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ANÁLISE
O cisne negro
Donald Trump representa um acontecimento extremo,
imprevisível, que desfaz os esquemas estabelecidos e põe em causa a própria
noção de Ocidente.
JORGE ALMEIDA FERNANDES
16 de Julho de 2018, 7:00
1. Donald Trump é um “cisne negro”. Cisne negro (Black Swan,
2007, e Dom Quixote, 2011) é o título de um livro do epistemólogo e matemático
libanês Nassim Taleb sobre os riscos e a incerteza. O cisne negro é um
acontecimento extremo, imprevisível e que desfaz os esquemas estabelecidos. A
metáfora de Taleb inspira-se na avis rara do escritor latino Juvenal, numa
época em que todos os cisnes eram brancos. A descoberta de um cisne negro na
Austrália, no século XVII, desintegrou aquela convicção milenar. O cisne negro
é um acontecimento “aberrante” e que muda tudo. Pode ser um cataclismo ou uma
invenção. Taleb dá como exemplos a Internet, a I Guerra Mundial, a queda da
URSS ou o 11 de Setembro.
Podemos argumentar que não é Trump quem muda o mundo e que
foi uma imprevista mudança do mundo que o fez chegar à Casa Branca. O certo é
que só depois dele podemos procurar causas ou explicações. A Europa estava
preparada para gerir crises na “normalidade”, mas a chegada do cisne negro
mudou o quadro.
2. Trump despreza os aliados, mostra deferência perante os
inimigos e aprecia os “homens fortes”. Na cimeira da NATO confirmou o seu papel
de demolidor da “velha ordem” nascida da II Guerra Mundial e do seu sistema de
alianças. A sua “América forte” implica a renúncia à própria liderança
americana na “ordem mundial”. Não representa o que o establishment
político-militar americano pensa: é o que o Presidente faz.
Como olhar Trump? O primeiro risco é segui-lo na anedota e
no teatro com que distrai os seus críticos. Edward Luce, chefe da delegação do
Financial Times em Washington e autor de um livro sobre Trump (The Retreat of
Western Liberalism, 2017), faz um aviso: “Quanto mais Donald Trump denigre a
NATO maior é o escândalo que provoca na Europa. A moral faz-nos sentir bem. Mas
também pode provocar cegueira intelectual.” Os democratas americanos preferiram
a “justa indignação à clareza analítica”. Acreditaram, por exemplo, que as
mulheres jamais votariam Trump. Enganaram-se. “Os Estados Unidos nunca
retirarão as tropas da Europa, dizem em Bruxelas. Mas Trump pode fazer
exactamente isso. Qual das margens do Atlântico teria mais a perder?”
“Ele inventa os seus próprios factos” e, instintivamente,
sabe visar os pontos vulneráveis do interlocutor, insiste Luce. Sabotar as
alianças diminui a força da América. “Mas o maior perdedor é a Europa. A sua
sobrevivência depende da garantia americana.” A Rússia não só ameaça a sua
fronteira oriental como interfere activamente na tentativa de desagregação da
UE a partir do Leste, dos populismos nacionalistas e, inclusive, das tentações
autoritárias.
Conclusão: “A América liberal encarou Trump literalmente mas
não seriamente. A Europa não deveria repetir este erro.” Acabou o mundo
pós-1945. Merkel reconheceu, em tom pessimista, que a Europa tem de tomar o
destino nas suas mãos. É mais fácil fazer diagnósticos do que indicar a
terapia. Mas com Trump, e provavelmente mesmo depois de Trump, mudou a aliança.
3. A Europa está dilacerada por surtos populistas e pela
reemergência de nacionalismos. A noção política de Ocidente está a dissipar-se.
Depois da crise económica de 2008, a questão migratória mudou as dinâmicas
políticas na Europa. A ascensão ao poder dos populistas italianos é um potente
acelerador.
Mas como entram aqui Trump e os Estados Unidos? Trump apoiou
o "Brexit" e denuncia o "Brexit soft" de Theresa May.
Apreciaria um enfraquecimento da UE que lhe permitisse negociar bilateralmente
com os europeus. A simples existência de Trump é um incitamento aos populismos
eurocépticos. Beppe Grillo, Matteo Salvini, Viktor Orbán ou Marine Le Pen
exultaram com a sua vitória em 2016. Tinham razão.
“Trump não pensa no fim do Ocidente”, afirma o politólogo
búlgaro Ivan Krastev. “Quer redefini-lo: o Ocidente, para o chefe da Casa
Branca e para [o seu ideólogo] Steve Bannon, não é bem uma aliança política, é
antes de mais uma entidade cultural fundada sobre a cristandade. O que coloca a
Turquia de fora, mesmo se da NATO, mas inclui a Rússia.”
“O Ocidente é um conceito, não uma localização”, escreve
Bill Emmott, antigo director da Economist. Foi “a ideia política com maior
sucesso no mundo”. É este Ocidente — que, para lá da geografia, pode incluir o
Japão — aquilo que hoje está em causa. Trump abandonou a liderança da ordem
mundial que os EUA inventaram e criou um vazio. “Alguns temem a China enquanto
potência ascendente”, escreve Luce. “Mas é o caos, e não a China, quem mais
provavelmente ocupará o lugar da América.”
4. Acabou também o mundo pós-1989, o breve tempo em que o
modelo da democracia liberal se expandia. Hoje, este modelo é desafiado por
modelos autoritários, como os de Xi Jinping e Putin. Pelo mundo fora, cresce a
lista dos autocratas. E o apetite por “homens fortes”, que garantam
“segurança”, não é já estranho à Europa. É o modelo de Budapeste.
“A Rússia assombra a
imaginação ocidental”, observa Krastev. “O que causa ansiedade no Ocidente
liberal não é que a Rússia governe o mundo, mas que o mundo seja governado da
maneira que a Rússia o é hoje. O que perturba é que o Ocidente possa começar a
parecer-se com a Rússia de Putin, o que não estávamos prontos a reconhecer.” O
ideólogo russo Alexander Dugin, que costuma estar um passo à frente de Putin,
não esconde os desígnios: “A Itália é o início da grande revolução populista
que mudará o mundo. (...) Os populismos destruirão esta União Europeia.”
Nunca nada está garantido. Por isso é inevitável olhar de
frente os efeitos do cisne negro. São factos. Os novos desafios dizem que
acabou o tempo em que a Europa pensava muito em economia e pouco em segurança.
Mudar este paradigma é, aliás, a chave para estabelecer novas relações com os
Estados Unidos. Numa perspectiva histórica, dir-se-á um dia que cisne negro
acabou por ser um bem?
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