FRANCISCO SEIXAS DA COSTA
O Parlamento Europeu tem "cada vez mais antieuropeus na
bancada"
“Há uma falta de pedagogia dos governos face às vantagens da
Europa”, diz o diplomata que se confessa também “muito céptico” sobre a
aplicação do Tratado de Lisboa aos casos da Polónia e Hungria: as penalizações
contra a violação dos valores europeus foram pensadas para outros tempos e “são
dificilmente adaptáveis”.
Nuno Ribeiro
NUNO RIBEIRO 6 de Novembro de 2018, 6:28
"As novas gerações não têm ideia do que era Portugal
antes de estarmos na União Europeia", afirma Francisco Seixas da Costa
Francisco Seixas da Costa, o diplomata que fez boa parte da
carreira em organizações internacionais multilaterais, foi secretário de Estado
dos Assuntos Europeus entre 1995 e 2001. Nesse período, representou Portugal
nas negociações dos tratados de Amesterdão e Nice. Foi já como observador que
assistiu ao desfecho do Tratado de Lisboa, com o qual, diz, "a Europa
iludiu-se a si própria".
Esteve nas negociações do Tratado de Nice que subiu o número
de eurodeputados após o alargamento a 27 e reforçou os seus poderes. Quais as
dificuldades dessa negociação?
Os alargamentos da União Europeia (UE) levaram quase sempre
à mudança dos tratados, a mais neutral foi a suscitada pela entrada de Portugal
e Espanha. O alargamento aos países do Leste, um imperativo de natureza política
e estratégica, levou a uma reflexão na União para alterar os tratados e
adaptá-los às novas exigências. Os que se habituaram numa UE a 12 ou a 15 a ter
o poder de decisão essencial não quiseram que numa União largada essa
capacidade fosse fortemente afectada. Muitas das alterações dos tratados de
Nice e de Lisboa - antes houve a tentativa de Tratado Constitucional - têm a
ver com as relações de poder e a necessidade de alguns países justificarem às
suas opiniões públicas que o facto de serem contribuintes líquidos e de terem
um peso demográfico grande determinava mais poder no processo decisório. Por
isso, há países que pela introdução do novo mecanismo de decisão do Tratado de
Lisboa procuraram garantir que em cada decisão de Bruxelas havia um número mínimo
de países representados, 55%, e que as decisões correspondiam, no mínimo, a 62%
da população.
A negociação foi difícil?
Foi difícil porque pela primeira vez traz uma realidade nova
na União, que é a distinção. No passado, a França e a Alemanha tiveram a mesma
posição em número de votos, de eurodeputados e de comissários. Em Nice, tudo
muda. A Alemanha passa a ter mais eurodeputados que a França, o factor
demográfico passar a ter mais importância e reforça o país mais populoso, a
Alemanha, o que foi difícil para os franceses.
O Tratado Constitucional era uma compensação para Paris?
Era a vitória de uma certa Europa política, era um avanço
para a unidade política, que não era federalista no sentido tradicional, mas
traduzia um salto qualitativo de natureza quase semântica no processo europeu.
O Tratado Constitucional não era muito diferente do que acabou por ser o
Tratado de Lisboa, mas o facto de aparecer como Constitucional foi lido em
muitos países como um salto em frente que criava uma subordinação demasiado
grande das entidades nacionais face às europeias.
Um passo maior que a perna?
Claramente. A prova foi que a primeira rejeição é na
Holanda, seguida da França e o processo parou. Ironicamente podemos dizer que,
se a primeira rejeição tivesse sido em Portugal, seguida da Irlanda, as coisas
teriam sido diferentes.
