O esplendor do politicamente idiota - Miguel Sousa Tavares
Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 28/04/2018)
Que haja portugueses
que tenham vergonha desta história e queiram reescrevê-la numa espécie de museu
de autoflagelação é problema deles. Mas não pode ser problema dos outros. O
dinheiro dos nossos impostos não pode servir para fazer um museu contra a nossa
História, contra uma História que foi tão grandiosa que, se calhar por isso
mesmo, nem a conseguimos entender, na nossa pequenez actual.
Pobre Fernando Medina, do que ele se foi lembrar: fazer um
Museu das Descobertas, ou dos Descobrimentos, em Lisboa! Uma ideia que
pareceria absolutamente consensual e necessária e que só pecava por tardia,
parece que se transformou numa polémica que já suscitou a indignação de mais de
uma centena de historiadores e “cientistas sociais”, trazida a público num
abaixo-assinado de professores de diversas Universidades, portuguesas e
estrangeiras — se bem que, para dizer a verdade, quase todas de segundo plano,
as Universidades, e quase todos, portugueses, os professores, com excepção de
alguns, que presumo brasileiros, em decorrência dos nomes que ostentam e que só
podem ter origem em antepassados portugueses e não em avós balantas ou mesmo
tupi-guaranis.
Antes de, com a devida vénia e indisfarçável terror, entrar
na polémica, deixem-me confessar a minha ignorância preliminar relativamente a
duas questões, seguramente menores: desconheço quase por completo, não só os
nomes, mas, sobretudo, a importância dos ditos historiadores para o que, num
português em voga mas não recomendável, chamam “a riqueza problematizante” do
que ora os ocupa; e desconheço ainda mais o que faça ao certo um cientista
social que o torne uma autoridade na matéria.
Isto posto, e indo ao fundo da controvérsia, estas cem
excelentíssimas autoridades indignam-se, em suma, contra o maldito nome do
nascituro museu. Porque a questão, dizem eles, é que chamar-lhe Museu das
Descobertas ou dos Descobrimentos, “não é apenas um nome, é o que representa
enquanto projecto ideológico”. Este, esclarecem, é o projecto ideológico do
Estado Novo, “incompatível com o Portugal democrático”. Bravo, António Ferro, o
SNI continua vivo, os Descobrimentos portugueses mais não foram do que a
antecâmara do colonialismo e o Estado Novo o seu apogeu e desfecho natural! O
“mar sem fim português”, de que falava Pessoa, outra coisa não era, afinal, do
que o Portugal do Minho a Timor, de que falava Salazar.
Pois, bem, se a palavra “descobertas” envolve um “projecto
ideológico” de conotações maléficas, isso significa que as excelentíssimas
autoridades têm outro projecto ideológico que se opõe e resgata este. Qual
seja, e abreviando, chamar a atenção, por exemplo, para que os povos
alegadamente descobertos pelos portugueses não se terão sentido descobertos,
porque, de facto, já lá estavam. É um argumento tão fantástico, que, de facto,
é irrebatível. Mas, salvo desconhecida opinião, ninguém sustenta que Vasco da
Gama criou do nada o samorim de Calicut, que os Jesuítas encontraram o Tibete
despovoado ou que Pedro Álvares Cabral celebrou a primeira missa em Terras de
Santa Cruz para uns fantasmas vestidos de índios. Não, o que eles fizeram foi
encontrar as rotas, marítimas ou terrestres, que ligaram o Ocidente e a Europa
ao Oriente e às Américas, pondo em contacto dois mundos até aí sem contacto
algum (com a excepção parcial das viagens de Marco Polo, por via terrestre, e
as viagens marítimas, sem sequência científica ou outra, dos vikings). O que se
sustenta é que não foi o samorim que se deu ao trabalho de largar o seu luxuoso
trono e apanhar uma low-cost para a Europa, mas o Gama que se arriscou a ir mar
fora naquelas cascas de noz ao seu encontro. Na época, isso significou — em
termos de navegação, de cartografia, de indústria naval, de rotas comerciais e
de avanços científicos em todas as áreas — um pulo de uma dimensão nunca antes
e raras vezes igualado depois, na história da Humanidade. Sem falar das terras
virgens que descobrimos e dos que não descobriram povos, dos que navegaram em
pleno desconhecido, movidos por um verdadeiro sentido de descoberta tão extremo
e destemido que só poderemos classificar como quase demência: Bartolomeu Dias
dobrando o Cabo da Boa Esperança sem saber o que iria encontrar do outro lado;
Fernão de Magalhães procurando insanamente o Estreito que ainda hoje tem o seu
nome, ligando o Atlântico ao Pacífico e provando que a terra era redonda e
circum-navegável em toda a sua extensão; os irmãos Corte-Real desbravando o
limite extremo do norte navegável. Todos eles em mar aberto e em terra de
ninguém, onde seria impossível às excelentíssimas autoridades encontrarem forma
práctica de dar execução a outro dos argumentos arrolados para o conceito
ideológico do seu museu: “Valorizar as experiências de todos os povos que
estiveram envolvidos neste processo”.
