sexta-feira, 2 de novembro de 2018

"O centro da capital está cheio, mas o que a enche não é sólido."

Uma perspectiva do movimento da Rua Augusta numa imagem obtida numa rua transversal


Lisboa é um donut com chantilly
O aviso é do arquitecto Walter Rossa, especialista na Lisboa pombalina: o centro da capital está cheio, mas o que a enche não é sólido.

Bárbara Reis
2 de Novembro de 2018, 6:48

Primeiro saiu o Filipe, depois o João, a seguir a Maria, na mesma altura o André, mais tarde a Rita, pelo meio a Teresa, o António e a Leonor. Estas são pessoas do meu bairro que se foram embora desde que Lisboa passou a estar na moda. Nuns casos as rendas aumentaram 200%, noutros os apartamentos foram vendidos a 3600 euros/m2 e transformados em Alojamento Local ou pequenos hotéis.

No célebre ensaio O Labirinto da Saudade, Eduardo Lourenço fala da tendência portuguesa para ver o presente como uma “ofuscante decadência”. Dantes é que era bom. Quando os conventos de Lisboa foram extintos e convertidos em hospitais, escolas, quartéis, tribunais e até no parlamento, Alexandre Herculano protestou. Quando a Câmara de Lisboa decidiu destruir o Passeio Público para abrir a Avenida da Liberdade, Ramalho Ortigão e mais 1316 lisboetas protestaram e escreveram num abaixo-assinado que “o projecto do boulevard do Passeio ao Campo Grande é de uma concepção bem tristemente pretensiosa [...], não serve senão para espalhar os maus hábitos dos cafés e do trottoir [prostituição], o amor da ostentação, a ociosidade, o boulevardismo, a cocotice, o luxo pelintra da toilette”. Quando Frederico Ressano Garcia projectou a construção das Avenidas Novas, o cepticismo foi geral. Descobri estas histórias da “negatividade absoluta” da elite portuguesa em relação à transformação de Lisboa no ensaio da historiadora de arte Raquel Henriques da Silva que faz parte do livro Projecções de Lisboa (com coordenação do “urbanólogo” João Seixas e acabado de lançar pela Caleidoscópio e a CML).

Mas, como diz a anedota, “está a ver aquela rua...? É na outra”. Falar do problema da habitação em Lisboa não tem nada a ver com a “negatividade absoluta” portuguesa. Muito menos com a ideia de que as qualidades da cidade e da pátria só existiram no passado e nunca existirão no presente.

O que importa é o que vamos fazer — hoje — com o nosso donut.

Os geógrafos falam do donut que Lisboa era nos anos 1970-80 e 90 e explicam que é “um modelo de crescimento metropolitano caracterizado pelo esvaziamento do centro urbano e crescimento populacional nas coroas suburbanas e periurbanas” (do mesmo livro, no ensaio de Isabel André e Mário Vale). Em 2011, Lisboa tinha 50 mil apartamentos vazios — quase 16% da habitação da cidade —, dos quais 78% estavam fora do mercado. Com o boom, muitas casas regressaram ao mercado, mas não para os residentes permanentes da cidade. O problema não é só do centro histórico, nem é só dos pobres do Castelo, da Mouraria e de Alfama, bairros onde para nove mil “alojamentos familiares clássicos” há quase três mil alojamentos locais, segundo o Estudo Urbanístico do Turismo em Lisboa. O problema já atinge a classe média e até a classe média-alta e inclui grupos de pessoas que até há um ano nem faziam parte desta conversa: os estudantes universitários. Os quartos na cidade passaram de 200 para 500 euros e hoje nenhuma universidade tem camas para mais de 10% dos seus alunos deslocados.

A Câmara de Lisboa acaba de aprovar a suspensão de novos alojamentos locais nos bairros mais pressionados e não se pode dizer que seja mau. Mas a suspensão vem tarde e não inclui medidas preventivas para bairros onde se antecipa a replicação do problema. O concelho de Lisboa já tem 17 mil casas destinadas a Alojamento Local (AL). Como previsto, a lei desencadeou uma corrida. Em média, foram registados 145 AL por dia entre o Verão e a semana passada. Só nas ruas à minha volta houve quase 400 novos registos. Prédios inteiros a seguir a prédios inteiros onde não mora ninguém. Os turistas saem à rua, cruzam-se com turistas, falam com turistas, almoçam e jantam com turistas.

Foi já no fim do debate de lançamento do livro Projecções de Lisboa, na Biblioteca do Palácio Galveias, que o arquitecto Walter Rossa, especialista na Lisboa pombalina, fez o aviso: “Hoje o donut tem chantilly, mas o chantilly derrete facilmente e pode desaparecer.” Ser smart não é vender a alma ao turismo. Ser smart é encontrar formas de garantir que as pessoas gostam de viver em Lisboa e que conseguem viver em Lisboa. E que, em vez de chantilly, o centro do donut tem residentes.

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