Grupo de moradores de Alfama não quer “muralha de
apartamentos de luxo” a tapar luz e vista do Tejo
Sofia Cristino
Texto
7 Novembro, 2018
O edifício onde o Hospital da Marinha funcionou durante mais
de 200 anos, na Rua do Paraíso, e o imóvel contíguo serão reabilitados para,
juntamente com três imóveis a construir, darem origem a 100 apartamentos de
luxo. Os habitantes da zona temem que os novos edifícios lhes retirem a vista
para o rio Tejo e a luz solar, e ainda que o bairro fique descaracterizado. Por
isso, lançaram uma petição contra o avanço da obra. “Querem construir
‘monstros’ arquitectónicos em Alfama. Estamos numa zona histórica, não estamos
numa avenida nova de Lisboa”, critica uma moradora. Os habitantes dizem que a
construção viola o Plano Director Municipal (PDM), mas a empresa imobiliária
responsável pelo projecto garante cumprir todas as regras e que os elementos
históricos do imóvel serão salvaguardados. A imobiliária terá 186 apartamentos
de luxo nesta zona, estando já 26 concluídos. Já há duas petições a circular
contra a empreitada. Mas no bairro também há quem elogie o empreendimento,
sobretudo pela reabilitação dos antigos imóveis, criticando o estado de
abandono em que estavam.
“Só tenho uma janela
em casa, onde o sol bate logo de manhã, e com o novo condomínio vou perder a
claridade toda. Não queremos ter uma muralha à nossa frente”, critica Amélia
Alves, 64 anos, enquanto estende a roupa à janela do rés-do-chão onde vive há
40 anos, na Rua do Paraíso, em Alfama. A moradora refere-se à construção de cem
apartamentos de luxo nos terrenos do extinto Hospital da Marinha, entre a
Estação de Santa Apolónia – edifício que também será parcialmente convertido em
hotel – e o Campo de Santa Clara. O projecto prevê a reabilitação de um antigo
imóvel – onde o hospital militar esteve sediado durante mais de 200 anos – e de
uma extinta escola primária, e a edificação de três blocos de prédios.
“Querem construir ‘monstros’ arquitectónicos em Alfama, o
que se está a passar no nosso bairro é escandaloso. Estamos numa zona
histórica, não estamos numa avenida nova de Lisboa”, critica Catherine
Morisseau, a viver há sete anos no bairro típico. A habitante francesa esteve
na sessão da Assembleia Municipal de Lisboa (AML), no passado dia 30 de
Outubro, para apresentar uma petição contra o avanço da obra. A subscrição
reuniu cerca de duas centenas de assinaturas numa manhã e, no dia seguinte à
intervenção na AML, foi criada uma outra petição online, que conta agora com
457 assinaturas.
Os moradores dizem que a construção dos prédios viola o
Plano Director Municipal (PDM), ao descaracterizar os bairros de Alfama e da
Graça, ao não preservar a integridade da Rua do Paraíso – que dá acesso à Feira
da Ladra e é frequentada por milhares de pessoas – e ao transgredir o sistema
de vistas dos espaços públicos envolventes. Devido à volumetria dos novos
imóveis, os moradores temem perder a exposição solar e as vistas para o rio
Tejo. Ao contrário do que está exposto na memória descritiva do projecto, lê-se
na petição, “a vista desde o Panteão Nacional seria largamente afectada, assim
como a vista desde a zona ribeirinha”. “Um dos prédios vai ficar em cima da Rua
do Paraíso, desfigurando-a, e os outros dois ficam um pouco mais à frente. É
uma espécie de muro que vai tapar tudo, tem um impacto visual enorme”, critica
Catherine.
Outro morador, que
não quis ser identificado, também está desiludido. “Não têm o direito de
modificar o bairro desta forma, escolhemos viver aqui e pagar mais pelas casas
para vermos o rio. Se avançarem com a obra, vou viver para outra parte da
cidade, não vou ficar todo o dia de luz acesa em casa”, critica o residente, 61
anos, ali há quatro anos. O número de habitações previstas implicará ainda um
aumento do tráfego, tornando aquela zona, onde a circulação de automóvel já é
condicionada, “ainda mais caótica”, dizem. Há quem elogie, porém, a
reabilitação dos antigos imóveis. “O que não faz sentido é o estado de abandono
em que os edifícios estavam. Quando o hospital fechou, perdemos muitos
clientes, acredito que, com os novos prédios, vamos receber mais pessoas”, diz
Filipa Gonçalves, 35 anos, proprietária do restaurante Parreirinha do Paraíso,
que se recusou a assinar a petição.
Na memória descritiva do projecto lê-se que “o edifício não
é um edifício qualquer, no contexto da cidade de Lisboa, e distingue-o antes de
mais a sua significativa dimensão e volumetria, e a forma como se impõe na
colina que ocupa e domina de forma clara”. Apesar de se registar “um aumento de
altura de edificação de 13,79 para 14,24 metros” e “um aumento de altura da
fachada de 10,66 para 11,11 metros”, “a intervenção proposta enquadra-se no
previsto em PDM para os Espaços Centrais e Residenciais na medida em que
privilegia a predominância do uso habitacional”, escreve-se ainda.
No site da Stone Capital, imobiliária responsável pela obra,
é possível observar algumas fotografias aéreas do projecto de Santa Clara, mas
não se consegue perceber a sua real dimensão. “As imagens disponíveis são
enganadoras, os prédios vistos de longe não parecem tão altos”, diz Catherine.
O mais “escandaloso”, considera a representante dos moradores, é o projecto não
ter sido discutido e ter sido aprovado sem discussão pública, o que já tinha
acontecido relativamente ao plano de remodelação do palácio de Santa Helena.
