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Um país bom para os estrangeiros
Rui Ramos
3/7/2018, 4:051.
É uma pena que não
sejamos todos ricos, célebres – e estrangeiros, como Madonna. Porque é essa a
melhor maneira de apreciar a cidade de Fernando Medina e o Portugal de António
Costa.
Estacionar em Lisboa não é fácil. Nunca foi. Mas é ainda
mais difícil quando se tem, em vez do proverbial carro utilitário, uma frota de
quinze veículos à medida de uma celebridade americana. É porém para estes casos
que existe a Câmara Municipal de Lisboa. Muita gente, no entanto, estranhou ver
Fernando Medina no papel de arrumador de carros de Madonna. Para acalmar o
povo, a vereação fez constar que afinal Madonna ia pagar o estacionamento: 720
euros por mês. Mas 720 euros por quinze lugares de estacionamento, dá 48 euros
mensais por cada carro, no centro da cidade, ou 1,5 euro por dia – um pouco
mais do que a singela moedinha. Qual o munícipe que não gostaria de ter uma
proposta destas? É uma pena que não sejamos todos ricos, célebres – e
estrangeiros, como Madonna. Porque é essa a melhor maneira de apreciar a cidade
de Fernando Medina e, já agora, o Portugal de António Costa, Catarina Martins e
Jerónimo de Sousa.
O estacionamento de Madonna é uma nota de rodapé no regime
que transformou Portugal num paraíso para os estrangeiros. Para nós, os
impostos directos mais altos de sempre; para eles, todas as isenções fiscais.
Para nós, papelada e complicação; para eles, todas as facilidades. Para nós, os
parquímetros da EMEL; para eles, terrenos camarários, a um euro e meio por dia.
Era assim nos antigos países socialistas: infernos de
repressão e de escassez para quem lá nascia e que de lá não podia sair – mas
locais encantadores para os convidados estrangeiros do progressismo
internacional, que de lá vinham entusiasmados com as tardes no Mar Negro ou as
noites de Havana. Gabriel Garcia Marquez nunca se queixou de Cuba e o casal
Louis Aragon e Elsa Triolet regressava constantemente fascinado da União
Soviética. O comunismo, para eles, foi sempre de veludo.
Mas não, não estou a dizer que é a mesma coisa. Ainda não
estamos lá, como todos os dias lamentam amargamente os camaradas Catarina
Martins e Jerónimo de Sousa. Também não estou a exigir que tirem as regalias
aos estrangeiros: ainda bem que há quem possa disfrutar Portugal sem a praga da
nossa burocracia e a assombração da nossa autoridade tributária. O que eu
gostaria mesmo é que isso também fosse possível para quem aqui nasceu e não
saiu daqui. No fundo, estas excepções criadas para os estrangeiros são uma
confissão embaraçosa sobre a falência e a inadequação do regime português. Porque
existem? Porque o regime, endividado e dependente de uma das economias mais
estagnadas da Europa, precisa do investimento e da despesa dos estrangeiros.
Por isso, tenta atraí-los poupando-os à opressão fiscal e burocrática. Muito
bem. Mas não precisará o regime também do investimento e da despesa dos
nacionais? E para os estimular, não seria conveniente aliviar os portugueses do
estrangulamento fiscal e administrativo? Ou isso só vale para os estrangeiros?
Até onde irá o regime de excepção e de privilégio instituído
a favor dos que chegam de fora? No século XVIII, os ingleses em Portugal tinham um juiz especial, eleito por
eles, para lidar com as suas questões judiciais, o “juiz conservador da Nação
Britânica”. Os liberais, obcecados com a ideia de uma lei igual para todos,
aboliram esse foro privativo no século XIX. Mas que acontecerá quando Madonna,
em vez de ter de estacionar, precisar de ir ao Campus da Justiça, e descobrir
que há-de esperar dez anos para resolver o seu problema? Irá o governo de
António Costa premiá-la com uma jurisdição especial, talvez um “juiz
conservador das vedetas pop americanas”?
António Nobre escreveu “que desgraça nascer em Portugal”.
Talvez seja, mas por outro lado: que bom viver em Portugal – desde que se venha
do estrangeiro, claro.
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