Campo de Ourique, um dos bairros mais cobiçados de Lisboa,
tem cada vez mais moradores estrangeiros
Sofia Cristino
Texto
30 Julho, 2018
A zona está a mudar, mas a transformação não é sentida da
mesma forma por todos. Há lojas a nascerem, mas também muitas a fechar logo
após abrirem portas. Na freguesia com um dos valores por metro quadrado mais
caros da cidade, jovens casais de classe média viram-se obrigados a sair das
casas onde começaram a constituir família. No bairro eleito por estrangeiros
para comprar casa, sente-se um aumento dos franceses, italianos e alguns
nórdicos e já há sinais do turismo junto ao cemitério dos Prazeres. O que tem
consequências. “Os mais jovens começam a assentar e a constituir família e têm
de sair”, diz uma comerciante. Há quem veja, porém, com optimismo o aumento de
residentes estrangeiros. “Talvez tornem a freguesia mais ecléctica e tragam
novas ideias”, diz outra lojista. A freguesia, conhecida pela pacatez e
espírito de comunidade. “Descobri este oásis e por isso fiquei cá”, diz uma
moradora e lojista, natural de Leiria. O estacionamento e o trânsito são “a
dificuldade crónica” do bairro, criticada por todos.
“Campo de Ourique
está numa fase de transição. Há muitos moradores a irem embora e essa saída vai
transformar o bairro. Está tudo a mudar, há prédios a serem restaurados e lojas
a abrirem. Vai acontecer alguma coisa, o que é ao certo ainda não sei”,
conjectura Teresa, lojista na Retrosaria do Jardim. As mudanças são visíveis um
pouco por todas as ruas, onde há pelo menos um prédio a ser remodelado ou uma
loja nova. Ao percorrer o bairro, o idioma francês é predominante e mistura-se
com o português quase na mesma proporção. “As pessoas que fizeram o bairro já
saíram. Sempre houve franceses, mas agora há muitos mais, e italianos e
chineses. Os estrangeiros vieram tornar as casas inacessíveis aos portugueses,
era o bairro dos actores e agora é o bairro dos franceses. Talvez tornem a
freguesia mais ecléctica e tragam novas ideias”, diz ainda, optimista.
Da porta da loja, de tecidos e roupa de bebé, vêem-se
crianças com os pais a brincar no parque infantil do Jardim Teófilo Braga, mais
conhecido por Jardim da Parada, no coração da freguesia. A maior parte não
reside ali, está só de passagem. “É uma zona muito apetecível para se viver,
mas os preços das casas são muito elevados. Viemos aqui só passear”, diz Vasco
Franco, 36 anos, enquanto dá leite ao filho recém-nascido e observa os outros
filhos a andarem de baloiço. Vive no Parque das Nações, mas frequenta a
recém-criada freguesia de Campo de Ourique, junção das antigas freguesias de
Santa Isabel e de Santo Condestável, desde criança. “A minha tia mora cá e já
venho desde muito pequeno. Não sei se são as pessoas, se é o comércio local,
que se mantém, ao contrário de outras partes da cidade, mas sinto-me muito bem
aqui. A seguir, vamos fazer compras nestas lojas de bairro”, conta. Pelos
bancos de madeira do jardim, vêem-se pessoas de mais idade, algumas filhas do
bairro de Campo de Ourique, grupos de homens a jogar à sueca durante todo o
dia, e um ou outro morador de meia idade a passear o cão.
Maria de Matos, 69 anos, a viver há 18 anos naquela zona, dá
voltas ao jardim, enquanto brinca com a cadela. Apaixonou-se pela
“tranquilidade” do bairro e comprou casa quando Campo de Ourique ainda ficava
de fora dos roteiros turísticos da capital e os preços dos imóveis não estavam
tão inflaccionados. “Tenho pena que o valor das casas tenha aumentado, muitos
casais jovens tiveram de sair. Alguma coisa tem de mudar, porque senão só vemos
idosos nas mesas”, diz, enquanto dirige o olhar para as pessoas de mais idade.
