PORTUGAL A SAQUE
Não é só na habitação que Portugal está a saque . Nào é só
na invasão de lojas asiáticas a fazer “dumping” e a invadirem os centros
históricos destruíndo juntamente com o Turismo de Massas o comércio
tradicional.
Agora também nos eco-sistemas
OVOODOCORVO
Aqui só resta um cavalo-marinho
01.11.2018 às 22h00
Tráfico para a China arrasa população de cavalos-marinhos da
Ria Formosa, que albergava a maior comunidade do mundo
RAQUEL MOLEIRO
Mergulho. Durante o censo de cavalos marinhos na Ria
Formosa, o biólogo Miguel Correia mergulhou em 15 locais. Em oito não encontrou
nenhum cavalo. Aqui, no Canal de Faro, junto ao Porto Comercial, registou
apenas um. Há cinco anos, eram dezenas. À esquerda, imagens captadas durante os
mergulhos
FOTO TIAGO PEREIRA SANTOS
Um cavalo-marinho, apenas um. Mais de trinta minutos de
mergulho, uma área de 240 metros quadrados varrida ao pormenor no canal de
Faro, e quando voltou à superfície o biólogo Miguel Correia só tinha preenchido
uma linha do quadro subaquático de registo: “hippocampus guttulatus, sexo
masculino, jovem adulto”. Estava com esperança de que, pelo menos ali, os
números fossem animadores. Há cinco anos, durante a pesquisa para o
doutoramento sobre as duas espécies existentes no Parque Natural da Ria
Formosa, contabilizou naquele local, em frente ao cais comercial, dezenas de
exemplares. “É uma depressão, um desânimo inexplicável”, desabafa.
A sensação repetiu-se quinze vezes, tantas quantas as zonas
de amostragem analisadas para o censo populacional, realizado no primeiro
semestre de 2018, pelo investigador do Centro de Ciências do Mar da
Universidade do Algarve. Em oito mergulhos não encontrou qualquer exemplar, em
mais quatro apenas avistou um ou dois cavalos-marinhos. Nos restantes locais,
os números variaram entre os cinco e um máximo de 21. No total, nos 3800 metros
quadrados de área protegida que perscrutou pessoalmente só contabilizou 40.
A posterior análise científica da amostra deu números e
dimensão à certeza que Miguel já tinha: a maior comunidade do mundo fora
devastada, reduzida a um mínimo tão baixo que, nas condições atuais, pode já
não assegurar a reposição. Comparando com 2012, ano do último censo, a
diminuição é de 80%. A estimativa aponta para que atualmente não restem mais do
que 155 mil cavalos-marinhos na Ria Formosa. Em seis anos desapareceram quase
600 mil.
O cenário é ainda mais devastador quando comparado com 2001,
altura em que a investigadora canadiana Janelle Curtis descobriu que em mais
nenhum lugar havia uma população tão numerosa: eram então 1,3 milhões.
Entretanto, já se sabia, a abundância de cavalos-marinhos tinha sofrido uma
quebra acentuada pela destruição das pradarias, o seu habitat, mas por volta de
2008 começara a reerguer-se voltando a valores animadores. Perderam-se. Em dez
dos 15 locais de mergulho registaram-se agora os piores números de sempre.
O relatório permite identificar a devastação local a local,
amostra a amostra: no extremo poente da Ria Formosa, localizado perto da Quinta
do Lago, passou-se de 22 cavalos-marinhos para dois; nos sete pontos de
mergulho ao longo do canal de Faro só foram registados nove (no total); junto à
barra da Armona, de 20 resta um; junto ao pontão de Marim (onde se situa a sede
do Parque Natural da Ria Formosa), de uma dezena passou-se para nenhum. “Se os
fatores de pressão não forem eliminados num curtíssimo espaço de tempo, os
cavalos-marinhos poderão correr o risco de não terem o número mínimo que
permita a sua recuperação, ficando suscetíveis a uma extinção local”, garante o
biólogo. “E isso pode acontecer dentro de dois, no máximo três anos”,
acrescenta.
O censo 2018 foi pedido no início do ano pela Fundação
Oceano Azul, do Oceanário de Lisboa, quando se adensaram os indícios de que a
população de H. guttulatus e H. hippocampus, ambas espécies protegidas, estava
a ser delapidada. Conhecer a dimensão exata do estrago foi só um ponto da
estratégia que se pôs em marcha para estancar a perda, e que passa pela
intervenção junto da população local para enraizar a ideia da captura como um
comportamento condenável. “Decidimos agir quando percebemos que esse capital natural
se podia extinguir por haver uma inação do Estado. A modernidade não é só a
fibra ótica, é proteger os valores ambientais e salvar uma espécie que podia
ser o símbolo da Ria Formosa ou mesmo do Algarve”, critica Tiago Pitta e Cunha,
diretor executivo da Fundação.
