Avenida da Igreja reinventa-se e são cada vez mais os que
preferem Alvalade em vez da Baixa para fazer compras
Sofia Cristino
Texto
31 Outubro, 2018
O comércio do bairro de Alvalade está a rejuvenescer. As
pastelarias e os cafés estão sempre cheios e, à noite, vê-se mais gente a
passear. Na Avenida da Igreja, e nas ruas transversais, ao lado de casas
tradicionais, têm surgido lojas e restaurantes novos. Recentemente, a antiga
pastelaria Biarritz encerrou para dar lugar a uma conhecida cervejaria. Tal
diversidade tem sido elogiada por quase toda a comunidade. “Antigamente, íamos
à Baixa, até para encontrar um artigo mais raro. Agora, vimos a Alvalade, tem
tudo”, diz uma moradora. A única crítica parece ser só mesmo o preço das
rendas. “Para termos uma loja na Avenida da Igreja, chegaram a pedir-nos 10 mil
euros, já pedem mais do que na Baixa”, conta uma vendedora. Ao contrário do que
vai acontecendo no resto da cidade, onde as freguesias têm vindo a perder
população, Alvalade voltou a ultrapassar a fronteira dos 30 mil eleitores.
Naturais do Brasil e apaixonados por Portugal, Martha
Varella e Pedro Mendes mudaram-se para Lisboa, há dois anos, em busca de
melhores condições de vida. Depois de um ano e meio à procura de um sítio para
abrirem um negócio na área da restauração, foi em Alvalade que encontraram
“tudo o que procuravam”. “É um bairro familiar com muito comércio, e estas
características agradaram-nos logo. Vimos que ainda não havia nenhuma
cervejaria artesanal aqui e poucos restaurantes veganos, e pensamos aliar as
duas coisas”, explica Martha Varella, 34 anos. Na cervejaria, instalada na Rua
Acácio de Paiva, há duas semanas, em Alvalade, só se vendem cervejas artesanais
portuguesas e petiscos veganos. E há um motivo.
“Ainda existe algum preconceito em relação à comida vegana e
queremos desmistificá-lo. Os veganos não comem só saladas, há uma infinidade de
receitas boas, e estamos a ajudar o planeta.
Normalmente, quem come carne também gosta de pratos veganos, por isso
acreditamos que, com esta opção, chegamos a todos”, diz Martha. O companheiro,
Pedro Mendes, 34 anos, quer dar a conhecer a cerveja artesanal portuguesa para
quem ainda não está tão familiarizado com o conceito. “É para quem gosta e,
para quem não gosta, aprender a gostar”, brinca.
O bairro de Alvalade, construído nos anos 40 do século
passado, sempre foi caracterizado por uma vida comercial muito dinâmica, com
espaços abertos em diferentes ramos de actividade, mas agora está a
rejuvenescer. Ao lado de lojas tradicionais, têm surgido restaurantes gourmet e
espaços mais preocupados com o meio ambiente. “Só vendemos brinquedos para os
pais passarem mais tempo com as crianças e os materiais utilizados são todos
sustentáveis. Os móveis que temos aqui também foram reaproveitados”, explica Joana
Gonçalves, 40 anos, funcionária da Maria do Mar, uma loja de brinquedos.
O espaço tem poucos
meses e nasceu como complemento de um outro, localizado a poucos metros, e,
apesar de ser mais pequeno do que o primeiro, tem uma pequena sala onde as
crianças podem brincar enquanto os pais circulam pela loja. “O bairro de
Alvalade tem muita vida própria e os novos espaços têm trazido outra vida ao
bairro. Acredito que está em crescimento e há espaço para todos”, diz Joana
Gonçalves. A afirmação confirma-se numa volta pelas ruas transversais à Avenida
da Igreja, onde ainda se concentra grande parte do comércio tradicional, mas
onde também já começam a surgir restaurantes e lojas novas.
"É um bairro familiar", elogiam Martha Varella e
Pedro Mendes
À cozinha tradicional portuguesa e aos gelados da
Conchanata, têm-se juntado gastronomias oriundas de várias partes do mundo. O
Pasta Non Basta foi dos últimos restaurantes a chegar ao bairro, em Fevereiro
deste ano, mas já há mais cinco estabelecimentos de restauração italianos nas
ruas adjacentes à Avenida da Igreja, novos restaurantes japoneses e
tailandeses. Só neste mês de Outubro, a antiga pastelaria Biarritz encerrou
para dar lugar à cervejaria Portugália, a charcutaria Rivera e a loja de roupa
Gerry Weber (antiga casa Castor) reabriram remodeladas, e apareceu uma outra
cervejaria. Poucos meses antes, na Rua Marquesa de Alorna, chegavam pipocas
gourmet vindas de uma fábrica italiana, onde são preparadas em ar quente, em
vez de fritas em óleo.
