Carnide, um bairro pacato onde ainda
há muitas promessas antigas por cumprir
Sofia Cristino
Texto
16 Julho, 2018
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Carnide está a mudar, mas ainda é uma freguesia de
contrastes vincados e com promessas de décadas por cumprir. Os condomínios
fechados, procurados por jovens casais, convivem com o Bairro Padre Cruz e o
Bairro da Horta Nova, onde ainda há quem se sinta marginalizado e reclame por
mais policiamento e lares de terceira idade. No centro histórico, há uma rua
sem saneamento básico e estradas esburacadas, onde caem idosos. A freguesia já
ganhou, porém, 12 orçamentos participativos da Câmara Municipal de Lisboa
(CML), nos quais está contemplada a reabilitação do espaço público. As obras
demoram, contudo, em avançar, o que leva o presidente da Junta de Freguesia de
Carnide a dizer que a freguesia não é prioridade do município. “Carnide é
deixada para segundo plano por estarmos na zona norte de Lisboa e pela nossa
cor política”, afirma o autarca eleito pelo PCP. Apesar do descontentamento
sentido por alguns moradores, todos os que lá vivem ou estão de passagem
elogiam a serenidade do bairro. “Quando entramos, parece que estamos numa vila
alentejana”, diz um visitante.
“Carnide é uma
aldeiazinha em plena capital. Quem vem morar para aqui já não quer sair”, diz
Margarida Almeida, 38 anos, enquanto observa o filho a andar de bicicleta à
volta do Largo do Coreto, no centro histórico da freguesia. Tal como outros
jovens, mudou-se há quatro anos para Carnide, quando os preços das habitações
eram mais acessíveis. Hoje, a casa vale o dobro do valor porque a comprou e há
mais veículos a circularem no bairro. “Só retirava o trânsito e colocava
parques de estacionamento, há carros a mais”, repara. A moradora elogia, porém,
a “calma e a segurança” de Carnide, características que se mantêm, e os “bons
acessos rodoviários” que lhe permitem chegar em dez minutos ao local de
trabalho, em Miraflores. Luísa Rodrigues, 86 anos, sentada numa cadeira à porta
de casa, cumprimenta Margarida e vai enumerando os prédios que dali se avistam.
“Sei quem morou em cada um deles”, conta. Nasceu ali, na Rua da Fonte, e sente
falta de “quase tudo”. “Qualquer coisa que precisemos temos de ir a um
hipermercado e nem todos têm mobilidade. A parte boa é que, ao final da tarde,
é uma paz”, diz, soltando um suspiro profundo.
Ao final da tarde, enquanto alguns casais passeiam com os
filhos, vai-se vendo mais gente a regressar do trabalho e jovens reunidos em
esplanadas. Alguns esperam pela hora das aulas de representação, numa freguesia
onde há três teatros, oito salas de espectáculos e 23 associações culturais.
“Quando entramos aqui, parece que estamos numa vila alentejana, gosto muito do
contraste com o resto da cidade”, diz António Dias, 20 anos, actor amador no
Teatro de Carnide. Sentado num banco a ouvir música, enquanto espera pelos
colegas para o ensaio, vai falando do que escapa à vista de quem apenas está
ali de passagem. “Carnide tem uma densidade cultural acima da média e poucos
têm essa percepção. O Teatro de Carnide é um espaço muito dinâmico. Às vezes,
temos de esperar que termine uma aula de dança para termos uma sala onde
ensaiar. Há muitos workshops e actividades a decorrer”, vai contando o também
estudante em Engenharia Informática, quando é interpelado por um amigo para
“petiscar qualquer coisa” num dos oito restaurantes do Largo do Coreto.