Isabel Cabaço e Fernanda Oliveira, sentadas num dos bancos do espaço verde, não
podiam estar mais felizes com a evolução do bairro onde vivem desde crianças. E
contam-no de sorriso aberto. “Está tudo tão modificado, tão diferente…Quando me
casei, a Igreja de Santo Condestável estava em obras, rodeada de andaimes. Era
tudo terra, agora há passeios e está tudo tão arranjado. Havia muito pouco
comércio e, agora, há muito. Não precisamos de ir à Baixa às compras, temos
aqui tudo”, diz Fernanda Oliveira, 91 anos, para logo de seguida começar a
relatar um leque de boas memórias.
Hoje, o adro da igreja é palco de passeios familiares,
encontros de adolescentes em período de férias escolares, ou local de paragem
para almoço. A quietude daquele lugar só é interrompida pelo ruído dos aviões
ou por um bando de pombos a invadir o átrio desafogado. “Gosto de almoçar aqui,
tem sombra e é tranquilo”, diz João Armando, 43 anos, enquanto acaba de comer a
refeição acondicionada num recipiente de plástico, nas traseiras da igreja. Uma
mulher, na casa dos 30 anos, brinca com o filho enquanto espera que o marido
saia do emprego. Em frente, há lojas que anunciam o encerramento e outras novas
que dão nas vistas pelo carácter invulgar. Na Casa a Granel, aberta desde final
de 2015, por Marlene Garcia, 30 anos, e o marido, vende-se um pouco de tudo avulso,
desde especiarias, cereais, arroz, massa em forma de desenhos animados, chás,
fruta desidratada, entre outros artigos dispostos em caixas de madeira ou
dispensadores. Só na primeira semana de abertura, Marlene adicionou vinte
produtos novos à loja. “Foram os próprios moradores da freguesia que se
mostraram interessados em sugerir produtores”, conta.
Natural de Leiria,
quando veio viver para Lisboa, em 2006, sentiu “uma grande impessoalidade” na
forma de tratamento com quem se ia cruzando e pensou em abandonar a cidade. Uma
opção que acabou por esquecer quando conheceu Campo de Ourique. “Descobri este
oásis e por isso fiquei cá. É uma comunidade, gosto da essência das pessoas e
criei amizade com os clientes, o que não é comum nas grandes cidades. É um
bairro muito auto-sustentável”, conta, enquanto cumprimenta uma cliente com um
abraço. Marlene Garcia elogia sobretudo o espírito de bairro e a segurança.
“Sente-se um aumento do turismo nos últimos dois anos, mas é bom”, acrescenta.
Ofuscado por vezes
com o que é já uma marca identitária da freguesia, o Mercado de Campo de
Ourique, o bairro tem uma vida muito própria, para lá dos holofotes dos prémios
internacionais que vai conquistando. O mercado, como tantos outros da cidade,
durante alguns anos caiu no esquecimento, mas reergueu-se com bares e
restaurantes, sendo principalmente frequentado à noite. Aurora de Brito, 78
anos, tece largos elogios à requalificação do espaço onde trabalha há 66 anos.
“Há uns anos, saíamos do mercado e não víamos ninguém, tínhamos medo. Agora,
vê-se muita gente, é todo o dia. Há muitos turistas e, ao mesmo tempo, é uma
aldeiazinha. Somos o melhor mercado de Lisboa”, afirma a vendedora de fruta.
Pedro Garrido, a trabalhar num quiosque junto ao cemitério dos Prazeres, diz que
nunca viu tantos turistas como agora. “Sem ser a Baixa e a zona histórica de
Lisboa, deve ser a parte da cidade com mais turistas, principalmente franceses,
espanhóis e italianos”, diz.
No bairro de Campo de
Ourique considerado, mais de uma vez, o “melhor para se viver” pela imprensa
internacional, e onde, no último ano, têm nascido novos restaurantes e lojas
gourmet, o encanto vai-se esfumando quando se percorre o bairro de uma ponta à
outra. “Do jardim para cá, não é Campo de Ourique. Esta é a zona menos nobre do
bairro, a mais esquecida”, diz Maria de Fátima, 45 anos, a trabalhar na Rua de
Campo de Ourique há 15 anos. Faz tapetes, artigos artesanais e restauros, e já
tem uma carteira de clientes grande, “no bairro onde todos se conhecem”, conta.