“Um projecto desta envergadura deveria ser discutido na Assembleia Municipal,
ainda nem tivemos acesso a uma maquete”, critica. Na fachada do edifício da
antiga escola primária, pode ler-se que o pedido de licenciamento para
ampliação deu entrada na Câmara Municipal de Lisboa (CML) a 6 de Novembro de
2017, encontrando-se o projecto em fase de apreciação e a operação urbanística
à espera de licença.
Catherine Morisseau tem acompanhado os desenvolvimentos das
escavações, a fase inicial dos trabalhos, desde o Verão. Ficou surpreendida
quando começou a ver as primeiras movimentações e foi falar com os arqueólogos.
“Queria perceber o que estavam a fazer e disseram-me que ia ser construída uma
entrada de um parque de estacionamento. Nunca me passou pela cabeça o que ia
acontecer realmente. Soube da verdadeira construção através de rumores”,
recorda. Da segunda vez que abordou estes profissionais, ter-lhe-ão dito que a
construção prevista afinal seria um prédio, mas não ultrapassaria o muro que
faz a separação com a Rua do Paraíso. Quando o projecto ficou disponível no
site da Stone Capital, percebeu “a verdadeira dimensão” do mesmo. “Tenho um
grande amor por Lisboa e pelos habitantes e ver um crime arquitectónico diante
dos meus olhos dói. É um genocídio
humano e cultural o que está a acontecer à cidade”, conclui.
O antigo hospital, inactivo desde 2012, foi comprado pela
Stone Capital, por 18 milhões de euros, em 2016, para ser reabilitado e
ampliado. A empresa imobiliária compraria, depois, o edifício contíguo, uma
antiga escola primária, onde estava a funcionar a Escola Profissional Almeida
Reis há 20 anos, e onde ainda viviam pelo menos duas pessoas – entretanto
indemnizadas para saírem. O grupo imobiliário tem outros projectos em
desenvolvimento nesta parte da cidade, tais como a transformação do palácio de
Santa Helena em 20 apartamentos de luxo e a construção de um outro condomínio
fechado, no bairro da Graça, com 46 apartamentos de luxo, piscina, spa, um
jardim e uma zona de convívio.
Ainda na freguesia de São Vicente, a Stone Capital já
concluiu a construção de nove apartamentos, na Calçada de São Vicente, e a
remodelação de dois edifícios na Rua Guilherme Braga, um deles transformado em
nove apartamentos para arrendamento turístico e um outro em oito apartamentos
de luxo. Numa altura em que a Câmara de Lisboa (CML) está a preparar
regulamentação para definir áreas de contenção ao Alojamento Local (AL), em
cinco bairros históricos de Lisboa, de forma a atingir “um equilíbrio” entre a
qualidade de vida dos moradores e o crescimento do turismo, os habitantes de
Alfama dizem não entender como estas obras são aprovadas pela autarquia.
“A Câmara de Lisboa tem a obrigação de proteger as pessoas
destes abusos e respeitar os pressupostos que definiu – a integridade e a
beleza da cidade -, sobretudo numa zona histórica e emblemática”, critica
Catherine. Mas há quem seja mais severo nas acusações. “No mapa das zonas de
contenção de alojamento local, em Alfama, a proibição da criação de AL termina
precisamente no meio da Rua do Paraíso, é estranho”, especula uma moradora, que
não quis dar o nome.
No passado dia 10 de Outubro, de acordo com o site Dinheiro
Vivo, uma outra empresa, a Sonae Capital, ganhou o concurso para exploração de
um hotel na estação de Santa Apolónia por um período de 35 anos. Está prevista
a instalação de uma unidade hoteleira de quatro ou mais estrelas, com um mínimo
de 120 quartos, em parte do edifício da estação de caminho-de-ferro, e o
projecto poderá avançar já em 2019. Os planos imobiliários de luxo para Alfama
e o bairro da Graça têm sido criticados por descaracterizarem estas zonas
históricas, mas também por não servirem os interesses da população. Uma das
críticas mais ouvidas é o “impacto visual” causado por estas construções, mas a
CML tem garantido, sempre, que o PDM não é transgredido, nem que a integridade
dos bairros históricos está em causa.
Numa entrevista ao Expresso, no passado dia 3 de Novembro, o
presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, diz que as “suspensões
temporárias de registos nestes cinco bairros não irão afectar as obras que
estão actualmente em curso para fins de reabilitação”. “Não colide com as
licenças de obra, que segundo a lei são feitas ao abrigo de construção de
habitação. Não se poderá é inscrever as casas como alojamento local”, afirma.
Por outro lado, “mesmo nas zonas de contenção podem ser atribuídos novos registos
de alojamento local, como por exemplo em casos que envolvem a recuperação de
prédios”, sublinha.
Contactada por O Corvo, a Stone Capital diz que “as
servidões de vistas regulamentares invocáveis serão respeitadas”. “Trata-se de
um projecto de reabilitação de um edifício existente, em que a altura total foi
mantida e, nalguns pontos, reduzida com a eliminação de elementos espúrios. O
projecto encontra-se aprovado em conformidade com o PDM e restantes normas
legais e regulamentares aplicáveis”, garante. A imobiliária assegura ainda que
as fachadas e os elementos históricos do imóvel serão salvaguardados. Quanto
aos valores dos apartamentos, a Stone Capital diz que estes ainda não estão definidos,
e que serão decididos em função da tipologia, que poderá variar entre os T1 e
os T6, e das áreas. O antigo Hospital da Marinha passa a chamar-se Palácio de
Santa Clara e será transformado num complexo de hotelaria, comércio e
habitação.
Sem comentários:
Enviar um comentário