O relatório final do impacto populacional ficou pronto este
mês. No fundo era só o que faltava saber: quão atingida tinha sido a
comunidade. “Os rumores de que havia captura ilegal para o mercado asiático, de
centenas de indivíduos diariamente, e de que se vendiam cavalos-marinhos secos
a cinco e 10 euros a unidade já eram há muito uma certeza. Mas o pior é que
essa prática continua. É feita de uma forma brutal, por arrasto de vara, em que
um barco arrasta uma rede fina que apanha tudo por onde passa. Os
cavalos-marinhos são sedentários, vivem em áreas de 100 metros quadrados e os
arrastos são sempre superiores a isso, dizimando totalmente os locais. Os que
não são apanhados ficam isolados, reduzindo a possibilidade da reposição da
população. E, além de levar os cavalos-marinhos, a rede destrói as pradarias
impossibilitando o regresso da espécie. Durante os mergulhos é visível o
desaparecimento de largas extensões de ervas marinhas. Fica só lama, sem locais
onde os cavalos-marinhos se agarrarem”, relata Miguel Correia.
NEGÓCIO DE €1600 MILHÕES
As denúncias também chegaram ao Serviço de Investigação
Criminal da Polícia Marítima. O inquérito foi aberto há poucos meses mas o
Expresso sabe que já foi possível identificar um “esquema de tráfico em rede,
extremamente lucrativo, a operar em Olhão e com ligações ao oriente e a
Espanha”, e um modus operandi que se repete, independentemente dos
intermediários e mandantes. O valor das encomendas subiu nos últimos tempos
devido à escassez de cavalos-marinhos, o que pode aliciar ainda mais pescadores
para o crime.
O negócio terá começado há cerca de três anos, quando
começaram a aparecer na zona compradores orientais de pepinos do mar, um
invertebrado da família da estrela-do-mar apanhado aos milhões para satisfazer
a procura de chineses e japoneses que lhe atribuem, na versão seca e sem
vísceras, poderes medicinais perto do milagre: desde a cura do cancro do cólon
à da artrite, da impotência à fadiga.
UM QUILO DE CAVALOS-MARINHOS PODE CUSTAR QUASE QUATRO MIL
EUROS NA CHINA
Os investigadores acreditam que um crime levou ao outro. Os
traficantes perceberam então que no sistema lagunar da Ria Formosa havia
cavalos-marinhos, ainda mais rentáveis do que os pepinos. Um quilo pode ser
vendido na origem por 1500 euros, sendo que o seu valor multiplica duas vezes e
meia quando chega ao mercado asiático. Para atingir esse peso são precisos
cerca de 300 espécimes. Daí à extinção é um passo curto e rápido.
A nível mundial, todos os anos mais de 15 a 20 milhões são
capturados e transformados em pó para utilização na medicina tradicional
oriental, numa versão piscícola de Viagra que se aplica nos genitais masculinos
misturado com óleo. Mas não chegam: a procura ronda as 600 toneladas anuais e
move cerca de 1600 milhões de euros. Todas as 42 espécies de cavalos-marinhos
identificadas estão na lista vermelha da União Internacional para a Conservação
da Natureza e dos Recursos Naturais e a sua comercialização é proibida,
restando a via ilegal para a transação.
Compradores chineses e intermediários espanhóis frequentam a
doca de Olhão, e também outras zonas próximas da Ria, e é aí que abordam os
pescadores portugueses. Alguns apresentam-lhes listas com as várias espécies
proibidas que se dispõem a comprar, cavalos-marinhos incluídos. Os que aceitam
trabalhar para as redes juntam-se em grupos, espécie de cooperativas informais
em que todos contribuem para completar a encomenda, dividindo depois o lucro.
Fazem a apanha de noite, quer com vara de arrasto quer por mergulho, neste último
caso capturando os cavalos-marinhos à mão, um a um, sem esforço (um
cavalo-marinho pode demorar quatro minutos para nadar um metro). Junto às
capitanias há sempre vigias, que alertam quem está na água quando é detetada a
saída de embarcações policiais.
Os primeiros apanhados em flagrante foram detidos em
Espanha, há dois anos. Dois portugueses de Olhão, pescadores de arrasto, pai e
filho, e a mulher deste, brasileira, encontram-se com dois espanhóis de Cádis
na estação de autocarros de Marbella, em Málaga. A família algarvia traz no
porta-bagagens três malas cheias de cavalos-marinhos secos, sete quilos, 2133
exemplares que se prepara para vender por dez mil euros. A viagem foi planeada
ao milímetro. Veio outro carro antes, a fazer de batedor, mas não serviu de
nada. O Serviço de Proteção da Natureza da Guardia Civil (Seprona) tinha sido
informado do negócio, interrompeu a transação e deteve os cinco traficantes por
crime contra a flora e a fauna e tráfico ilegal de espécies em risco.