“Não tenho a certeza,
mas acho que somos os únicos, pelo menos em Lisboa, a vender este produto. Além
da variedade de sabores, o milho não é transgénico, não faz mal à saúde”,
explica Alexandre Pressler, 21 anos, funcionário da FOL Gourmet Popcorn. As
pipocas mais requisitadas são as de caramelo salgado e as “fol mix”, uma
mistura de chocolate branco com preto, mas há uma infinidade de sabores
(cappuccino, queijo, chili, morango, pistacho, pizza, mojito, vinho do Porto,
chocolate After Eight, entre outros).
Atentos às
transformações da freguesia, muitos outros empresários têm escolhido Alvalade
para abrirem espaços comerciais. “Vimos que era uma zona que estava a evoluir
bastante, existe muito comércio, mas também há muita gente. Temos uma loja na
Rua dos Fanqueiros e lá atendemos muitos turistas. Aqui, os clientes são todos
portugueses. Sentimos que Alvalade ainda pensa nas pessoas que cá vivem”, diz
Susana Silva, 27 anos, funcionária da Bagas e Sementes. Há dois anos no bairro
de Alvalade, a vendedora na loja de sementes e frutos secos vendidos a granel
não deixa, contudo, de tecer críticas aos valores das rendas. “Para termos uma
loja na Avenida da Igreja, chegaram a pedir-nos 10 mil euros, é um absurdo. Já
pedem mais do que na Baixa. Preferíamos ter a loja na Avenida da Igreja, mas
tivemos de vir para a Rua Luís Augusto Palmeirim, uma artéria transversal”,
conta.
Enquanto que uma parte do bairro rejuvenesce, na Avenida da
Igreja, o epicentro do comércio de Alvalade, as lojas mais antigas sobrevivem
ao aparecimento das grandes superfícies e de novos estabelecimentos,
reinventando-se. “Tive uma loja de roupa durante 18 anos e, quando percebi que
o negócio estava a fraquejar, comecei a pensar numa ideia e abri uma casa de
chocolates belgas”, conta Luís Marquês, 41 anos. O proprietário da loja
Leonidas, que celebrou dois anos no início do mês, acredita que o comércio nesta
parte da cidade está mais revitalizado por culpa dos novos moradores, mas
também pelas características peculiares da freguesia. “Aqui, como em Campo de
Ourique, ainda se pode parar em segunda fila. Há uma relação de familiaridade,
o que nos permite ter clientes habituais. Os novos restaurantes têm atraído
mais gente”, diz.
Outro sinal da
mudança é que, à noite, vê-se mais gente a passear. “Os novos restaurantes
trouxeram outro tipo de público, acabando também por modernizar Alvalade. É uma
zona que tem acompanhado o progresso, ao contrário de outras partes da cidade.
Desde uma loja de pipocas gourmet a um antigo amolador, aqui encontra-se de
tudo e o segredo para coabitarmos com as lojas modernas é reinventarmo-nos”,
diz Margarida Fernandes, 57 anos, proprietária de uma loja de roupa na Avenida
da Igreja há 30 anos.
Poucos metros à
frente do estabelecimento, a charcutaria Riviera, fundada em 1958, foi
totalmente remodelada. Aproveitando a onda de crescimento da zona, Fernando
Lourenço, 48 anos, transformou a casa, que nunca tinha sido alvo de obras em 60
anos, numa mercearia onde coabitam o tradicional e o moderno. “Há clientes que
já não vinham cá há dez anos e estão a aparecer, só para verem como está, e
ficam surpreendidos. As pessoas têm saudades do pão e dos queijos tradicionais,
da ‘fruta antiga’, sem aditivos químicos, e de produtos que se habituaram a
ter. Continuamos a dar isso, mas agora também temos refeições take away”,
conta. O gerente da nova Riviera diz que ainda é cedo para avaliar o futuro da
mercearia remodelada, mas dentro do espaço já se ouvem elogios. “Antes, a
charcutaria era muito escura, até tínhamos receio de entrar. Agora, está muito
mais luminosa e há mais variedade. Isto está tão diferente, tão moderno”, diz
Helga Bestler, 74 anos, moradora. Enquanto Helga escolhe a fruta, vêem-se
vários casais jovens a espreitarem.
Do outro lado da
avenida, a garrafeira e frutaria Morteira e Santos chegou ao bairro em 1963,
pela mão do pai de José Ferreira. Tal como outros espaços, já remodelou a casa,
não deixando de tratar os clientes pelo nome. “Não podemos morrer no tempo,
vamos fazendo uma adaptação entre o antigo e o novo para as pessoas não se
esquecerem do que o espaço era antigamente. Há pessoas que vêm cá porque os pais
vinham, há uma forte relação de proximidade ainda”, explica José Ferreira, 55
anos, não deixando, porém, de apontar críticas aos novos hábitos de consumo.
