Casas de renda acessível da Câmara de
Lisboa expulsam lojistas da Rua de São Lázaro
REPORTAGEM
Sofia Cristino
Texto
2 Julho, 2018
Os lojistas da Rua de São Lázaro vão ter de sair para darem
lugar a habitações do Programa Renda Acessível (PRA), mas estão revoltados com
a falta de alternativas apresentadas pelo senhorio, a Câmara Municipal de
Lisboa (CML). Queixam-se de a autarquia só negociar “na base do sair”, de
oferecer indeminizações “ridículas” e ter pouca disponibilidade para os
receber. Alegando ter investido muito na recuperação dos imóveis, impedindo a
sua degradação, os comerciantes lembram que têm clientes de várias partes do
país a virem de propósito às suas lojas, contribuindo há muitos anos para o
desenvolvimento da economia local. Se fecharem, alertam, centenas de pessoas
poderão perder o seu posto de trabalho. Os comerciantes acusam ainda o
presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior de nada fazer para os
ajudar, mas Miguel Coelho (PS) descarta responsabilidades. “Percebo que haja
alguma mágoa, mas não é da nossa competência”, diz. A Câmara de Lisboa diz
estar a negociar com os comerciantes “de forma a encontrarem a melhor solução
para cada caso concreto”.
“Todos os dias,
acordo a pensar até quando esta situação vai durar. Estamos a viver um clima de
terror psicológico. O que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) está a fazer
connosco, ao intimidar-nos a sair, é bullying”, diz José Santos, 48 anos,
sócio-gerente da loja de têxteis Viúva de Luís da Mata, instalada na Rua de São
Lázaro, na freguesia de Santa Maria Maior, há mais de 50 anos. O comerciante
está revoltado por ter de abandonar a loja onde sempre trabalhou com o pai,
para ali nascer uma habitação a preços controlados, no âmbito do Programa Renda
Acessível (PRA) da CML. Em Julho de 2016, os comerciantes da Rua de São Lázaro
a trabalharem em edifícios municipais receberam uma carta da Câmara de Lisboa a
solicitar que enviassem os dados sobre a actividade económica das empresas.
Descontentes com a forma como a autarquia os tratou, criaram a Associação
Comércio Tradicional Rua de São Lázaro (ACTLS) para se fazerem ouvir.
“Nesta rua, somos uma família, trabalhamos para uma
comunidade muito específica. Há pessoas que vêm aqui de propósito, de várias
partes do país e das ilhas, para comprarem produtos portugueses”, conta José
Santos, no meio do armazém onde guarda colchas e lençóis, que, na manhã em que
O Corvo visitou o espaço, servia de sala de reuniões improvisada para falar com
os outros lojistas lesados pela decisão da autarquia. Tinham acabado de se
encontrar com o Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV) e preparavam-se para
reunir com o Partido Comunista Português (PCP). “Vamos fazer tudo o que
conseguirmos para ficarmos com as lojas. A CML está a ser intransigente,
queríamos ir através da conversa, mas não dá. Por isso, vamos fazer uma
petição”, avança. Com a subscrição, pretendem que lhes sejam atribuídos os
rés-do-chão reabilitados para continuarem os seus negócios.
O Programa Renda Acessível prevê o arrendamento de cinco mil
a sete mil fogos a preços controlados para jovens casais em quinze zonas da
cidade. Na Rua de São Lázaro, já foram concessionados 16 edifícios municipais,
que serão cedidos pela autarquia em direito de superfície para serem
reabilitados por privados, dando origem a 126 apartamentos naquela artéria,
junto ao Martim Moniz. As negociações com a CML estão a decorrer e já foram
apresentadas indemnizações aos comerciantes para abandonarem as lojas. Os valores propostos são, contudo,
“ridículos”, dizem. “Ofereceram-nos uma indemnização de 40 mil euros, uma
ninharia. Tenho cinco empregados, nem dava para lhes pagar”, explica ainda José
Santos. “Fiz a minha vida toda em função do negócio. Saindo daqui, não tenho
alternativa. Não queremos impugnar o Programa de Renda Acessível, queremos que
nos integrem nele. Já houve muitos moradores a residir aqui, mais de 200
pessoas, que saíram. Achamos, por isso, que isto foi tudo premeditado pela
Câmara”, acusa.
Depois de ter
conhecimento do que ia acontecer à sua loja, José Santos foi à procura de um
novo espaço para instalar o negócio e ficou “incrédulo” com a oferta reduzida.
“Nesta zona, só encontrei uma loja de 110 metros quadrados, pela qual pediam 6
mil euros de renda, e outra, de 90 metros quadrados, pela qual pediam 3 mil
euros, um exagero”, considera José Santos, que paga 540 euros de renda. O pai,
Isidro Santos, 74 anos, a trabalhar ali desde os 13 anos, também se recusa
baixar os braços. “Ampliamos a loja e, depois das obras, fiquei sem um tostão.