O interessante é que a Europa consegue este milagre, o de se
iludir a si própria, isto é renegociar um tratado, o Tratado de Lisboa, que no
fundo não é muito diferente do anterior, o Constitucional. Em primeiro lugar, a
criação de um presidente do Conselho Europeu que evita que seja o
primeiro-ministro do país com a presidência [de turno] a garantir em termos
funcionais por seis meses essa mesma presidência. Criou-se um Alto
Representante para a Política Externa e de Segurança que passou a
vice-presidente da Comissão Europeia. Ao sê-lo, há pela primeira vez na
história da UE, uma ligação entre duas instituições que em princípio são
separadas. O facto de o Alto Representante ser do Conselho de Ministros e ao
mesmo tempo vice-presidente da Comissão permite maior coerência entre as
funções das duas entidades.
Em Lisboa, houve também o reforço dos poderes do Parlamento
Europeu. Pode-se ir mais longe?
Aumentaram os poderes de co-decisão, os poderes do Conselho
com o Parlamento. Houve necessidade de equilibrar o que sempre se chamou défice
democrático. Convém lembrar que, quando começou, o Parlamento Europeu era
constituído por parlamentares que vinham dos parlamentos nacionais e só depois
passam a ser eleitos. À medida que ganha poderes, o Parlamento Europeu deixa de
ser apenas um órgão declaratório, passa a decisório, e cada vez mais os Estados
têm cuidado com quem enviam para o Parlamento Europeu.
Não há uma opinião pública europeia, mas 28, as nacionais
mobilizadas por uma agenda de interesses e preocupações diversas
Hoje, o Parlamento Europeu ganhou poderes muito importantes
no Orçamento e passou a ter um papel mais decisivo nas áreas legislativas em
que o Conselho decidia por maioria qualificada. O aumento dos processos de
co-decisão, a relação entre o Parlamento e o Conselho foi alargada a mais
áreas, o que significa que no Parlamento Europeu os deputados passam a ter um
acesso e poder em sectores e áreas temáticas mais importantes. Os lobbies
europeus - lobbies no sentido positivo - passaram a ter um papel junto dos deputados,
o que dá mais protagonismo e força ao Parlamento e maior legitimidade às
decisões da União. E retira ao Conselho o ónus da decisão, que é partilhada. O
que levanta outro problema que o Tratado de Lisboa procurou resolver, o papel
dos parlamentos nacionais. No Tratado de Lisboa, estes recebem alguma
recuperação de poderes segundo o princípio da subsidiariedade e a capacidade de
rever algumas decisões europeias. Não sei se utilizaram estas capacidades,
provavelmente foi algo cosmético.
Porquê cosmético?
Sempre foi tensa a relação dos parlamentos nacionais com o
Parlamento Europeu, na ideia de quanto mais reforçarmos este menos poderes têm
os nacionais. Há parlamentos que sentem o desapossar dos poderes pela Europa de
forma dramática, o caso mais evidente é o britânico.
É aqui que está o motivo de a opinião pública olhar de
soslaio para o Parlamento Europeu, apesar de consagrada a petição pública para
propostas legislativas?
Julgo que o princípio da petição de um milhão de cidadãos
fazer uma proposta à Comissão nunca foi utilizado. Nesta decisão do Tratado de
Lisboa há um aspecto do politicamente correcto. Não há uma opinião pública
europeia, mas 28, as nacionais mobilizadas por uma agenda de interesses e
preocupações diversas. Com o alargamento dos últimos anos, como vimos nas
crises norte-sul em matéria económico-financeira, e leste-oeste com os
refugiados, esta diversidade que é rica é também uma fraqueza para a identidade
da UE.
A democracia tem esta fragilidade, a de abrir caminho aos
seus inimigos, mas não podemos pôr só no parlamento quem pensa e está a favor
da Europa
Um alemão sabe que o seu governo é sempre relevante no
aspecto europeu, pelo que há uma hierarquia subliminar que dita uma diversa
mobilização para as eleições europeias. O cidadão português sente que a sua
voz, com 20 deputados – os alemães têm 90 -, é menos importante, o que o leva à
abstenção.
Qual é a forma de resolver a situação?
