A “vida privada” do toiro bravo antes dos “20 minutos de
fama”
“As pessoas que não gostam de toiradas, os antitoiradas,
dizem que maltratamos os animais porque desconhecem esta realidade da sua
criação. Não há em Portugal animal mais bem tratado que este. Enquanto um
animal de talho vive um, dois anos confinado num pequeno espaço, alimentado a
farinha até ir para o matadouro, este vive em liberdade toda a sua vida num
ecossistema puro, convivendo com outras espécies numa reserva ecológica que é
preservada para a sua criação”, diz João Santos.
Como são criados os toiros bravos até chegarem a uma praça
de touros? Que raça é esta e o que pensam os seus criadores? O PÚBLICO esteve
numa das maiores e mais prestigiadas ganadarias à procura de respostas.
Luciano Alvarez
LUCIANO ALVAREZ 24 de Novembro de 2018, 6:50
Chamam-lhe o “templo do toiro bravo”. Na Herdade da Galeana,
uma ganadaria portuguesa cria toiros de lide desde 1944. Ou seja, uma raça
única para ser toureada a pé ou a cavalo nas praças de Portugal, Espanha e
França. Mas do que falamos quando falamos de toiros bravos? De todo um mundo,
com um léxico muito próprio, de um apurado trabalho diário e algo que vai muito
além do momento em que o animal sobe à praça para os seus “20 minutos de fama”.
Para trás ficam quatro anos de trabalho a que chamam a “vida privada”, ou “vida
no campo” do animal, cujo desconhecimento, dizem os aficionados, são uma das
razões para os “animalistas” criticarem e quererem acabar com as touradas.
Os cerca de mil hectares da Ganadaria Murteira Grave, no
distrito de Évora, concelho de Mourão, pegam com terras da Estremadura
espanhola. Pelos pastos “pintados” de verde no imenso montado de azinho da
Galeana espalham-se cerca de 700 bovinos. A maioria são toiros bravos, ou
toiros de lide. Bestas impressionantes que podem chegar a pesar mais de 550
quilos.
João Santos, um engenheiro zootécnico de 45 anos, que há 13
trabalha com estes animais na ganadaria alentejana, guia os jornalistas pelo
meio dos toiros. Literalmente pelo meio deles, conduzindo uma carrinha de
trabalho agrícola que serpenteia entre os animais. João fala com entusiasmo dos
toiros, do trabalho na herdade, como tudo é feito ainda antes dos animais
nascerem até aos quatro anos em que estão prontos para serem lidados em praça.
Explica os significados dos movimentos dos toiros, quem são
os líderes, a diferença entre eles, ao mesmo tempo que acalma os visitantes,
algo nervosos pela proximidade àquelas selvagens bestas. “São impressionantes,
não são? Mas não receiem, eles estão habituados a ver a carrinha entre eles,
pois é esta carrinha que, quando é necessário, lhes vem dar de comer ou os vem
tratar. Não que não tenha já havido alguns azares, mas não vai acontecer”,
garante.
Todos bravos, todos diferentes
Primeiro mostra o cercado onde está o lote de vacas que
pariram em Agosto, ainda na companhia das suas crias e dos semental (machos
reprodutores). Na ganadaria existem cerca de 200 vacas mãe, que por ano parem
cerca de 160 animais, habitualmente metade fêmeas e outra metade machos. Os
machos na herdade rondam os 170. Os restantes bovinos existentes estão todos
ligados às outras actividades de criação. Dos animais nascidos no ano, cerca de
40 a 50 terão como destino a lide em praça. Os outros ficaram ao serviço da
ganadaria ou são abatidos e a sua carne vendida.
A segunda paragem é junto aos machos de um ano, que deverão
ser lidados em 2022 e, por fim, chega-se aos touros que irão para as praças no
próximo ano taurino, que vai de Fevereiro a Outubro de 2019. Também estes
espalhados por espaços diferentes, porque, sendo todos toiros bravos, têm
características diferentes, quer pela sua bravia, quer pela chamada “cara do
touro”, ou seja a grossura, o comprimento e orientação dos cornos. Um touro com
os cornos ligeiramente levantados (tocado) ou com os cornos dirigidos para cima
(veleto) tem mais “valor” que um animal com os cornos direccionados para o solo
(caído ou capacho).
É a apreciação destas características que vai decidir se o
toiro vai para uma praça de primeira (as melhores como o Campo Pequeno, em
Lisboa, ou em Espanha), de segunda, terceira ou para festas taurinas populares
mais pequenas.
“As pessoas que não gostam de toiradas, os antitoiradas,
dizem que maltratamos os animais porque desconhecem esta realidade da sua
criação. Não há em Portugal animal mais bem tratado que este. Enquanto um
animal de talho vive um, dois anos confinado num pequeno espaço, alimentado a
farinha até ir para o matadouro, este vive em liberdade toda a sua vida num
ecossistema puro, convivendo com outras espécies numa reserva ecológica que é
preservada para a sua criação”, diz João Santos.