Em Portugal nunca houve detenções, só operações e deteções
de redes e armadilhas. A última ocorreu há um mês, a 23 de setembro. “Durante
uma ação noturna de fiscalização foi identificada uma embarcação a pescar por
arrasto de vara. Os dois pescadores fugiram mas deixaram para trás a rede, onde
estavam presos cavalos-marinhos, mas também chocos, polvos e peixes pequenos,
que foram devolvidos à Ria”, recorda o comandante Cardoso de Morais, capitão do
Porto de Olhão. Com equipa reduzida, o combate ao tráfico é feito em concorrência
com uma multitude de ocorrências e ao ritmo de informações concretas. A época
balnear ainda não acabou em todos as praias e concentra grande parte do
trabalho.
Cavalos-marinhos secos apreendidos em Espanha pela Guardia
Civil a pescadores portugueses em 2016. Em baixo, armadilhas detetadas pela GNR
na Ria Formosa no início de 2018. No interior estavam 15 espécimes
Cavalos-marinhos secos apreendidos em Espanha pela Guardia
Civil a pescadores portugueses em 2016. Em baixo, armadilhas detetadas pela GNR
na Ria Formosa no início de 2018. No interior estavam 15 espécimes
FOTOS GUARDIA CIVIL E GNR
Rede morta, rede posta. A armadilha perdida já foi
entretanto reposta, garante uma denúncia que chegou às autoridades. Foi vista,
espalhada ao comprido, a ser amanhada pelos pescadores que, em descontraída
converseta, lá iam falando dos mil euros a mais que a captura lhes acrescenta
ao rendimento mensal.
“A fiscalização da Ria cabe ao ICNF [Instituto da
Conservação da Natureza e Florestas], mas só têm dois barcos disponíveis e só
um é que opera. E apenas tem dois vigilantes para saídas e mesmo esses têm mais
uma série de tarefas. Há tanta coisa que corre mal e todas concorrem para a
diminuição dos cavalos-marinhos. Há cada vez mais barcos a fundear de forma
desorganizada. Há passeios turísticos em que os guias apanham os
cavalos-marinhos e os põem num tupperware para os turistas verem”, critica o
biólogo Miguel Correia. “É verdade que nós já conseguimos reproduzi-los em
cativeiro. Parece a solução mágica não é? Não. Nem pensar que vou
reintroduzi-los para os apanharem. Só em última instância e com garantia de
vigilância. E ainda assim não é o elixir mágico. Há doenças que podem ser
transmitidas e pôr em causa a comunidade. Há uma variabilidade genética que é
preciso respeitar. A solução é só uma: acabar o tráfico. Se não é o fim.”
ESPÉCIE
São peixes e têm um tempo médio de vida de três a cinco anos
Nadam hirtos e apresentam cores variadas
Alimentam-se de crustáceos, moluscos e vermes
O tamanho médio da espécie H. guttulatus ronda os 20 cm e é
dez vezes mais abundante do que o pequeno H. hippocampus. São as únicas duas
espécies do Mediterrâneo e do Atlântico
Tem apenas uma barbatana dorsal e duas peitorais muito
pequenas, o que o faz deslocar-se muito devagar. Enrola a cauda nas plantas
marinhas para não ir nas correntes
É o macho que dá à luz, fertilizando internamente os óvulos
que a fêmea deposita numa bolsa na base da sua cauda
O macho e a fêmea mantêm uma relação monogâmica, com
comportamentos ritualizados de acasalamento, a sincronização da natação e o
entrelaçar das caudas
Não têm muitos predadores. O seu exosqueleto torna-os pouco
apetitosos. Predador só o Homem
DECLÍNIO
CAPTURA ILEGAL
“Mais de 37 milhões de cavalos-marinhos são capturados
anualmente em equipamentos de pesca não seletivos, como redes de arrasto ou de
cerco”, denuncia ao Expresso Amanda Vincent, coordenadora e cofundadora do
Projeto Seahorse, que a nível mundial luta pela conservação deste peixe.
Destes, cerca de 15 a 20 milhões são comercializados secos para a medicina
tradicional chinesa e centenas de milhares são vendidos para aquários. “É
importante regular o comércio e o consumo, mas ainda é mais importante regular a
pesca de arrasto que mataria os cavalos-marinhos mesmo que não existisse
procura para a sua comercialização”, acrescenta. A prática é proibida na Ria
Formosa mas é realizada de forma furtiva.