A realidade será sempre esta, mas há uma falta de pedagogia
dos governos face às vantagens da Europa. Os governos quase sempre procuram que
a UE seja o bode expiatório do que corre mal e que as suas decisões sejam a
glória nacional. A Europa passa da Europa das soluções a ser a dos problemas, o
que é muito complicado de reverter. Mesmo em Portugal, com postura favorável à
vida europeia, há uma degradação objectiva, por um conjunto variado de
factores. Um deles é que as novas gerações não têm ideia do que era Portugal
antes de estarmos na União.
Sendo o Parlamento a bancada de excelência do multilateralismo,
que efeitos têm as actuais críticas à multilateralidade?
A grande perversão que afecta o Parlamento Europeu, e uma
ironia democrática, é de ter cada vez mais antieuropeus na bancada. A
democracia tem esta fragilidade, a de abrir caminho aos seus inimigos, mas não
podemos pôr só no parlamento quem pensa e está a favor da Europa. Nos últimos
anos, devido a uma certa má vontade suscitada por políticas europeias, aumentou
o número de deputados eurocépticos e eurocríticos. "Europrudentes"
como diriam alguns em Portugal.
Somado a isto, há o facto de alguns governos nacionais terem
uma atitude extremamente reticente face ao projecto europeu, que vão ter
direito, após as eleições europeias e a substituição da Comissão, a nomear um
comissário que pode ir com ideias antieuropeias. Estas ideias, somadas às de
outros comissários da mesma linha, ainda que minoritários mas com eco nos
deputados eurocépticos, leva a uma espécie de quinta coluna que vai introduzir
clivagens hoje inexistentes. Por isso, estas eleições europeias são das mais
importantes porque estamos pela primeira vez com uma União muito diversificada,
com sensibilidades diferenciadas, algumas das quais quase no limite da
coerência dos princípios que esses países subscreveram quando entraram.
Arriscamo-nos que essa diversidade possa bloquear o funcionamento da União.
Alguns governos nacionais vão ter direito, após as eleições
europeias e a substituição da Comissão, a nomear um comissário que pode ir com
ideias antieuropeias
Depois do "Brexit" é cordial a revisão prevista do
número de eurodeputados por país?
Haverá um rateio, cuja lógica foi feita em Nice. A discussão
agora estará a ser feita de forma mais racional, mas seguramente quem vai
ganhar com a repartição vão ser os maiores países que, também é verdade, numa
lógica relativa estão desprotegidos. Isto é, o seu número de deputados não
corresponde necessária e automaticamente à sua população. Não sei se mais um ou
menos um deputado é relevante ao nível das decisões, mas é simbólico e na UE,
onde estamos a transferir para uma gestão comum um conjunto de valores de
soberania, o simbolismo é importante para além do valor objectivo do processo
decisório. E os Estados mais pequenos e pobres, que estão ligeiramente
distanciados do padrão médio de interesses do projecto legislativo em Bruxelas,
necessitam de mostrar às suas opiniões públicas que não estão desmunidos de
influência sobre o projecto europeu.
Os eurodeputados aprovaram duas propostas para a aplicação
do artigo 7.º do Tratado de Lisboa à Hungria e Polónia por quebra dos valores
europeus. Que efeitos práticos terá isso?E, senão tiver, o que acontece?
É uma boa questão que só o futuro vai responder. Vejo com
cepticismo a possibilidade de esses mecanismos irem até ao fim. Sabemos que a
comunidade é uma comunidade de interesses, por vezes para além dos princípios,
e que o isolamento de um país pode configurar a afectação de interesses, por
exemplo, de natureza económica. Tenho a sensação de que a UE, por vezes, dá
mais relevo e importância ao bom relacionamento e que será capaz de
flexibilizar políticas para garantir esse bom entendimento.