“Este tipo de ramo de actividade vai encerrando porque as pessoas fecham-se
cada vez mais em centros comerciais. Em Alvalade, já começa a haver mais
restaurantes a vender o mesmo produto, o que poderá não ser bom”, observa.
A drogaria Esteves, fundada em 1948, sobrevive graças aos
clientes antigos, mas a proprietária da loja, Laura Azevedo, 80 anos, também já
sentiu necessidade de readaptar-se para atrair um novo público. Recentemente,
fez limpezas, mudou o toldo, os azulejos e modificou as montras. “Têm fechado
muitas drogarias, porque também temos perdido muitos fornecedores, mas acho que
o segredo é não deixar de tentar cativar os clientes”, vai contando, enquanto
mostra as alterações realizadas na casa septuagenária. No espaço remodelado
vêem-se montras com a tradicional pasta dentífrica Couto e os sabonetes Ach
Brito. A forma como estão arrumados faz a diferença. “Há jovens a pedirem-nos a
pasta de dentes ou que têm, pelo menos, curiosidade em conhecer, e antes não
tinham. O bairro está a ganhar uma nova dinâmica e espero que continue a
crescer”, diz um dos rostos mais antigos do comércio de rua, em Alvalade.
A morfologia deste
bairro familiar, com ruas planas, e a conservação e limpeza do espaço público
também poderão estar na origem da elevada procura por Alvalade para a abertura
de novos negócios. Carla Pinheiro, 43 anos, vendedora há quinze anos numa loja
de lingerie na Avenida da Igreja, acredita que as pessoas “estão cansadas de
centros comerciais e da falta do atendimento personalizado”. “Muitas das nossas
clientes dizem que vêm por esse motivo, haver alguém que lhes tire todas as
dúvidas”, diz.
Do outro lado da rua, Susana Nicau, 43 anos, funcionária
numa loja de roupa vintage, partilha a mesma visão. “Temos lojas diferentes,
com artigos únicos e difíceis de encontrar, e muitos procuram-nos por esse
motivo. Na Avenida de Roma, aqui ao lado, as lojas estão mais dispersas, aqui
concentra-se tudo”, explica. Paula Portas, 45 anos, vendedora de meias, depois
de trabalhar dez anos na Rua Augusta, na Baixa, diz não ter saudades desta zona
de Lisboa. “É com pena que hoje lá volto. A Rua Augusta está muito suja e acho
que as pessoas continuam a preferir vir a Alvalade por isso”, comenta.
Teresa Amorim, 59
anos, moradora no Campo Grande, diz não trocar esta parte da cidade por outra
para fazer compras. “Antigamente, íamos à Baixa, até para encontrar um artigo
mais raro. Agora, vimos a Alvalade, tem tudo”, diz Teresa Amorim, 59 anos,
moradora no Campo Grande. Deslocou-se à loja de um dos últimos amoladores de
Lisboa, situada numa das ruas transversais à Avenida da Igreja, desde 1951,
para arranjar três guarda-chuvas. Do outro lado do balcão, José Garcia, 78
anos, compõe as varetas de um guarda-chuva com uma perícia difícil de ensinar.
Já não existem fornecedores de guarda-chuvas em Portugal e, por isso, quando
lhe falha algum material, magica formas de o fazer.
“Há negócios fechados
e outros remediados. É preciso ter imaginação”, explica. Há mais de 60 anos a
arranjar guarda-chuvas numa das lojas mais antigas do bairro de Alvalade, o
amolador assistiu a várias mudanças. “Com a pressão do turismo e o aumento das
rendas, muitas pessoas fugiram de alguns bairros do centro histórico para aqui,
porque ainda é calmo e seguro. Claro que o negócio já não é o que era, mas,
enquanto puder, vou continuar a trabalhar para não estar parado”, afirma.
O presidente da Junta
de Freguesia de Alvalade, José António Borges (PS), em depoimento escrito a O
Corvo, diz que Alvalade é “como uma aldeia” e “um bairro no sentido comunitário
da palavra”. E explica porque é tão procurado. “O comércio faz parte dessa
geografia sentimental dos alvaladenses, com as suas memórias e vivências sobre
os espaços. Esta é a razão emocional. Depois há uma outra, mais prática: o
território é harmonioso, equilibrado, bonito e limpo. Isto faz com que seja
apetecível e procurado por imensa gente. Quando o comércio prospera, os
negócios não precisam de fechar, mas apenas de actualizar-se”, diz.
O autarca considera
ainda que a freguesia tem estado em “franco crescimento”. “Em Dezembro do ano
passado, voltámos a subir a fronteira dos trinta mil eleitores, um pouco ao
contrário do que vai acontecendo no resto da cidade. Esta recuperação de
habitantes é feita sobretudo por casais jovens. O que dá sentido a esta mudança
é que, em muitos destes casais, pelo menos um dos membros tem uma grande
relação com Alvalade, por exemplo através dos pais ou dos avós”, explica.
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