
apanhar transporte público para casa”, explica.
Por isso, o
especialista em mobilidade reconhece ser necessário distinguir entre áreas da
cidade. Deve-se começar em zonas mais centrais e, “depois, gradualmente, entrar
nas restantes”. No entanto, é sabido que tal tem consequências: “Faz sentido
entrar numa freguesia por fases. É um dominó. Logo que uma zona seja controlada
pela EMEL, não só os resultados positivos para os moradores serão óbvios, como
a situação ficará pior nas zonas adjacentes não controladas”. Mário Alves
salienta, contudo, que uma fragmentação muito grande de certas áreas, como em
breve acontecerá nos Olivais, “pode causar problemas”. Embora tal partição
possa funcionar como forma de penalizar o desejo de se usar o carro para ir a
zonas próximas da habitação. Um “hábito que, por vezes, poderia ser substituído
pelo andar mais a pé ou pela criação de sistemas de transporte público de
bairro para idosos”, defende.
Da mesma forma,
considera fazer sentido “estudar formas rigorosas de distribuir cartões de
visitas de apoio para idosos”, os quais, muitas vezes, não têm carro e são
dependentes da ajuda dos filhos. Tal como vê como positiva a criação de zonas
exclusivas para residentes em ruas sem comércio, para assim se evitar a
circulação de procura de lugares para arrumar o carro em arruamentos “que
deveriam ter pouco tráfego”. A isso acrescenta a necessidade de se garantir a
rotação dos veículos que vão estacionando nas zonas tarifadas, limitando o seu
tempo de paragem num lugar. “Quando queremos transportar 20 litros num garrafão
de 5 litros, temos que o encher e esvaziar várias vezes”, diz. Mas essa
abordagem não pode servir para contornar o óbvio, avisa: a cidade não tem
lugares para tantos carros. “Mesmo nas zonas mais periféricas, como Telheiras,
não é possível fornecer lugares para todos”, afirma.
O mesmo acha Paulo
Muacho, deputado independente na Assembleia Municipal de Lisboa (AML), que, em
Setembro passado, no debate sobre a apresentação, por Fernando Medina (PS), do
relatório trimestral das actividades da Câmara Municipal de Lisboa (CML),
refreou o entusiasmo do presidente da autarquia pela anunciada criação de mais
bolsas de estacionamento. “É contraciclo querer reduzir o número de carros que
circulam dentro da cidade de Lisboa, aumentar a utilização do transporte
público e de soluções de mobilidade partilhada e suave e, simultaneamente,
aumentar o número de lugares de estacionamento em zonas como Entrecampos,
Beato, Penha de França e Alto dos Moinhos”, disse eleito, naquele momento.
E fundamentou tal argumento:
“A lógica de que cada família tem direito a um, dois ou três carros e que esses
carros devem ter lugares de estacionamento garantidos é insustentável e não é
acessível a todos. O espaço público, cada vez mais um bem escasso, deve ser
usufruído pelas pessoas e não servir para o estacionamento de veículos, que
estão 95% do seu tempo parados e sem utilização”. Apesar de apontar os esforços
feitos pela câmara municipal, nos últimos anos, na criação de “incentivos
positivos” à utilização dos transportes públicos, de bicicletas e de outras
formas de mobilidade menos poluente e partilhada, o deputado municipal
salientava também a dificuldade de mudança de comportamentos “sem a existência
de incentivos negativos”.
Ouvido agora por O
Corvo, Paulo Muacho reafirma que considera como “muito positivo” o trabalho
desenvolvido pela autarquia da capital na área da mobilidade. Mas reforça,
porém, a sua discordância com os planos de criação de novos parqueamentos com
dinheiros públicos. “O investimento de recursos da Câmara de Lisboa para esta
área deveria concentrar-se, sobretudo, na coordenação dos transportes públicos
e não em parques de estacionamento. Não faz sentido estar, agora, a
construí-los em zonas tão centrais como Entrecampos ou Penha de França. Acabam
por funcionar como incentivos para que as pessoas mantenham o seu carro e
circulem com ele dentro da cidade”, afirma o eleito independente.
