“Fini, c’est fini, ça va finir...
Já não há dúvidas de que estamos a assistir à sexta extinção
em massa. Mas desta não restará um cineasta ao serviço de Hollywood para nos
apresentar belas imagens virtuais das espécies extintas.
António Guerreiro
2 de Novembro de 2018, 10:22
...Ça va peut-être finir”, diz Clov, uma personagem de Fin
de partie, uma peça de Beckett. O tempo dos fins está aí, diante de nós, a
assombrar-nos, e já não apenas num plano existencial e metafísico: a frase que
anuncia a forma contemporânea do desastre já não é “o deserto cresce”
(expressão de um pessimismo cultural) mas “a extinção aproxima-se” (aviso de
uma catástrofe ecológica).
Cavaco Silva é um homem modesto: foi político, longamente,
mas sempre declinou esse estatuto; e agora diz que se apresenta num exercício
de prestação de contas aos portugueses, aceitando rebaixar o alcance do seu
livro, que é na verdade uma comparência perante o tribunal da História. Os
homens até podem ser injustos e cruéis para os seus servidores políticos do
mais alto nível. Mas a História, essa, nunca tem dúvidas e raramente se engana,
pelo que ditará sempre uma sentença justa a quem comparece perante ela para
prestar contas. Ao comparecer, Cavaco Silva mantém toda a coerência: ele, que
nunca quis ser político porque a política é impura, que acedeu à pura realidade
expurgada de toda a ideologia, vem mostrar que a política desapareceu e a nova
soberania é de ordem económico-jurídica. Se pensávamos que ele era a encarnação
do homo economicus, esse retrato, muito imperfeito, precisa agora de ser
corrigido após esta comparência espectacular perante o tribunal da História:
Cavaco Silva foi a superação da política pelo económico, na sua fase mundana, e
agora, na sua fase extra-mundana, é a superação do político pelo jurídico.
Um relatório da ONG World Wide Fund for Nature, divulgado
esta semana, sobre o estado da biodiversidade do planeta, diz que entre 1970 e
2014 as populações de vertebrados selvagens (peixes, pássaros, mamíferos,
anfíbios e répteis) diminuíram 60% a nível mundial. Não é uma novidade: em
Julho do ano passado, um outro estudo feito por investigadores americanos,
publicado nos Proceedings of the Natural Academy of Sciences of the United
States of America, amplamente divulgado nos principais jornais de todo o mundo,
tinha chegado a conclusões idênticas: a de que está em curso uma
“desfaunização” de consequências catastróficas para os eco-sistemas.
Eis alguns números desse estudo: as populações de 32% das
espécies de vertebrados estão em acelerado declínio, 40% das espécies de
mamíferos viram as áreas pelas quais se repartem diminuir 80% entre 1900 e
2015; 43% dos leões desapareceram desde 1993, já só restam cerca de 35000. Esta
aniquilação biológica diz respeito não apenas às espécies, mas também às
populações de cada espécie.
Já não há dúvidas de que estamos a assistir à sexta extinção
em massa. Mas desta não restará um cineasta ao serviço de Hollywood para nos
apresentar belas imagens virtuais das espécies extintas – como aconteceu aos
dinossauros, por acção de um asteróide, há 66 milhões de anos – porque já não
haverá um único homem e terá sido consumado o mundo feito e refeito à sua
imagem.
Claude Lévi-Strauss bem escreveu no seu Tristes Tropiques
que “o mundo começou com o homem e irá acabar sem ele”, mas a sua hipótese não
tinha prazo para se realizar. Agora que já temos prazos e eles são curtos,
agora que as eras geológicas correm à velocidade das gerações, tudo se alterou
nas nossas representações de uma extinção sistémica por acção do homem.
O desafio que nos é lançado é este: não podemos deixar de
pensar nisto, é absolutamente prioritário colocar estas questões ecológicas no
centro das nossas acções e preocupações, mas isso transporta-nos para um outro
plano em que Trumps, Bolsonaros & Co. são coisas pouco importantes, meras
borbulhas num corpo canceroso. Por isso é que o pensamento ecológico tem um
fundo mítico e reaccionário: porque nos transporta para fora das contingências
históricas, porque reclama a urgência de interromper a dialéctica e o
progresso, porque supõe um horizonte que não é o do tempo da política e
introduz uma lógica que não é antropocêntrica nem humanista.
O bom ecologista é uma espécie de “último homem”
nietzschiano, colocado perante o paradoxo de, em última instância, desejar um
mundo sem nós, na medida em que salvar o planeta, a sua fauna e a sua flora,
significa salvá-lo da humanidade. Em boa verdade, ser ecologista porque se quer
defender a espécie humana da sua extinção é um contra-senso.