Quando vieram cá os técnicos da Câmara fazer as medições para o projecto de
reabilitação, perceberam que tínhamos mais área na loja e ficaram
surpreendidos. Tornou-se ainda mais apetecível o negócio. Só nos resta ir à
luta”, afirma.
Duas casas abaixo, José Fernandes, 60 anos, proprietário da
loja de revenda Deoferil Confecções, ali há 30 anos, tem dado a cara pela luta
destes comerciantes, tendo intervindo em mais do que uma sessão da Assembleia
Municipal de Lisboa. Depois de receber a primeira carta da câmara, foi aos
Paços do Concelho tentar obter respostas, mas não gostou da forma como foi
recebido. “Pedi para falar com alguém do pelouro da Habitação e a pessoa que me
ouviu respondeu-me por intercomunicador. Disse que não me queria receber e para
me despachar a enviar os documentos”, conta. O comerciante diz que só viria a
saber que teria de abandonar o rés-do-chão onde tem a loja através da
comunicação social. “É muito triste, ao final de tantos anos, acabarmos assim.
Nunca abandonamos esta rua, mesmo nas alturas mais complicadas, quando havia
muita prostituição. Não deixámos que os edifícios se degradassem, investimos
muito, desenvolvemos a economia local e somos responsáveis pelo trabalho de
centenas de pessoas. A câmara não zelou pelo seu património e agora quer
tirar-nos”, critica.
Estes comerciantes
querem continuar a trabalhar na Rua de São Lázaro, “um direito” deles,
explicam. “Não é nenhum favor que nos fazem. Desde 2016 que estou a trabalhar
em prol da rua”, diz José Fernandes, que paga 384 euros de renda pelo
rés-do-chão onde guarda pijamas, lingerie, panos, toalhas e outros produtos
têxteis. Tem mais de cem empresas a trabalhar com a sua firma, algumas das
quais já redigiram documentos nos quais atestam o impacto do fecho desta loja.
A Textimalhas, cliente da Deoferil desde 1993, depende financeiramente deste
tipo de empresas e o seu encerramento põe em causa a sua sobrevivência e a dos
seus funcionários.
Do outro lado da rua,
Akit Joosab, 40 anos, dá continuidade à loja de ferragens do pai, desde 1987.
Ofereceram-lhe 20 mil euros de indemnização, mas, tal como os outros
comerciantes, diz preferir manter a loja naquela rua. “Tenho três filhos, um
com 5 meses, outro com cinco anos e uma com 14 anos. E também ajudo a minha
mãe, que ficou viúva. Começar do zero é muito difícil”, diz Akit Joosab, que
paga uma das rendas mais baratas, de 50 euros. Joosab ainda propôs à autarquia
um valor de renda cinco vezes superior ao actual, cerca de 300 euros, mas a CML
disse que só aceitava a sua continuidade se pagasse “vinte vezes mais que o
valor actual”, conta. O município sugeriu-lhe, entretanto, mudar-se para uma
loja junto à Avenida das Forças Armadas, mas não ficou satisfeito. “Pedi uma
loja entre o Rossio e Arroios e disseram-me que não tinham. Fui à zona de
Entrecampos ver o espaço que me sugeriram e não havia movimentação nenhuma, vou
perder muito se for para lá”, conta.
“Sei que vão
construir novas lojas no lugar das nossas, podiam deixar-nos voltar. Só este
prédio agora vale milhões de euros, claro que os privados têm interesse. Falam
muito da protecção do comércio tradicional e não vejo nada”, critica. Para além
dos clientes do bairro, Joosab recebe pessoas da periferia de Lisboa. “Este
tipo de lojas faz muita falta e estão todas a fechar”, comenta Margarida Neto,
uma cliente a viver no Bairro das Coroas, em Loures, que vai ali de propósito
porque gosta do atendimento, mas também por já não encontrar este tipo de loja
no seu bairro. “Isto vai tornar-se outra cidade europeia sem identidade, os
turistas passam só para tirarem fotos à loja porque dizem que nos países deles
já não há estas lojas”, acrescenta Joosab.
Na Rua de São Lázaro há venda a retalho de toalhas,
cortinados, mantas e roupa interior, mas a maioria das lojas funciona como
armazém de revenda. A Confecção Boucosil, aberta desde 1980, é outro desses
exemplos. Nuno Rocha, 35 anos, filho do gerente desta firma, está muito
preocupado com o futuro do negócio familiar. “Só tenho o 12º ano, não fiz mais
estudos para ajudar o meu pai, achava que o meu futuro estava garantido. Agora,
não sei o que vou fazer, com a minha idade já vai sendo mais difícil encontrar
emprego”, diz. Mas as maiores preocupações são sentidas diariamente, explica.