Uma perspectiva que, nessa reunião de há dois meses na
assembleia municipal, até acabou, afinal, por ser, em parte, partilhada pelo
presidente da câmara municipal. Respondendo à crítica feita pelo deputado
municipal à criação de mais estacionamento em Lisboa, Fernando Medina admitiu
que, “a partir de determinado momento, pode haver a ideia de existir
incoerência relativamente aos objectivos de política”. Mas, logo de seguida,
afirmou a sua descrença em tal percepção, tal “o nível em que estamos e nas
zonas de que estamos a falar”. Apesar de considerar que o “modelo actual de
utilização do veículo individual – em que, por dia, entram 375 mil veículos em
Lisboa – é completamente insustentável”, Medina admitiu que a pressão sentida
pela câmara para responder à escassez de parqueamento não vem só de fora da
capital. “Em muitas zonas da cidade, não temos estacionamento para a primeira
viatura. Não existe e temos que o criar”, disse, resignado.
Isto apesar de, como
alguns notam, em nada a legislação nacional obrigar a administração pública a
assegurar a criação de parqueamento para privados. Na verdade, se se olhar para
as dinâmicas mais recentes a nível global, pelo menos nas sociedades mais
afluentes, poder-se-á perceber que grande parte da opinião pública portuguesa –
manifestamente arreigada ao uso do automóvel, muitas vezes encarado como
direito inalianável – está em contracorrente com o correr dos tempos. O mesmo
sucedendo também com parte do poder público, dela dependente eleitoralmente.
“Na própria assembleia municipal, há forças que se dizem ecologistas e
defendem, com unhas e dentes, o direito a usar o carro e a estacionar em
qualquer lado”, nota Paulo Muacho, ao salientar o quão implantado na sociedade
portuguesa continua a estar o uso do veículo individual.
Em diversos países,
está-se já a trabalhar no sentido não apenas de suster o crescimento das áreas
de circulação e de parqueamento de veículos particulares, mas também de as
reduzir. É o caso de Oslo, capital norueguesa, onde a zona central está quase
toda vedada ao automóvel, num exemplo dado, recentemente, pelo jornal The
Guardian, no âmbito de uma reportagem sobre os problemas associados ao
estacionamento em contexto urbano. Nele apontava-se a cidade inglesa de
Nottingham como “uma das primeiras do mundo a aumentar o preço do
estacionamento tarifado e a reinvestir as receitas daí provenientes em
transportes públicos”. Operação que, notava-se, gerou enorme contestação, mas
acabou por ser aceite pela maior parte da comunidade. Embora tenha havido
grande resistência de quem sugeria que a cidade estava a tornar-se “inimiga dos
condutores”, admitia Jane Urquhart, vereadora local, o maior desafio terá sido
explicar às pessoas que, na verdade, o espaço público não é de quem estaciona.
“Todos acham a rua um activo muito valioso, mas ninguém quer pagar por a
ocupar”, assinala a responsável.
Nessa mesma
investigação do diário britânico, referia-se que a cidade suíça de Zurique
impôs uma quota máxima de parques de estacionamento. Isto significa que, se uma
empresa quiser construir um novo, terá de pagar para que um dos existentes seja
desactivado. Em igual sentido, na Cidade do México, até há pouco tempo, os
novos empreendimentos imobiliários obrigavam os promotores a construir um
número mínimo de lugares para estacionar carros. Mas o paradigma foi invertido.
Agora, impôs-se um tecto para tais infra-estruturas, com penalizações
financeiras agravadas a quanto mais espaço for dedicado a tal funcionalidade.
Receitas essas que os responsáveis pela gestão da capital mexicana decidiram
reinvestir na infra-estrutura de transportes públicos. Também Madrid se prepara
para, a partir de 30 de Novembro, apenas permitir o acesso ao centro de
veículos considerados “não poluentes”. O objectivo é reduzir a poluição em 40%,
mas também o tráfego em 37%, permitindo dar mais espaço a peões, a bicicletas e
a meios de transportes sustentáveis. Tudo em nome do ambiente.
Políticas que, no fundo, até se encontram em linha com o
discurso oficial de Lisboa, cuja autarquia tem enfatizado a necessidade
imperiosa de se apostar na mobilidade sustentável. Como parte dessa estratégia,
a câmara municipal da capital portuguesa assumiu a gestão da Carris, a 1 de
Fevereiro de 2017, cumprindo assim um objectivo há muito preconizado pela liderança
socialista da autarquia. Dessa mesma estratégia fazem parte a EMEL, a nível
concelhio, mas também os diversos operadores de transportes públicos, numa
escala mais vasta, abarcando toda a Área Metropolitana de Lisboa. Após
negociações com o Governo, foi recentemente anunciada criação da marca Carris
Metropolitana, sob a qual passarão circular, a partir de Abril de 2019, todos
os autocarros da Grande Lisboa, assistindo-se em simultâneo a uma redução
significativa do preço dos passes. Medidas elogiadas pela generalidade dos
observadores.