Nesta zona histórica de Carnide, não faltam espaços de
restauração a preços convidativos, responsáveis pela vinda de mais pessoas ao
bairro. “Não moro aqui, mas, durante muitos anos, vinha de propósito jantar à
Adega das Gravatas”, diz João Carvalho, referindo-se a um restaurante
emblemático da freguesia. É à hora de almoço, porém, que estes estabelecimentos
enchem, sendo difícil chegar à fala com os funcionários, tal é a azáfama. No
restaurante Barbosa, todos tratam o proprietário pelo nome e os constantes
convites a mais um brinde revelam que já se conhecem há mais tempo. Por volta
das 15h00, aquela rua volta a esmorecer. “No dia em que os restaurantes
fecharem, a freguesia morre”, diz Cláudia Ribeiro, 38 anos, funcionária da
Papelaria de Carnide, junto ao restaurante. Michele Gonçalves, 25 anos,
moradora há um ano e funcionária da histórica Panificadora de Carnide, critica
o desinvestimento no comércio local. “Está muito morto, as pessoas não abrem
nada aqui porque sabem que não vai rentabilizar”, comenta, enquanto prepara
sacos de pão.
Joana Fernandes, 62
anos, florista há 42 anos junto ao condomínio de prédios Solar da Luz, está
preocupada com o futuro da freguesia onde passou grande parte da sua vida.
“Isto é um dormitório para os casais mais jovens. Nunca abriu nada novo aqui,
sobrevivemos com dificuldades. Quando não há dinheiro na caixa de multibanco, a
única que temos, é uma tragédia”, conta. Um pouco mais à frente, Sónia Almeida,
40 anos, funcionária do café Pimenta Doce, também está apreensiva. “A população
está muito envelhecida, é preciso fazerem algo que obrigue as pessoas a virem a
Carnide”, propõe.
Caminhando pela Rua da Fonte em direcção ao Jardim da Luz, a
Barbearia de Carnide destaca-se no meio dos prédios antigos. Lá dentro, o
antigo eléctrico 13, que ligava Carnide aos Restauradores, grafitado na parede,
é apenas uma amostra dos vários trabalhos de arte urbana visíveis por vários
bairros da freguesia. “O autor do graffiti é Diogo Camilo, cresceu aqui”, diz
prontamente Nuno Horta, 30 anos, barbeiro há seis anos em Carnide, sem esconder
o orgulho pelo talento do grafiter. Apesar de não lhe faltarem clientes, não
está satisfeito com o rumo de Carnide. “Esta rua já teve muito movimento, agora
não tem nada. Há mais jovens a virem cá dormir do que a fazer vida. Devia haver
mais incentivos a fixar os comerciantes, ao sábado estou cá sozinho”, lamenta. O barbeiro, também morador, critica ainda a
falta de espaços para os jovens conviverem, o preço das habitações e o
encerramento do Carnide Clube, alvo de uma acção de despejo. “Aqui não passa o
rio Tejo, não faz sentido esta inflação. As rendas dos espaços comerciais são
caríssimas”, diz.
Durante a tarde, vêem-se poucas pessoas na rua, apenas
alguns reformados a jogarem cartas ou a comentarem as notícias do dia. “Isto é
pequeno, mas tem tudo o que precisamos, Carnide é rica”, diz José Soares, 70
anos, enquanto lê o jornal no Jardim da Luz. João Freitas, 71 anos, está no
Largo das Pimenteiras a tomar café. O morador, a viver na freguesia há 40 anos,
critica apenas a quantidade de casas abandonadas ainda existentes. “Sei que
algumas já foram compradas e estão há espera de obras. Era importante que a
parte velha fosse renovada, preservando sempre a nossa história”, repara, para
logo de seguida elogiar o que de melhor tem sido feito. “Há muitas actividades
para crianças e idosos e Carnide é a única junta de freguesia de Lisboa que
cede instalações para a prática de desportos sem cobrar nada. Está mais próxima
dos cidadãos e mais integrada na cidade”, conta.
Na Azinhaga das
Carmelitas e na Travessa do Pregoeiro, placas colocadas pelo Núcleo Associativo
dos Moradores e Amigos do Centro Histórico de Carnide denunciam que ali há
problemas de outra índole. “Esta rua tem obras de melhoramento previstas em
O.P, tem parquímetros, mas…não tem passeios!”, lê-se. Estes arruamentos já
deveriam ter sido requalificados com verbas do Orçamento Participativo (OP) de
2014 da Câmara Municipal de Lisboa (CML), mas até agora nada foi feito. A
freguesia é conhecida por um grande envolvimento da população, tendo já ganho
dez projectos no âmbito do Orçamento Participativo. Mas as obras de melhoria do
espaço público tardam em avançar.