Ocorrem-me estas questões enquanto atravesso de carro o
Alentejo e noto que o olival intensivo que cobriu grandes extensões da planície
e extinguiu qualquer outra vida se prolonga agora em amendoeiras a perder de
vista, que daqui a pouco tempo cobrirão a terra, intensivamente, como arbustos
enfileirados em parada para a campanha da produção. Queixaram-se da
monocultura? Aqui têm a bicultura. E numa estação de rádio o ministro da
Agricultura anuncia: vamos aumentar a área de regadio no Alentejo não sei
quantos milhares de hectares. É o anúncio de que o Alentejo vai ficar verdinho.
Hoje há vinho maduro e azeitonas, mas amanhã até vamos produzir vinho verde e
havemos de ter uma zona de floresta nórdica. Viva Lysenko e o lysenkoismo!
A grande orgia global
Os líderes do mundo têm vindo a adiar as decisões urgentes e
o relógio do Apocalipse continua o seu percurso determinante.
ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO
9 de Agosto de 2018, 6:30
O dia 1 de Julho de 2018 foi uma data histórica para o
Planeta Terra. Neste dia contaram-se 200.000 aviões simultaneamente no ar. Um
número culminante, nunca antes alcançado. O dia 6 de Agosto de 2018 foi a data
da publicação de um artigo na revista científica PNAS, da autoria de, entre
outros, Johan Rockström, director executivo do Centro de Resiliência de
Estocolmo.
Este artigo avisa-nos de que a simples ideia propagada pelo
Acordo de Paris (2015) de que estabilizar a temperatura nos dois graus acima do
período pré-industrial será suficiente para estabilizar o efeito de estufa é
irrealista e insuficiente. A situação é mais complexa, pois trata-se de uma
teia de processos e de um encadeamento de fenómenos que mutuamente se
influenciam, e que a partir de um certo limite podem transformar-se num efeito
de dominó activo, acelerador e imparável, tornando o Planeta inabitável.
Eles são conhecidos: o degelo do Pólo Norte com o perigo do
descongelamento da permafrost e a libertação do metano. A alteração da corrente
do Golfo, que já está neste momento ao nível mais baixo dos últimos 1600 anos.
O degelo na Gronelândia, etc..
A data limite para descarbonizar situa-se entre 2040-2050. A
partir daí as reacções conjuntas e irreversíveis podem iniciar-se, num cenário
capaz de ultrapassar qualquer fantasia catastrófica.
Os líderes do mundo têm vindo a adiar as mega-urgentes
decisões e o relógio do Apocalipse continua o seu percurso determinante.
Neste momento em que escrevo, encontro-me em Amesterdão e a
temperatura é de 34 graus. Não chove desde Maio, e as conhecidas paisagens
verdes foram transformadas num amarelo expectável no Verão alentejano mas
simplesmente alarmantes na Holanda. O mesmo se verifica em toda a Europa do
Norte, tendo a Suécia sido confrontada com incêndios florestais.
Simultaneamente, as cidades europeias conheceram o conhecido
e sempre crescente fluxo imparável de turismo, sustentado pelo “low cost” que
permite e possibilita deslocações em massa, intuitivas, inconscientes e
predadoras, que já transformaram as cidades europeias, antigos locais
representantes de identidade cultural, em “sítios” a serem consumidos e devorados
em banquetes de hedonismo e orgias globalizadoras.
A redução de uma cidade a uma plataforma monofuncional
reduzindo e sacrificando tudo a uma só actividade, leia-se turismo, apresenta
sintomas destruidores para o ecossistema urbano, que estão na mesma linha,
embora em escalas diferentes, dos sintomas planetários.
Qual é a pegada e o preço ambiental deste modelo de
“desenvolvimento”? Qual é a pegada e o preço ambiental do “low cost flying”?
O país foi dominado pelo caso Robles e pela queda dos seus
pedestais das “santas” Catarina e Joana, o que levou a tsunamis de opinião e de
indignação. No entanto, com Robles & Companhia ou não, com aproveitamento
político ou não destes fenómenos, os verdadeiros problemas ligados à
especulação imobiliária, ao aumento apocalíptico do preço da habitação, à
catastrófica dependência e vassalagem do Alojamento Local “à rédea solta” e ao
flagelo dos despejos, mantêm-se na sua crescente omnipresença e omnipotência
erosiva e destruidora.
E a “festa” continua imparável, no seu carácter de “festa
titânica”, contribuindo na sua mobilidade incontrolada para mais C02. Em última
análise, em absoluto desespero, nem nos precisamos de preocupar.
Este modelo de viagens ilimitadas, e de mobilidade predadora
e consumidora da autenticidade cultural e da identidade local, é ambientalmente
completamente insustentável e incomportável e na sua inconsciência criminosa. O
momento de paragem desta grande orgia global aproxima-se inevitavelmente,
momento dramático para Portugal, que irá acordar do seu torpor e ser obrigado a
reconhecer a sua dependência e os limites da aposta exclusiva num modelo
auto-destruidor e alienante.
Historiador de Arquitectura
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