Mas o processo de criação de toiros bravos começa ainda
antes de o animal nascer, numa das mais importantes faenas camperas (tarefas
executadas nas ganadarias) realizadas, a Tenta. Uma operação em que as fêmeas
com cerca de 2 anos de idade são testadas e lidadas de muleta por um matador de
touros ou novilheiro, em que são avaliados os seus movimentos e bravura. Desta
forma, o ganadeiro procurará identificar se as reses possuem as características
comportamentais que procura para a sua ganadaria. As vacas aprovadas mantêm-se
na ganadaria, onde viverão o resto da sua vida (cerca de 20 anos). Depois é
escolhido o semental e daí nascerá o futuro touro.
E se um dia acabarem as touradas, o que acontecerá a estes
animais que são criados exclusivamente para serem lidados? “Esse dia nunca vai chegar,
mas se acontecer a raça acaba porque só serve para ser lidado. Passaria a ser
um animal de jardim zoológico”, afirma João Santos.
A “paixão” de Grave, o ganadeiro
Joaquim Sá Grave é, desde 2002, ganadeiro e proprietário da
Geleana continuando um trabalho que começou pelo seu avô, cresceu com o seu pai
e que é hoje uma das mais prestigiadas ganadarias ibéricas. “Uma paixão”,
assegura este veterinário especialista em criação animal. Fala da herdade e dos
toiros bravos, das suas tradições ancestrais, da sua criação com uma visível
alegria e abastado conhecimento.
Fala também de forma aberta sobre o negócio da criação de
touros, embora diga que é feito “mais com o coração e por tradição, que com a
razão”, explicando que uma herdade como a sua poderia ser muito mais rentável
se tivesse outro tipo de exploração. Criar um animal como este custa, explica
Grave, cerca de 2500 euros. Já a sua venda para praça - ou melhor “o aluguer da
bravura ao empresário que organiza o espectáculo” - vale em média 2000 euros e
mais 500 pela carne para consumo depois de abatido. Embora este valor possa
subir bastante se for vendido para França ou uma grande praça espanhola. O
prestígio da ganadaria também contribui para o preço. “Portugal é onde se paga
menos. Isto é mais uma questão de coração”, repete João Grave, sorrindo e
levando a mão ao peito junto ao coração.
Até que a conversa chega à polémica entre os defensores das
touradas e os que são contra e querem o seu fim, que para grave “são uns
ignorantes que se calhar nunca viram um toiro bravo, nem sabem o que é”. Confrontado
com as críticas de que os amantes das toiradas são “uns bárbaros” que “têm
prazer sádico em torturar os animais”, o ganadeiro de 66 anos tem a resposta
pronta sem nunca perder a serenidade: “Quando nos chamam torturadores estão a
ofender todas as pessoas que foram e são torturadas pelo mundo. Não há animais
mais bem tratados que estes e são criados especialmente para serem lidados.”
“Os sábios do asfalto”
Quanto ao sofrimento do animal em praça, Grave avança com um
argumento que diz “estar profundamente fundamentado em vários estudos
científicos sobre o toiro bravo” que é repetido vezes sem conta pelos
defensores das touradas. O de que o animal tem um hipotálamo (parte do cérebro
que sintetiza as neuro-hormonas encarregues, nomeadamente, da regulação das
funções de stress ou de defesa), “20% superior ao de todos os outros bovinos, e
que, por isso, tem uma capacidade superior de segregação de beta-endorfinas”,
uma hormona e anestesiante natural encarregada de bloquear os receptores da
dor. “Um animal quando é agredido, nomeadamente quando é espetado, foge. O
toiro bravo não, volta a investir. A essência única deste animal é lutar, é um
animal de combate”.
“Os sábios do asfalto falam lá do seu sétimo andar da cidade
onde vive enjaulado o seu cão sem saber do que falam. Já perguntaram ao seu
cãozinho se quer ir à rua fazer as necessidades à hora que o dono pode e não
quando necessita, amarrado por uma trela, se gosta? Já perguntaram ao seu
cãozinho se gosta de ser capado por egoísmo do dono? Não é isto torturar os
animais? Os meus cães vivem ar livre e têm todo o nosso afecto. E não são
capados”, afirma.
Quanto ao envolvimento político na polémica, critica as palavras
da ministra da Cultura, Graça Fonseca, que, “na primeira vez em que pegou no
microfone, manifestou vontade de acabar com uma actividade cultural que está
profundamente enraizada na sociedade portuguesa”. E ironiza: “Por outro lado,
até foi bom para as touradas [a ministra] ter dito o que disse, porque os
defensores das touradas voltaram a ter voz, porque só falavam os que eram
contra. Por outro lado, fez com que saíssem do armário uma série de aficionados
que andavam calados há muito tempo.”
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“Venceu a liberdade”
Questionado sobre se as touradas algum dia vão acabar em
Portugal, independentemente de ser por decreto ou por “morte natural” ao longo
do tempo, responde de pronto: “Nunca. As touradas estão na história e nas
raízes dos portugueses. Estão no seu coração e cada vez há mais pessoas, muitos
jovens, a gostarem deles.”
Números
10 milhões
Valor conseguido nas bilheteiras com as touradas no ano
passado.
70
Número de praças fixas existentes em Portugal.
1205
Número de espectáculos taurinos (205) em praças e eventos de
tauromaquia popular de rua (1000) realizados em 2017.
Fonte: Protoiro
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