DEGRADAÇÃO AMBIENTAL
Com a apanha ilegal por arrasto de vara, além da captura da
espécie é destruído o habitat. Desaparecem as macroalgas às quais se agarram e
onde se estabelecem as colónias. O assoreamento das barras também é nefasto,
assim como o fundeamento descontrolado de embarcações, cujas âncoras criam
zonas vazias. Cada vez mais se encontram estes animais em pontos de fixação que
antes não utilizavam, como as amarrações de boias, como se procurassem uma
alternativa para sobreviver. Apesar dos 11 mil hectares da Ria Formosa estarem
em zona protegida, são permitidas diversas atividades humanas, como a pesca, a
cultura de bivalves, aquicultura, extração de areia e atividades turísticas.
POLUIÇÃO SONORA
O ruído provocado pelo aumento da náutica de recreio na Ria
Formosa causa stresse aos cavalos-marinhos, alterando o seu batimento opercular
(vital para a obtenção de oxigénio) e os passeios turísticos para avistamento
da espécie, por snorkeling, também não ajudam, uma vez que sinalizam os locais
onde existem para quem os quer apanhar furtivamente.
FERTILIDADE BAIXA
O macho pode libertar 200 a 300 juvenis, mas em meio natural
muito poucos sobrevivem, o que dificulta a renovação de gerações. Com a sua
retirada aos milhares, a população rapidamente entra em colapso, por extrema
dificuldade de reposição. Um número baixo de indivíduos em meio selvagem,
espalhados, pode pôr em causa a reprodução da espécie, a sua subsistência e
levar até ao seu desaparecimento. No censo de 2018 é evidenciado o
envelhecimento da população.
SEDENTARISMO
Os cavalos-marinhos são fiéis ao seu espaço, não se deslocam
além dos 100 m2, ocupam sempre os mesmos lugares e não são conhecidos pela sua
rapidez, podendo demorar quatro minutos para nadar um metro. Ou seja, são
presas muito fáceis e basta um mergulho ou um arrasto para arrasar toda uma colónia.
A maioria habita zonas costeiras tipicamente impactadas por atividades humanas,
tornando-os particularmente vulneráveis.
SOLUÇÕES
REPRODUÇÃO EM CATIVEIRO
É desenvolvida desde 2007 no Centro do Ramalhete,
infraestrutura de pesquisa científica da Universidade do Algarve gerida pelo
Centro de Ciências do Mar. Foi a primeira instituição a nível mundial a
conseguir a reprodução com sucesso da espécie H. guttulatus. Muitos aquários
têm interesse nesta tecnologia como forma de suprimir a necessidade de exemplares
selvagens para as suas exposições.
RECIFES ARTIFICIAIS
Criação de áreas de proteção com recifes artificiais feitos
de corda náutica que imitam as algas, de quatro a 10 metros quadrados, em zonas
mais profundas. Os biólogos acreditam que seriam espontaneamente ocupadas pelos
cavalos-marinhos selvagens, uma vez que estes procuram as condições adequadas,
zonas com mais hidrodinamismo, onde há mais correntes que levam a comida até
eles (não gostam de ser eles a procurá-la). Atualmente, porém, a população está
de tal forma reduzida que nem as estruturas artificiais já existentes na Ria
Formosa estão a ser colonizadas.
EDUCAÇÃO AMBIENTAL
Tornar as atividades furtivas socialmente inaceitáveis ao
promover um sentimento de orgulho e pertença em relação aos cavalos-marinhos,
escolhendo como passadores da mensagem os pescadores mais respeitados,
incluindo mulheres. Essa mudança de paradigma deverá ser reforçada por ações de
educação ambiental nas escolas, sensibilização da comunidade piscatória e da
opinião pública, envolvimento de organizações não-governamentais e da
comunidade científica e colaboração com as autoridades locais e nacionais.
FISCALIZAÇÃO
A redução drástica dos cavalos-marinhos da Ria diz tudo
sobre a eficácia atual da vigilância. Quer o ICNF quer a Polícia Marítima
debatem-se com escassez de meios, a que se soma a rede de ‘olheiros’ que
trabalham para os traficantes e infratores e que os avisam das ações policiais
e de fiscalização. Está a ser equacionada a instalação de um sistema de câmaras
de vigilância noturna na Ria Formosa. Como as más práticas não se ficam pelos
pescadores, os biólogos defendem o desenvolvimento de um protocolo com as
empresas de atividades lúdicas para evitar os impactos negativos nas
populações.
INFORMAÇÃO
Há falta de informação sobre as espécies que existem em
Portugal — o H. guttulatus e o H. hippocampus —, nomeadamente sobre a
distribuição além da Ria Formosa, o que impede a sua proteção. Há presenças
identificadas nos estuários do Sado e Tejo, no rio Arade e na Lagoa de Melides,
mas os dados são muito escassos. Atualmente existe uma plataforma digital
(www.iseahorse.org) onde qualquer pessoa pode adicionar avistamentos (vivos ou
mortos) e a sua localização, com ou sem fotografia.
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