“Estamos aflitos porque não há data para sairmos, podem chegar aqui um dia e
avisarem-nos que temos de sair para a semana.
Tenho um filho com sete anos e sustento a minha família. Não queremos
indemnizações, queremos trabalhar”, desabafa.
Um pouco mais a
baixo, e ao contrário dos vizinhos, Amílcar Santos, 79 anos, gerente da Casa
Seta desde 1974, diz que está cansado e já anseia pelo dia da saída. “Com esta
idade já tenho vontade de ir para casa. Estou farto disto e já facturamos muito
pouco”, diz, não deixando de criticar as condições de saída sugeridas pela
autarquia. “Queremos uma indemnização mais alta do que aquela que nos foi
proposta. Face ao que já gastamos aqui e os custos que temos, foi ridícula”,
comenta. Agora, aguarda uma resposta da CML relativa à contraproposta que
apresentou. “Já entregámos a casa ao lado, em Março, que também era nossa.
Estávamos numa situação precária e tivemos de a ceder, mas perdemos cerca de
600 mil euros. Tínhamos muitos empregados e a autarquia não nos deu nenhuma
indemnização. Se fosse hoje, tentava contestar, sentimo-nos enganados”, lamenta
ainda.
No final da rua, João Barreiro, 64 anos, e a mulher, Dalila
Barreiro, 71 anos, gerem o café A Caprichosa há mais de 45 anos. Viram no plano
de reabilitação daquele arruamento que o seu café vai ser demolido, uma notícia
recebida com tristeza, mas sem surpresa. “Quando vim já havia um projecto para
demolirem o edifício, mas não se voltou a falar nisso. Não se manda uma carta
sem tentarem o diálogo, não é assim que se faz. Fiz isto toda a vida, trabalho
nisto há 55 anos, numa dedicação total a esta rua”, diz João Barreiro, enquanto
que prepara o almoço dos clientes habituais, “dos poucos portugueses que ainda
vivem no bairro”. “A primeira indemnização foi uma brincadeira, de 3 mil euros.
Voltamos à CML e ofereceram-nos 6 mil euros, outra anedota. Como não há duas
sem três, esperamos pela terceira proposta”, brinca, acrescentando que aguarda
agora uma resposta da autarquia. “A CML
está a desrespeitar-nos, fizeram-nos uma oferta vergonhosa e ligaram-nos a
pressionarem-nos para entregarmos os documentos”, acrescenta.
Depois de perceberem que a Câmara de Lisboa não estava
aberta ao diálogo sem ser na “base do sair”, os comerciantes da Rua de São
Lázaro tentaram falar com o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria
Maior, Miguel Coelho (PS), tendo este garantido ajudá-los. “Disse-nos que
tínhamos direito às lojas, que voltaríamos a falar e prometeu-nos uma reunião
na câmara, mas nunca mais apareceu nesta rua.
Mandamos-lhe vários e-mails e não respondeu. Devia estar a defender-nos,
mas está comprometido com o programa”, acusa José Fernandes.
Em declarações a O
Corvo, o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho
(PS), descarta as responsabilidades para a Câmara de Lisboa. “Estive reunido
com eles, em 2016, e expliquei-lhes que a resolução do problema só dependia da
autarquia. Recomendei que criassem uma associação e arranjassem um advogado,
percebo que haja alguma mágoa, mas não temos capacidade de resposta, não é da
nossa competência”, afirma. Quanto aos comerciantes que se encontravam em
situação de cedência precária – através da qual são obrigados a entregar a casa
ao senhorio quando este a requisita –, Miguel Coelho considera serem situações
“mais frágeis”, que devem ser conhecidas em concreto. Quando confrontado com as
acusações dos comerciantes, o autarca diz “não se recordar de ter deixado
alguém sem resposta”. “Se calhar, não dei foi a resposta que queriam”,
acrescenta.
“Claro que aquele comércio
faz falta aquela zona, mas também concordo que as casas sejam feitas ali, não
tenho críticas ao Programa das Rendas Acessíveis. Temo-nos debatido muito por
esta questão, para que os lisboetas voltem à freguesia. O ideal seria fazer-se
um projecto que englobasse estas lojas e as casas no mesmo sítio, de forma a
não prejudicar ninguém”, diz ainda. Questionado se pretende apresentar algum
tipo de projecto que compatibilize as duas situações, Miguel Coelho responde
assim: “Não tenho, neste momento, capacidade para criar um projecto desses”.
Uma fonte do gabinete
da vereadora da Habitação, Paula Marques, avança que “a autarquia se encontra
em negociações com estes comerciantes de forma a encontrarem a melhor solução
para cada caso concreto”.
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