Dulce Praça, 60 anos, dona de uma mercearia na Travessa do
Pregoeiro há 12 anos, diz sentir-se cansada de “lutar em vão” e de ser “uma
resistente”. Além da falta de investimento no comércio local, queixa-se ainda
do estado do pavimento, “todo esburacado”. “Isto está ainda pior do que quando
vim para cá. Supostamente, iam requalificar a Calçada das Carmelitas, mas está
tudo parado. Há idosos a caírem ao chão e a aparecer com fracturas”, informa.
Uns metros à frente, António Correia, 74 anos, está a substituir o filho,
proprietário da mercearia Dom Pingas de Carnide, que se ausentou para ir
comprar produtos frescos. Lamenta a falta de atenção dada aos comerciantes e
queixa-se da Câmara de Lisboa “desprezar” a freguesia. “O comércio local
resume-se à restauração. As pessoas falam, mas não são ouvidas”, desabafa.
Entre os projectos exigidos pelos moradores está ainda um parque de
estacionamento da Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa
(EMEL) com 274 lugares.
“Embora chamem pomposamente a esta parte ‘centro histórico
de Carnide’, está completamente abandonada. Não sei se é por ser a única Junta
de Freguesia liderada pelo Partido Comunista Português (PCP) que a Câmara de
Lisboa nos desprezou”, acusa. A viver na Azinhaga das Ferreiras há 55 anos,
António Correia alerta ainda para a falta de saneamento público em algumas
ruas. “Da Azinhaga para cima é uma vergonha, parece que estamos num país do
terceiro mundo. Há uma rua na Azinhaga do Serrado onde as fezes ainda vão para
uma fossa, mas estas pessoas pagam na factura da água a taxa do saneamento”,
diz, indignado.
A sexta maior freguesia de Lisboa, terra de antigas quintas
e azinhagas, tem tentado acompanhar o ritmo de crescimento da cidade, com a
construção de condomínios fechados, como a Quinta das Camareiras ou a Quinta da
Luz. Este desenvolvimento acelerado não tem sido feito, contudo, de uma forma
uniforme. No Bairro da Horta Nova, os moradores queixam-se de não serem uma
prioridade da Câmara de Lisboa. “O nosso bairro é sempre deixado para último.
Quando entramos no Largo da Luz, está tudo arranjado, é lindo. Aqui cheira a
podre, está tudo sujo. Começaram a construir as hortas urbanas e, agora, estão
totalmente abandonadas”, diz Nuno Barros, 38 anos. “Não foram só as hortas que
ficaram a meio”, interrompe Elsa Andrade, 55 anos. “Começaram a pintar os
prédios, mas não concluíram. Pagamos muito na factura da água e não temos
higiene nenhuma”, acusa.
Anunciação Lopes, 63 anos, está mais preocupada com a falta
de civismo de alguns moradores. “Esta
noite ninguém dormiu. Alguns moradores destroem tudo e, se a polícia diz alguma
coisa, viram-se contra eles. Continua a existir tráfego de droga e assaltos,
deviam sensibilizar as pessoas para serem mais civilizadas. Sempre que se fala
do nosso bairro, nunca se fala de nada de positivo”, lamenta. “Há poucos
serviços públicos, é preciso melhorar muita coisa, Carnide está a precisar de
um abanão”, acrescenta Jani Silva, 23 anos, também moradora. Enquanto os
habitantes da Horta Nova dizem sentir-se esquecidos, no Bairro Padre Cruz o
sentimento predominante é o de reconhecimento por um trabalho desenvolvido ao
longo de décadas e que começa a dar frutos.
O bairro de alvenaria, criado para receber população de
outros bairros precários, tem hoje uma cara mais lavada, com prédios novos e
outros em construção, uma biblioteca e o Centro Cultural de Carnide. “Durante
muitos anos, esteve tudo parado, mas tem vindo a evoluir muito. Tudo o que se
vê aqui surgiu há 27 anos, criaram-se 4 mil fogos. Só precisava de mais
policiamento, às vezes estão só dois ou três polícias na esquadra”, diz Joaquim
Matos, 59 anos, dono do Café do Quim há 42 anos. David Silva, 33 anos, elogia a
requalificação dos espaços verdes, a construção de um parque infantil, do campo
de futebol e da Biblioteca Municipal Natália Correia. “Há pessoas que não podem
comprar o jornal e vão lê-lo à biblioteca”, diz. Quem mora lá desde o início,
tem uma visão mais optimista. “Como já vivi o pior, gosto de tudo. Até à Serra
da Luz está tudo igual, depois é tudo novo”, comenta Lurdes Janeiro, 79 anos,
de sorriso nos lábios, enquanto apanha um autocarro para o centro da cidade.