Estou muito céptico sobre a aplicação do artigo 7.º do
Tratado de Lisboa. Foi em Nice que, durante a presidência portuguesa e com o
caso austríaco em fundo, que introduzimos esta norma para contrariar a deriva
de algum Estado-membro. Pensávamos que eventualmente um Estado pudesse sair dos
carris, só que hoje há vários a saírem dos carris e os mecanismos previstos no
Tratado de Lisboa são dificilmente adaptáveis. Há países que, mesmo que não
tenham saído dos carris, estão pouco disponíveis a associarem-se a uma medida
punitiva que, mais tarde, pela sua própria evolução interna que não podem
prever, lhes possa a vir a ser aplicada. A criação de um precedente pode-lhes
ser negativa.
Se a comunidade de interesses está acima dos princípios, o
que resta da União?
A União fez uma opção estratégica que teve o seu preço.
Quando foi criada funcionava apenas na base de algumas questões económicas e a
sua homogeneidade política e ideológica era muito grande. A entrada de
Portugal, Espanha e Grécia foi neutral face a estes equilíbrios. E foram muito
compensados com fundos comunitários que melhoraram a paisagem, os bolsos e
tiveram impacto na mudança das mentalidades, porque na altura a União era um
clube de países ricos. O alargamento à Áustria, Suécia e Finlândia, reforçou o
pilar neutralista no sentido de segurança e defesa. Depois entraram os países
do Leste, mais interessados em serem membros da NATO do que da UE, têm mais
gratidão aos Estados Unidos do que a Bruxelas, e trouxeram para a União todas
as suas idiossincrasias, os seus problemas internos e as suas minorias. A UE
quando fez este alargamento não teve a noção da "Babilónia" que aí
vinha. Na altura tínhamos a noção de que a ânsia dos países do centro e leste
europeu se tornarem membros da União era tal que, para eles, era uma espécie de
colonização política do leste. Também trouxeram outra questão difícil de
resolver. Ao longo de décadas esses países tinham visto as suas soberanias
tuteladas por Moscovo, pelo que tornou-se muito difícil pô-las em partilha na
União Europeia, quando as tinham acabado de recuperar. Por isso, há um esforço
de repatriação da soberania, que se vê claramente na Polónia.
O mundo actual, entre a financeirização da economia e o
capitalismo autoritário asiático, retira espaço ao discurso dos valores
europeus?
Hoje fala-se de 80% de economia e 20% do resto, a União vive
marcada por um discurso económico-financeiro limite. Mais do que isso, dividida
por esse discurso, como se viu durante a crise de 2007. Quando se fala de
valores dá-me a ideia que se lhes dedica uns minutos escassos. Habituámo-nos na
UE, com diferenciações nacionais em função das constituições, a um certo modelo
liberal e democrático assente em princípios que os Estados-membros se
comprometiam a subscrever nos critérios de Copenhaga que estão na Carta dos
Direitos Fundamentais e plasmados nos tratados. Hoje verificamos que certos
governos europeus estão polarizados e seduzidos por modelos de natureza
autoritária, de suposta eficácia na governação, que os transforma em
democracias que têm qualquer coisa de ditaduras. Pensávamos que isto só ocorria
em países como a Turquia, Singapura ou as Filipinas, nunca na UE, mas não deixa
de a afectar e a alguns governos europeus que se sentem com as mãos suficientemente
livres para tentarem algumas aventuras - "democraturas".
O teste são as eleições europeias. Estamos sem liderança
europeia, o governo alemão que era fundamental para a direcção europeia está em
crescentes fragilidades internas. O francês está em situação difícil e vivemos
um tempo dramático em Itália, que durante anos foi elemento garantido no
processo europeu e que tem derivas que não só põem em causa os equilíbrios
económico e financeiros europeus como os princípios básicos que pensávamos
adquiridos em matéria de respeitos de direitos humanos e de minorias. Estamos
em tempos muito complexos, é preciso ser muito optimista para ser optimista.
Sem comentários:
Enviar um comentário