Comerciantes da rua de São Lázaro têm
de sair para que surjam casas de renda acessível
Braço-de-ferro entre
câmara e comerciantes da rua de São Lázaro está para durar. Lojistas admitem
que a autarquia não está a negociar, mas sim a impor o abandono das lojas que
ocupam há décadas. Câmara reitera que está e continuará a negociar com todos os
arrendatários.
Cristiana Faria
Moreira
CRISTIANA FARIA MOREIRA 14 de Julho de 2018, 9:03
Duas da tarde, café tomado n’A Caprichosa, a casa que nos
últimos dois anos tem ouvido os lamentos e os receios dos comerciantes da rua
de São Lázaro que temem ficar sem lojas. Vão ter de sair dos prédios que ocupam
porque a senhoria, a Câmara Municipal de Lisboa, quer afectar essas fracções ao
Programa Renda Acessível (PRA).
João Barreiro, 64 anos, ali está atrás do balcão há 40 e tal
anos a servir bicas e o que o freguês mais quiser. “Já viu o que são 45 anos
numa rua?”. O cabelo já não é mais negro e as conversas à mesa do café só
lamentam o que está a acontecer à “rua com mais comerciantes portugueses em
Lisboa”. A percepção é deles. Dos donos d’A Caprichosa, dos Armazéns do
Socorro, a Deoferfil, Lda, ou Os Rochas que estão a ser sondados para deixarem
as suas lojas.
Há três meses, alguns comerciantes receberam uma carta da
autarquia a propor-lhes a saída, apresentando um valor de indemnização.
"Os valores que me ofereceram nem dão para indemnizar um empregado. E
somos cinco na loja", diz José Fernandes, o proprietário da Deoferfil, um
dos armazéns de têxteis-lar da rua, que é também o presidente da Associação do
Comércio Tradicional da Rua de São Lázaro, constituída no início de 2017, para
fazer frente a este processo.
José Fernandes é dono da Deoferfil que ocupa o número 60 da
rua de São Lázaro NUNO FERREIRA SANTOS
Apresentado pela autarquia em Abril de 2016, o PRA prevê a
construção de habitação com custos acessíveis em várias zonas da cidade, numa
parceria do município e o sector privado. A autarquia disponibilizará terrenos
e edifícios que são sua propriedade e os privados encarregar-se-ão de construir
ou reabilitar. No total, o programa prevê o arrendamento de seis mil habitações
em 15 zonas da capital.
Apesar de já ter tido reuniões na câmara, José Fernandes
admite que vai sabendo as novidades do projecto “pelos jornais”. “A câmara
nunca nos elucidou em nada”, completa João. Pediram-lhes papéis sobre a vida
deles ainda em 2016, quando foi anunciado o programa, mas a partir daí o
processo não tem sido fácil.
Na terça-feira, durante a sessão da assembleia municipal, o
presidente da câmara, Fernando Medina, admitiu que o município tinha já chegado
a um acordo com um "número importante" de comerciantes da rua de São
Lázaro. "Foi possível encontrar uma solução para um número já importante
de arrendatários e ocupantes precários, também com instituições que utilizavam
aquelas instalações, e prosseguem as reuniões relativamente aos
restantes", apontou o autarca, citado pela Lusa, mas afirmando que as
reuniões com os lojistas estão para continuar.
Mas rapidamente recebeu uma resposta do presidente da
Associação do Comércio Tradicional da Rua de São Lázaro que disse que a câmara
não chegou a acordo com “ninguém”. José Fernandes diz que a saída dos dois
comerciantes que dali foram embora foram “impostas”, porque se tratavam de
contratos de arrendamento precários, logo o senhorio poderia mandá-los sair.
“Saíram sem um cêntimo”, nota.
Ao PÚBLICO, a autarquia diz que, até ao momento, foi
possível chegar acordo com dez titulares de contratos não habitacionais, dos
quais apenas um ainda se mantém no local, com a devida autorização do
município. E que “persistem negociações com 14 arrendatários”.