Belmira Monteiro,
moradora há 25 anos, proprietária de um café no bairro, tem mais críticas a
fazer. “Deixamos de estar em barracas para vivermos em prédios, mas ainda nos
falta qualidade de vida. Precisamos de mais policiamento e de um lar de
terceira idade. Há muitas pessoas a viverem sozinhas e acamadas, que depois
aparecem mortas”, diz. A passar roupa a ferro na engomadoria social do Bairro
Padre Cruz, Teresa Guerra, 56 anos, também alerta para a importância da
construção de um lar de idosos e critica o encerramento da cantina social.
“Estamos a falar de um bairro com muitas necessidades, precisamos de mais
apoio”, reforça. Há, ainda, quem aguarda por uma casa nova desde 2001. “Estas
telhas já não são permitidas por lei. Isto é pior que as barracas, está cheio
de ratos, já deviam ter ido ao chão”, diz Eugénio Plácido, 50 anos,
referindo-se às casas com telhados de lusalite, visíveis nos arruamentos mais
estreitos.
O presidente da Junta de Freguesia de Carnide, Fábio Sousa
(PCP), em declarações a O Corvo, diz que a requalificação do centro histórico
de Carnide é a principal prioridade da autarquia, neste momento, mas “a falta
de acção” da Câmara de Lisboa não tem ajudado à sua concretização. “A nossa
freguesia tem uma particularidade que mais nenhuma tem, a grande participação
das pessoas. Este envolvimento acaba, contudo, por ser descredibilizado. Estamos há quatro anos à espera que a câmara
avance com as obras. Não são intervenções profundas, não faz qualquer sentido
não haver perspectiva de data para começarem”, diz, referindo-se à reabilitação
do espaço público da zona histórica, um dos projectos vencedores do Orçamento
Participativo de 2014.
Questionada por O
Corvo sobre a data prevista para o início da recuperação da Azinhaga das
Carmelitas, a Câmara de Lisboa diz que o projecto de requalificação será
desenvolvido em paralelo com outro vencedor do orçamento participativo, “Uma
Rua Para Todos”, através do qual se prevê a reabilitação do centro histórico,
dada “a ligação física e funcional das duas intervenções”. “Os dois projectos
vão ser englobados numa intervenção global ao nível do espaço público, orçada
em cerca de 1,2 milhões de euros. O projecto de execução já está concluído e
vai ser lançado concurso com maior brevidade possível”, anuncia.
A segunda fase das
obras de requalificação do Bairro da Horta Nova, inseridas no âmbito do
programa “Aqui há mais bairro”, um investimento de 2,2 milhões de euros, vai
avançar este ano. “O estaleiro da obra, com prazo de execução de doze meses, já
foi montado esta semana. Na primeira fase da operação, que consistiu na
reabilitação de seis prédios, os aspectos relacionados com as características
cromáticas e de acabamentos exteriores foram submetidos a consulta junto da
comunidade residente no bairro. Esta consulta resultou em alterações que foram
implementadas ainda em fase de obra e determinaram um compasso de espera na
segunda fase para as necessárias adaptações ao caderno de encargos”, explica.
Confrontada ainda com
as queixas da Junta de Freguesia de Carnide, que diz sentir-se deixada para
segundo plano, a Câmara de Lisboa diz que “não há juntas de freguesia de
primeira e de segunda”. “Todas são tratadas de igual maneira, independentemente
da cor partidária que assume a sua presidência. Prova disso mesmo é que um dos
principais investimentos da CML, que se calcula ir gerar quase 1000 postos de
trabalho e dar origem a um parque verde com 17 hectares, é a Feira Popular, em
terrenos da freguesia de Carnide”, explica.
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