Então, porquê
continuar a apostar no aumento da oferta de lugares de estacionamento? Não será
essa uma medida contraproducente, tendo em conta o objectivo de retirar
automóveis das zonas centrais de Lisboa? “Em todos os inquéritos à utilização
do veículo individual, é assumido que, se houver estacionamento, as pessoas vão
aproveitar”, refere a O Corvo Luís Picado dos Santos, professor catedrático da
área dos transportes no Instituto Superior Técnico (IST), não deixando de notar
que, sem surpresa, “cobrar pelo estacionamento pode cortar esse impulso”. A
existência de estacionamento público pago e controlado disponível, como é o
caso do gerido pela EMEL, pode ser o mal menor para muita gente, nota o
académico. “Não podemos diabolizar o transporte individual. Para muita gente
que tem filhos ter de usar, em exclusivo, o sistema de transportes públicos
actual seria um pesadelo. Se, na mesma casa, duas pessoas vão mais ou menos
para a mesma zona, e tendo em conta o que existe, naturalmente vão escolher o
carro”, analisa.
O professor defende,
contudo, que tal opção terá de deixar de ser vista como natural, através de uma
clara aposta política na “mobilidade como serviço de qualidade” e, ao mesmo
tempo, valorizando “uma vida ambiental mais limpa”. Apesar de reconhecer que há
ainda muito a fazer na melhoria dos transportes públicos, Luís Picado dos
Santos entende que, ao contrário do que é muitas vezes referido, “Lisboa até é
servida com uma densidade razoável de transporte de massas”. “Aquilo em que se
tem de apostar, sobretudo, é na mudança de paradigma, em que as pessoas
percebam claramente a diferença entre ser dono de um veículo e o ser dono da
possibilidade de se mover”, diz. Essa alteração do padrão da mobilidade
pressupõe resistências, leva tempo. “Isto tem uma evolução. A minha geração
tinha como objectivo ter um carro ou dois. As novas gerações têm outra visão”,
assinala o investigador, que tem 58 anos.
Se se passar a
verificar – e só quando isso suceder – uma percepção generalizada da melhoria
dos sistemas de transportes públicos, poder-se-á então começar a pensar em
eliminar lugares de estacionamento. “Se tivermos um sistema de transportes
públicos que funcione, os poderes públicos ganham legitimidade para suprimir o
estacionamento ou, pelo menos, não serem tão permissivos com o mesmo”, diz o
deputado municipal Paulo Muacho, admitindo, todavia, não estarem ainda reunidas
as condições para se dar tal passo em Lisboa. Mas, sugere, poderia
suspender-se, a partir de agora, a construção de novos parques. “Para já,
dever-se-ia canalizar esses recursos para soluções partilhadas de mobilidade,
não investindo em mais estacionamento. A médio e longo prazo, pode-se pensar em
começar a penalizar o uso do carro. Neste momento, não é exequível”, considera.
“Estas mudanças têm de ser feitas com as pessoas”.
Algo que outros
observadores consideram não estar, todavia, a acontecer. Suprimir lugares de
estacionamento? “Isso já tem estado a ser feito, de uma forma gradual. Veja-se
o que aconteceu nas obras de requalificação do Eixo Central ou da Avenida
Guerra Junqueiro. Cortou-se no espaço disponível para arrumar o carro”, comenta
Rui Martins, porta-voz do movimento de residentes Vizinhos do Areeiro,
criticando o que avalia ser a forma pouco criteriosa como a EMEL e o município
têm gerido a ocupação do espaço público por um parque automóvel com uma
dimensão superior ao número de lugares existentes. “Esses lugares que a EMEL
agora diz criar são, no fundo, os que já existiam, mas estavam desregulados.
Não estavam sob a sua alçada. Isso muda e eles anunciam-nos como sendo novos”,
critica, sugerindo que, na verdade, o que se está a verificar é apenas o
alargamento do universo das zonas tarifadas, sem que se aumente a oferta de
parqueamento.