Lamenta, contudo, a falta de investimento no comércio tradicional. “O
presidente da Junta de Freguesia nunca fala connosco. Há pouco tempo,
perguntaram-lhe onde existia uma loja de restauros em Campo de Ourique e ele
não sabia”, conta. Júlio Caldeiro, 83 anos, há mais de cinquenta anos a vender
louças e utilidades, diz que sente a freguesia “estagnada”. “Não vejo evolução
nenhuma. O trânsito e o estacionamento são os maiores problemas, já perdi
clientes por isso. Nessa rua, que se vê daqui, deviam deitar as casas todas a
baixo. Isto já não é Campo de Ourique, só há prédios velhos e não se constrói
nada, é uma vergonha. Sempre se dava movimento a este canto”, diz, referindo-se
à Rua do Sol ao Rato.
Gil Boularote, 62
anos, lojista há 25 anos em Campo de Ourique, partilha a mesma opinião.
“Melhorou-se de um lado e perdeu-se a memória do passado do outro. Já
desapareceu muito do comércio antigo e tascas características da zona, que não
vão voltar. Está mais moderno, os prédios estão melhor e há dois anos há muitos
mais turistas, mas apagou-se o passado”, lamenta o emigrante francês, que vende
roupa e acessórios vintage na Rua Coelho da Rocha. Já Sílvia Laurentino, 51
anos, emigrada nos Estados Unidos, a passar férias em Portugal, olha com
satisfação para a transformação do bairro, mas critica os valores dos imóveis.
“Está completamente diferente, mais limpo e bonito, mas encareceu muito, é
muito difícil alugar ou comprar casa”, comenta.
Sandra Gonçalves, 40 anos, moradora e proprietária do Queque
de Campo de Ourique, uma pastelaria de bolos caseiros, sente-se desapoiada como
comerciante. “É um bairro simpático, que sempre primou por ter um pouco de
tudo, mas agora há pouca variedade de negócios, parece um refeitório, só há
restaurantes e cafés. Quando vim morar para cá, chamava-se à Rua Ferreira
Borges a 5ª Avenida, agora está muito diferente”, diz, criticando ainda o
difícil acesso à habitação. “Esta zona sempre foi cara, nunca desvalorizou, mas
agora é um absurdo. Vê-se demasiados franceses, não era suposto. As pessoas
mais jovens começam a assentar e a constituir família e têm de sair, não devia
ser assim”, acrescenta. Do outro lado da rua, José Martins, 66 anos, a vender
roupa interior, pijamas, lençóis e toalhas há 53 anos na freguesia, vai fechar
o negócio. “Chegamos a ter oito empregados, agora sou só eu. Perdi metade dos
clientes e a firma vai acabar porque não há ninguém para dar seguimento. Deve
ser a loja mais antiga de Campo de Ourique e é pena porque ainda há quem me
diga que faz falta”, lamenta o funcionário da Modas e Confecções Deserto. “O
que me vale é Campo de Ourique ser um bairro da 3ª idade, senão já tinha
fechado há muito tempo”, acrescenta.
Devido à subida acelerada do preço das casas, que colocou
Campo de Ourique como a freguesia com um dos metros quadrados mais caros da
cidade, há muitos habitantes a abandonarem o bairro, mas também muitas lojas a
abrir e a fechar, “uma rotatividade” criticada por alguns. “Os andares são
colocados à venda por valores absurdos e a maioria são comprados por
estrangeiros. Aqui ao lado, foi uma chinesa que comprou. Os casais jovens que
vivem aqui é em casa de familiares. Há muitas pessoas idosas a viverem aqui há
muitos anos”, conta Ana Galhardo, 60 anos. Há um ano, abriu uma loja de tartes
doces e salgadas na Rua Ferreira Borges e não está arrependida. Mas salienta:
“não é fácil uma loja aguentar-se aqui, tenho de fazer um esforço diário”.
