LANDLORDS WITHOUT FACES, APARTMENTS WITHOUT TENANTS
Housing prices are skyrocketing in cities worldwide. Incomes
are not. The working and middle classes are getting pushed out of cities, while
financial powerhouses use housing as a place to park money.
PUSH is a new documentary from award-winning director
Fredrik Gertten, investigating why we can’t afford to live in our own cities
anymore. We follow UN Special Rapporteur on Housing, Leilani Farha, on her
quest to understand who’s getting squeezed, who’s getting rich and why housing
has become one of today’s most pressing world issues?
Um documentário para falar da crise da habitação: a história
de um “crime em curso”
Em que momento e por que razão as nossas casas se tornaram
"produtos financeiros"? Num documentário-investigação, Fredrik
Gertten mergulha num problema global que vai para lá da gentrificação. E muito
para lá do capitalismo. Push estreia-se no próximo ano.
MARIANA CORREIA PINTO 31 de Outubro de 2018, 9:05
A conversa repetiu-se vezes sem conta. Em diferentes
geografias, com distintos interlocutores. Ricos, classe média, pobres. Todos
falavam a Fredrik Gertten da tristeza sentida por serem expulsos do local onde
queriam viver. De cidades onde o mais importante já não eram as pessoas. De casas
a preços incomportáveis. O realizador sueco, entusiasta de temas relacionados
com cidades e qualidade de vida, começou a questionar-se: afinal, o que tinha
tornado as nossas habitações tão caras? A gentrificação parecia-lhe parte
ínfima da explicação: o problema, decreta em conversa telefónica com o P3, é
“mais profundo do que isso”. As casas como produtos financeiros, locais de
depósito de dinheiro, campos de um jogo financeiro sem espaço para a
humanização. Em Push — o seu documentário-investigação com estreia prometida
para o próximo ano e uma campanha de crowdfunding aberta até 28 de Novembro —,
promete levantar o pano deste “crime em curso”. E deixar um estímulo à acção:
“Este é um problema de todos.”
A dada altura, a sensação foi de um déjà-vu do seu último
documentário, Bicicletas vs Carros. Se o trânsito — fenómeno que nos “rouba
tempo” e deixa “toda a gente infeliz” — passou a ser encarado como “natural”,
também a habitação (ou a falta dela) ganhou o mesmo estatuto. Mas este “é um
problema criado por nós”, recorda Fredrik Gertten para logo colocar a voz em
tom de apelo: “Temos de parar de falar disto como se fosse uma coisa natural.”
A falta de habitação em estado condigno e preço aceitável
atingiu um “nível de loucura”. E essa conjuntura “está a deixar toda a gente
doente”. Não é exagero, garante Gertten. “Obviamente há gente a ganhar com este
modelo”, consente, mas se pensarmos bem, em algum momento a engrenagem atingirá
também os privilegiados. “Mesmo que tenhas sorte, os teus amigos podem não ter.
A loja da esquina, onde vais, pode não ter. O teu bar preferido pode não ter.”
E se isto não chegar a alguns, o realizador recorda princípios básicos de
convivência em sociedade: “Mesmo que
estejas feliz, outros não estarão.”
Com Leilani Farha, relatora da Organização das Nações Unidas
sobre a habitação, como guia e fio condutor, Push recusa narrativas construídas
e tantas vezes reiteradas. Se ano após ano pagamos mais pelas nossas casas (e
as nossas casas são cada vez mais pequenas), a culpa não é apenas da inflação,
da gentrificação, da urbanização. E o documentário promete prová-lo.
A teia tem “muito tempo”. Mas a crise financeira de 2008, e
a cratera aberta pela falência do Lehman Brothers, é um “momento histórico”.
Milhões de pessoas, um pouco por todo, perderam as suas casas. E o fosso
cresceu: “É um sentimento estranho: nós temos cada vez menos dinheiro e as
pessoas com posses têm mais dinheiro do que nunca”, opina. Fredrik Gertten acredita
que foi nesse momento que o paradigma mudou: “Precisavam de locais para pôr o
dinheiro e, na ausência deles, investiram em casas”.
Poderia não passar do “modelo clássico do capitalismo:
comprar algo barato e vender caro”. O que mudou, diagnostica, foi fazer das
casas um abrigo desse “excesso de capital global”. Dessa forma, algo inédito
aconteceu: “Significa que alguém em Lisboa, no Porto, em Estocolmo ou Vancouver
pode ter o dono da sua casa em São Francisco ou na Coreia. Não sabemos. Os
donos das casas são neste momento produtos financeiros. É um modelo muito
complicado.” Por outras palavras: o imobiliário passou a ser tratado como um
produto financeiro que é transacionado [securities] e pode ir parar às mãos de
fundos com milhares de investidores, em busca de um lucro fácil.
“Os donos das casas são neste momento produtos financeiros.
É um modelo muito complicado.”
Fredrik Gertten
Em Harlem, Nova Iorque, a equipa de Fredrik encontrou um
homem que gasta 90% do salário no seu apartamento: um T2, comprado por um fundo
privado de investimento, custará, em breve, 3600 dólares. Em Barcelona,
conheceu a família Ahmed que, tal como Ana Barbosa no Porto, resiste num prédio
onde todos os vizinhos já abdicaram de viver. Em Londres, ouviu chamar “caixas
bancárias no céu” aos muitos apartamentos vendidos como produtos financeiros e
agora vazios.
A “desregulação”, com raízes “nos anos 80”, fez agora
florescer “senhorios sem rosto”, nada preocupados com quem habita as suas
casas. “Eles só compraram um produto financeiro”, aponta Fredrik: “A distância
entre as pessoas que vivem na casa e os donos nunca foi tão grande na história
da humanidade.”
A resposta ao “esquecimento” da habitação como direito
humano parece estar agora a arquitectar-se. O realizador sueco não visitou
Portugal durante o seu documentário, mas Leilani Farha sim. “Falou-me, por
exemplo, da situação dos vistos Gold. O investimento que apenas compra casa não
é produtivo para um país. Não cria empregos. Essa política só está a criar
problemas no mundo.” Em 2016, depois de visitas a Lisboa, Porto e arredores das
duas cidades, a relatora da ONU e advogada de direitos humanos descreveu situações
“deploráveis”. Recomendações? Construir habitação social, combinando-a com o
mercado privado nos casos onde seja necessário. Implementar regulamentação para
travar os despejos e efeitos da turistificação.
“A resposta é política”, assevera Fredrik Gertten, como
político é o seu trabalho como realizador. Por isso, quis entrevistar quem
pudesse ir ao fundo da questão: além de Leilani Farha, falou com o prémio Nobel
da Economia Joseph Stiglitz, com a socióloga Saskia Sassen, estudiosa dos
impactos da globalização nos anos 40, com o jornalista italiano Roberto
Saviano, que trouxe à narrativa a problemática do “dinheiro criminoso” aplicado
na habitação. Em fase avançada de edição, Gertten continua a reunir relatos de
moradores apanhados nesta teia. Quer contribuir para o “conhecimento” sobre o
tema, que lhe parece ainda escasso. E já anseia os potenciais efeitos do seu
documentário-investigação: “Continua a falar-se de gentrificação, mas talvez
seja mais do que isso. A gentrificação é quase um desenvolvimento natural. Isto
não é natural.” Era bom que falássemos sobre o assunto.
tp.ocilbup@otniP.anairaM
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