Mas o activista
urbano não se fica por aqui nos reparos. “Existem vários parques que estão
concessionados e se encontram vazios. Só na zona de Alvalade e Areeiro, durante
a noite, devem existir cerca de dois mil lugares sem utilização, os quais
poderiam bem ser ocupados por residentes. O Bairro dos Actores, por exemplo, é
dos mais mal servidos de estacionamento. Durante a noite, vêem-se ali muitos
carros mal estacionados, uns em cima do passeio, outros em cima de passadeiras,
e não existe qualquer fiscalização”, descreve, salientando que os parques
concessionados poderiam ajudar a resolver o problema. Mas tal não acontece,
diz, porque “são caros”.
Outra das situações
que os Vizinhos do Areeiro consideram contribuir para a escassez de soluções
para arrumar o carro tem que ver com o fenómeno das “falsas garagens”. Naquela
freguesia, e um pouco por toda a cidade, existem estabelecimentos comerciais e
escritórios que funcionam em antigos acessos de garagem e continuam a ostentar
a placa relativa ao “artigo 50” – segundo o qual não se pode estacionar nessas
zonas, devido à suposta serventia de acesso a um parque automóvel. “Perdem-se
assim lugares que poderiam existir e estar ao serviço de todos”, comenta. Numa
recente contabilização, Rui Martins encontrou 23 casos destes na freguesia do Areeiro.
Uma questão relevante, é certo, mas que terá dificuldade em entrar no topo da
lista das prioridades dos responsáveis pela gestão da mobilidade de uma cidade
onde, por dia, circulam cerca de 750 mil veículos.
Vou de carro, fica mais em conta!”
Os centros urbanos sofrem um congestionamento crónico,
elevando os níveis de poluição a valores que ameaçam a saúde pública e a
necessidade de atingir metas ambientais ambiciosas.
Sérgio Esperancinha e Helder Ferraz
Sérgio é geólogo e investigador da Universidade de Coimbra.
Helder é investigador.
14 de Novembro de 2018, 10:56
Se pudéssemos resumir num provérbio ou ditado popular o
livro O Triunfo dos Porcos, de George Orwell, diríamos que “de boas intenções
está o inferno cheio”. A propaganda é inimiga da realidade, do país real. E o
país real está hoje construído à medida de um povo que, fruto do seu carácter
afável, acaba por ter um estado social longe do que merece e precisa.
Sabemos, pela insatisfação que é pública e considerando as
greves, que áreas fundamentais da nossa democracia, como a educação e a saúde,
continuam com muitas dificuldades fruto de um desinvestimento que dura há
vários anos e vai continuar. Mas há outra área que merece a nossa preocupação –
a mobilidade. Recentemente, o Governo inscreveu no Orçamento do Estado a
criação de um valor limite de 40 euros no passe mensal para as áreas
metropolitanas de Lisboa e Porto, e a gratuitidade, nos transportes públicos
para crianças até aos 12 anos. Apesar de bem-vindas, estas medidas contribuem
pouco ou nada para a melhoria da rede nacional de transportes públicos, reduzir
a enormíssima quantidade de veículos que diariamente circulam nos grandes
centros urbanos e para se constituírem como uma alternativa válida ao
transporte individual e aos acessos da periferia. Os preços, o tempo de viagem
e o desconforto são alguns dos motivos pelos quais os transportes públicos em
Portugal são relegados para um plano secundário. Aqui ficam alguns exemplos:
“Sabemos, pela insatisfação que é pública e considerando as
greves, que áreas fundamentais da nossa democracia, como a educação e a saúde,
continuam com muitas dificuldades fruto de um desinvestimento que dura há
vários anos e vai continuar. Mas há outra área que merece a nossa preocupação –
a mobilidade.”
De acordo com o site da CP, realizar uma viagem de comboio
entre Porto-São Bento e Livração (Marco de Canaveses) num comboio urbano (cerca
de 60 quilómetros) custa 4,40 euros. No entanto, se sair cerca de 12
quilómetros antes, em Caíde, o passageiro pagará 2,95 euros. Quase 1,50 euros
por mais 12 quilómetros. É exorbitante. Mesmo com os preços dos combustíveis
tão elevados, a viagem de carro pelas estradas nacionais ficará por valor
idêntico e demorará praticamente o mesmo. No caso da auto-estrada chega-se ao
destino cerca de 30 minutos antes com um custo de aproximadamente 7,30 euros ou
pelas estradas nacionais (evitando portagens) por aproximadamente o mesmo tempo
de viagem e um valor que ronda os cinco euros.