Enfim, e sempre resumindo, vem depois o argumento da
escravatura. É incontornável e eu subscrevo-o: deve estar referenciado num
museu sobre as Descobertas, e subsequente colonização portuguesa. Sem esquecer,
porém, que não foram os portugueses que inventaram a escravatura, mas apenas
aproveitaram o comércio de escravos que encontraram florescente nas costas
oriental e ocidental de África. E sem esquecer também que, sem desculpar o que
foi a tragédia da escravatura, não há erro mais simplista de cometer do que
julgar a História pelos padrões éticos contemporâneos. E estou à vontade no
assunto, pois escrevi um romance histórico cujo tema central era a escravatura
em São Tomé e Príncipe e em que, apesar de ela ter durado até à primeira metade
do século XX (!), não encontrei, curiosamente, entre tanta fonte pesquisada e
tanto historiador preocupado, nenhum trabalho histórico de referência que a
contemplasse.
Não resisto a uma palavra aos invocados historiadores
brasileiros que assinam esta petição. Conheço muito, de ver e de ler, da
herança história de Portugal no Brasil — e tenho um profundo orgulho nela.
Todos os ciclos de prosperidade histórica do Brasil, ligados às riquezas
naturais, tirando o primeiro — o do pau-brasil, irrelevante, em termos
económicos — foram feitos graças a árvores levadas para lá pelos portugueses: a
cana de açúcar, a borracha, o cafeeiro, até os coqueiros, que levámos da Índia.
E o ouro, o célebre ouro, roubado pelo D. João V? Ah, o ouro do Brasil! Do
célebre “quinto real” (tudo o que cabia à Coroa), nem um quinto cá chegou. O
resto? Perguntem a todas as ‘Lava-Jato’ que saltearam o Brasil, desde 1822.
Pedras, monumentos? Tudo o que ficou de pé é português: no Pará, em Pernambuco,
em Salvador, em Minas, no Rio, em Paraty, onde quiserem. E o Amazonas, cujo
desbravamento por Pedro Teixeira é uma aventura assombrosa de coragem e
persistência e cuja colonização, que incluiu a construção dos sete fortes de
fronteira, erguidos com pedras de granito levadas de Portugal a mando do marquês
de Pombal, e a que o Brasil ficou a dever milhões de quilómetros quadrados de
floresta virgem preciosa, e que foi, no dizer do grande historiador brasileiro
Joaquim Nabuco, “talvez a maior extraordinária epopeia de todos os
Descobrimentos portugueses”? É bem provável que os brasileiros não saibam nem
queiram saber dessa história. Os portugueses não sabem com certeza. Mas deviam
saber.
Que haja portugueses que tenham vergonha desta história e
queiram reescrevê-la numa espécie de museu de autoflagelação é problema deles.
Mas não pode ser problema dos outros. O dinheiro dos nossos impostos não pode
servir para fazer um museu contra a nossa História, contra uma História que foi
tão grandiosa que, se calhar por isso mesmo, nem a conseguimos entender, na nossa
pequenez actual. Tudo isto me faz lembrar o que escreveu no início de um poema
uma senhora que, por acaso, era minha mãe: "Navegavam sem o mapa que
faziam/ Atrás deixando conluios e conversas/ Intrigas surdas de bordéis e
paços...".
Para terminar: já me tinha pronunciado sobre isto antes.
Antes de esta irrepetível oportunidade para fazer uma coisa bem feita ter sido
capturada pela intelligentsia ociosa dos abaixo-assinados. Mas volto ao que
então escrevi: eu não queria apenas um Museu das Descobertas em Lisboa. Queria
um Museu de Portugal e do Mar ou dos Portugueses e o Mar. Onde coubesse também
a história de duas outras extraordinárias epopeias que o comum dos portugueses
e dos estrangeiros que nos visitam desconhece: a nossa contribuição única e indispensável
na história da pesca à baleia (juntamente com os cabo-verdianos), no Atlântico
e Pacífico, e na história da pesca ao bacalhau à vela, na Gronelândia e norte
do Canadá. Desse modo se tornaria patente que não foi por um simples acaso, nem
para espalhar a fé e o império, ou apenas para trazer a pimenta e a canela da
Índia, que este pequeníssimo povo, entalado entre o fim da Europa e o mar,
escolheu o mar como destino. E, porque o espaço tem relação directa com isso,
porque está miseravelmente desaproveitado, porque é lindo e porque sai mais
barato aos contribuintes, queria vê-lo na Cordoaria Nacional.
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