“Há uma grande
variedade de lojas, mas não havia nenhuma que só vendesse tartes. Tentei
perceber como me podia diferenciar e não ser só mais uma, porque vi muitas
lojas a abrirem e a fecharem em pouco tempo. Há muita gente a querer abrir
lojas aqui, mas esquece-se que as rendas são altas e já há muita oferta de
alguns sectores de actividade”, acrescenta a antiga vendedora de artigos
artesanais. Quem passa na rua, por vezes, pára só para cumprimentar quem está
atrás do balcão. “Alguns só querem conversar, por isso é que Campo de Ourique é
mesmo um bairro. Consigo fazer um atendimento personalizado”, explica Ana
Galhardo.
Elisabete Torres, 47
anos, funcionária na retrosaria Tricots Brandal, na Rua Coelho Rocha, também
realça a “proximidade” dos moradores. “Este bairro tem características muito
especiais. É uma clientela mais idosa, mais conservadora, que muitas vezes vem
só conversar”, conta. Apesar de elogiar “a pacatez” da freguesia, lamenta a
falta de apoio aos mais novos. “É um bairro que podia ser aproveitado de outra
forma, poderia ter mais vida e, se não fosse tão caro, de certeza que mais
jovens o procurariam. É mais sociável à noite do que de dia”, diz, referindo-se
à movimentação sentida no Mercado de Campo de Ourique.
O presidente da Junta
de Freguesia de Campo de Ourique, Pedro Cegonho (PS), em depoimento escrito a O
Corvo, aponta “o estacionamento e o trânsito” como “uma dificuldade crónica da
freguesia”. “Estamos a acompanhar com expectativa as transformações em curso na
Carris, com a introdução de novos modelos de autocarros e a integração de mais
motoristas para repor níveis de serviços depreciados. Para além do reforço das
faixas BUS, bem como o aumento dos estacionamentos para motociclos para
incentivo ao seu uso”, diz. Cegonho avança que, no fim do mês de Julho, vai começar
a ser construído um novo parque de estacionamento da EMEL, com cerca de 250
novos lugares, junto à Piscina Municipal.
O autarca reconhece a
dificuldade de encontrar casa a “preços médios”, um problema “de toda a cidade
de Lisboa” que terá de ser resolvido através de “nova legislação em aprovação
na Assembleia da República”. No bairro marcado por uma forte presença de franceses,
o autarca diz que não consegue avançar dados da população estrangeira residente
na freguesia, mas diz ter “a percepção, quer das transacções imobiliárias, quer
do recenseamento eleitoral, de um aumento de cidadãos da União Europeia, como
franceses, italianos e alguns nórdicos”. “Estamos curiosos em conhecer os
resultados do Recenseamento previsto para 2021 para verificar as alterações
demográficas, quer ao nível da população estrangeira, quer ao nível da
renovação das famílias e do envelhecimento da população. Notamos a existência
de mais famílias com crianças, pela procura existente nas escolas e na
utilização dos parques públicos e programas infanto-juvenis da Junta de
Freguesia”, informa.
Cegonho congratula-se
ainda de o bairro chamar a atenção da imprensa internacional, como da revista
Monocle e dos jornais New York Times e Stuttgart Zeitung. “Campo de Ourique é
uma freguesia com um forte sentimento de pertença, de bairro e laços de
vizinhança. É um bairro plano, que convida a passeios a pé pelo comércio
tradicional, e gastronómico, com dezenas de restaurantes de cozinha portuguesa
e das magníficas pastelarias com fabrico e delícias próprias. É pontuado por
diferentes garrafeiras onde se encontram verdadeiros tesouros do património
vinícola português. Campo de Ourique é a verdadeira cidade dentro da cidade”,
afirma. Quando confrontado com as críticas dos comerciantes que se dizem sentir
esquecidos pela Junta de Freguesia, o autarca diz que “não se revê” nas mesmas.
“A nossa relação com todo o comércio tradicional é excelente, dinâmica e existe
ao longo de todo o ano, pontuando cerca de 200 lojistas em várias iniciativas”,
conclui.
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