Contudo, esta informação prestada no site está incorrecta
(acontece o mesmo para comboios inter-regionais). Isto porque, se o bilhete for
adquirido nas máquinas automáticas na Estação de São Bento, no Porto, o preço
pago será de 3,20 euros. E, após o transbordo em Caíde para outro comboio em
direcção à Livração os revisores não estão munidos de aparelhos que permitam
controlar este troço de 12 quilómetros, ou seja, alguém que tenha comprado o
bilhete apenas até Caíde não terá que pagar a restante viagem após o
transbordo. É motivo para citar Fernando Pessa: “E esta hein?” A
desconsideração é tal que nem há exigência na prestação dos serviços, ora
online ora no controlo de passageiros. E vocês esfregam as mãos e dizem:
"Porreiro, pá". Afinal pagamos menos do que eles dizem no site e
ainda podemos garantir uma borla entre Caíde e Livração. Em certa medida não
vos condenámos, afinal de contas os impostos que pagamos são tão pessimamente
devolvidos em serviços que mais vale sermos espertos do que zelarmos pelo bem
público.
Uma viagem entre as estações de Porto Campanhã e Coimbra B
(114 quilómetros), através do Intercidades, tem um custo de 13,40 euros e o
tempo de viagem é de 1h10m. Depois, chegados a Coimbra, e se — como é o caso
frequente de um de nós — quisermos ir até ao Pólo II da Universidade de Coimbra
(situado no extremo sul da cidade), temos duas opções: vamos de táxi e pagamos
cerca de sete euros ou vamos de autocarro (1,60 euros, título único de viagem)
e demoramos cerca de 50 minutos, sendo que somos obrigados a realizar um ou
dois transbordos. Portanto, precisamos de duas horas e de gastar no mínimo
16,60 euros para ir do Porto ao Pólo II da Universidade de Coimbra utilizando
exclusivamente os transportes públicos. A mesma viagem de automóvel demora
cerca de 1h15 e custa aproximadamente 18 euros.
No Porto, quem por exemplo viver na zona da cooperativa da
Prelada (onde há cerca de 2000 apartamentos) tem apenas disponível (para além
do metro cuja cobertura é limitada) um autocarro que passa a cada 30 minutos. É
fácil perceber que praticamente todos os moradores desta zona utilizam o carro
para se deslocarem para o trabalho: o extenso espaço de estacionamento está
quase vazio a partir das 9horas.
Finalmente, destacamos Oeiras e quem trabalha em Benfica,
por exemplo. Vamos descrever a gincana. Opção 1: de autocarro, chegar a
qualquer estação da linha da CP entre Lisboa e Cascais, depois apanhar o
comboio até ao Cais do Sodré e de seguida o metro até às Laranjeiras ou Alto
dos Moinhos. Opção 2: o mesmo percurso de comboio até Algés e seguir depois de
autocarro pela CRIL e segunda circular — na qual não existe qualquer faixa para
autocarros — até Benfica. De uma forma ou de outra, é um percurso que demora
aproximadamente 1h30. De carro? Quinze minutos sem trânsito ou um hora — na
pior das hipóteses — em hora de ponta.
São apenas quatro exemplos, mas acreditamos que, se
fizéssemos uma consulta pública, o volume de exemplos e experiências
surpreendentes seria suficiente para publicar um livro entre o drama, a
aventura e a comédia. Como consequência, os centros urbanos sofrem um
congestionamento crónico, elevando os níveis de poluição a valores que ameaçam
a saúde pública e a necessidade de atingir metas ambientais ambiciosas
considerando o cumprimento do Roteiro para a Neutralidade Carbónica,
apresentado recentemente pelo Governo, o retrato da mobilidade em Portugal não
é bom. Acresce ainda a sistemática falta de estudos que possibilitem
identificar as fragilidades da rede nacional de transportes públicos, para
depois se promoverem estratégias que visem um investimento num plano nacional
de mobilidade, que não existe. Por estes motivos, isola ainda mais as
populações do interior que não encontram uma solução eficaz que vá de encontro
às suas necessidades — e vantajosa para se deslocarem utilizando os transportes
públicos
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