“Daqui depende a minha família"
“Não vão ser
construídas lojas? Por que é que não nos dão as lojas?”, questiona José
Fernandes, admitindo que as casas que ali estão têm futuro. “Quem quiser sair,
que saia. Mas quem quer ficar, devia ter essa hipótese”, diz João, admitindo
que estão dispostos a discutir actualizações às baixas rendas que pagam.
Se não houver hipótese de ficarem nas lojas, o que pedem à
autarquia é que lhes seja paga uma indemnização razoável. “Se o valor da
indemnização for justo, há pessoas que querem sair”, argumenta Carlos Jorge, de
64 anos, sócio da casa de têxteis-lar Armazéns do Socorro.
“Assim, até parece que pertencemos a outra cidade”, há-de
rematar João, lamentando que não se valorize o escasso comércio tradicional que
ainda vende artigo português.
Além de fecharem as lojas e ficarem sem negócio, muitos não
saberão o que fazer ao stock que têm nas lojas. "Tenho colegas que têm
aqui 500 mil euros de mercadoria", diz José Fernandes. É o que diz também
Isidro Santos, de 73 anos, dos Têxteis Viúva. Está naquela rua há 60. Há 28
anos que abriu a própria loja, com 350 metros quadrados. Remodelou o interior
por completo, sem a câmara ali ter posto “um tostão”, critica, assim como a maioria
dos comerciantes com que o PÚBLICO falou que garantem não ter deixado as casas
degradarem-se.
“Nunca abandonámos
isto nem na época da droga e da prostituição. Quando os outros saíam, nós nunca
abandonamos Lisboa”, atira o presidente da associação.
Ao PÚBLICO, o presidente da Junta de Freguesia de Santa
Maria Maior, Miguel Coelho, diz que a junta não tem capacidade para intervir.
“A junta não faz e não resolve porque não tem instrumentos legais para o poder
fazer”, diz o autarca.
Quando esta questão se começou a levantar, Miguel Coelho diz
que recebeu os comerciantes e os aconselhou a constituírem uma associação e a
arranjarem um bom advogado que os defendesse - algo que José Fernandes diz que
já tinham sido proposta por Helena Roseta numa sessão da assembleia municipal
em que os lojistas intervieram.
“Eu vejo com pena a
desertificação que está a acontecer neste território, não só de habitantes, mas
de determinado tipo de comércio”, nota o autarca de Santa Maria Maior. Em
quatro anos, a freguesia perdeu cerca de 2500 pessoas. E desde as últimas
autárquicas cerca de 400 pessoas. “O problema da falta de habitação e da renda
acessível na cidade de Lisboa é um drama muito grande e este problema não pode
ser só resolvido por uma entidade. É necessário que os privados invistam, mas é
necessário que o Estado também invista fortemente e coloque no mercado
habitações com renda acessível como forma de regular e travar esta especulação
com as rendas”, sustentou.
Os comerciantes querem evitar a expropriações. É por isso
que se pedem que a autarquia dialogue mais. Em resposta ao PÚBLICO, a autarquia
diz que "têm sido dadas como alternativas a atribuição de novos espaços
noutro local com idênticas condições ou a atribuição de indemnizações justas
para a revogação dos contratos de arrendamento com valores muito superiores aos
que resultam da aplicação do critério legal".
Na próxima semana, a Associação do Comércio Tradicional da
Rua de São Lázaro vai entregar uma petição na assembleia municipal a dar conta
do “terramoto” pelo qual dizem estar a passar.
Entre os funcionários mais novos, não se sabe como agarrar o
futuro. Cristina Cunha, de 47 anos, diz que só sabe atender a clientela e
ajudá-la a escolher roupa interior, panos de cozinha, lençóis, colchas. “Eu não
tirei nenhum curso. Só sei fazer isto”. Já Nuno Rocha, de 35 anos, segue o
negócio – Os Rochas - que o pai ali estabeleceu em 1983. “Daqui depende a minha
família. Pai, mãe, irmã, mulher, filho. É o nosso ganha-pão”.
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