Um
governo de poucas oportunidades e muitos perigos
São
difíceis os acordos entre quem defende o amor livre e quem quer
fidelidade conjugal
Manuel Carvalho /
1-11-2015 / PÚBLICO
1. O governo do PS
apoiado pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP deixou de ser uma afronta
aos bons hábitos do regime, mas continua a ser um projecto a
precisar de cuidados intensivos, ou, para superar a dimensão
afectiva de que carece, de conselhos matrimoniais. Com tanta
expectativa no adro, a esperança e a ansiedade dividemse. As
rupturas à vista na tradição política, o modo como um partido
derrotado nas urnas se prepara para as executar, a frustração da
direita, as ameaças externas e as fragilidades internas na economia
e nas finanças públicas prometem tempos difíceis para a nova
troika que se prepara para subir ao poder no dia 10. Até porque
sabemos que eles querem dar as mãos, mas desconhecemos se o afecto
chega a um abraço, se se formaliza por escrito ou vai assentar na
“palavra”, como Jerónimo de Sousa parece preferir, se implica
intimidade no seio do governo ou se fica limitado a trocas de mimos
no Parlamento.
Para os partidos
envolvidos as oportunidades são imensas, os perigos ainda mais. A
começar pela lealdade. Porque não se pode exigir entrega total
entre quem há apenas algumas semanas cultivava a animosidade. É
difícil haver compromissos entre quem defende o amor livre e quem
quer fidelidade conjugal. Estamos a passar assim por umas semanas
absurdas em que percebemos que PS, Bloco e PCP estão condenados a
entenderem-se não tanto por o quererem, mas por precisarem. Já
foram longe de mais para poderem regressar. Por isso se constatam
tantas dificuldades no pacto cuja natureza continuamos a desconhecer
— parlamentar ou mais do que isso, ano a ano ou para o horizonte de
legislatura, escrito e assinado ou apalavrado, a três ou par a par?
Tantas incertezas dão azo a suspeitas de que vem aí um acordo vago,
pomposo e ambíguo no qual o Bloco e o PCP possam ser poder e
antipoder, conforme lhes convier. Tudo o que o país não precisa
neste momento.
Não vai ser fácil.
António Costa vai ter de fazer a quadratura do círculo para
combinar o essencial do programa do partido, de índole fortemente
europeísta, com as cedências ao Bloco e ao PCP. O que está em
preparação é mais um governo contra qualquer coisa do que a favor
do que quer que seja — em questões como o trabalho, o Governo
cessante era exactamente a mesma coisa. O programa económico do PS,
uma mistura inteligente entre os compromissos para com a disciplina
orçamental e uma folga para acelerar o consumo e a recuperação,
foi ao ar. O PCP e o Bloco não estão dispostos a sair dos seus
redutos programáticos, nem a largar a mão dos sindicatos. Vão
vender cara a aprovação de um programa ou de um Orçamento. Neste
jogo de antagonismos, o PS está na pele do refém, condenado a ceder
até à linha vermelha do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Vai
ter de liderar um governo sempre no fio da navalha, mais preocupado
em manter um equilíbrio precário do que em executar uma estratégia
coerente para o país.
Há uma cola que
pode garantir ao governo de Costa alguma possibilidade de sucesso. O
medo. O PS tem medo, o Bloco tem medo, o PCP tem medo. O medo de
falhar, o medo de ficar com culpas de uma ruptura na esquerda, o medo
de desiludir o eleitorado natural, o medo de enfrentar tensões
internas são as forças motrizes do processo. O futuro de um governo
de António Costa é por isso imprevisível. Feito de uma manta de
retalhos negocial, detestado pela direita, suspeito aos olhos do
centro que ainda pensa que o PS perdeu as eleições, pressionado por
uma Europa conservadora e avessa a soluções que lhe saiam da
alçada, o governo de António Costa é uma aventura de alto risco.
Para o PS, para o PCP, para um Bloco, apesar de tudo mais plástico,
e, obviamente, para o país.
2. Com tantas
perguntas no ar, custa a perceber o silêncio conformado no PS. Com
excepção das palavras corajosas de Francisco Assis, das observações
pertinentes de Eurico Brilhante Dias e da ruptura ostensiva de Sérgio
Sousa Pinto, o PS transformou-se numa tumba. Assis promete exaltar as
consciências ainda esta semana, mas vai bater contra o muro dos
silêncios cómodos que se embrulham e engavetam na “unidade do
partido”. Bem se sabe que as sugestões de Cavaco Silva ao dissídio
no interior do grupo parlamentar tiveram o condão de funcionar como
uma ameaça externa que motivou a união interna. Mas todos estão
cientes de que um acordo à esquerda tem muitos mais oponentes e
críticos do que o grupo de três ou quatro militantes que têm vindo
a público questioná-lo.
O PS age por estes
dias como um partido acéfalo, perdido entre a expectativa de mudar e
o medo de questionar a mudança. Muitos olham para a ousadia de
António Costa, para a sua visão e a sua coragem em ensaiar soluções
fora da caixa e colocam-no no pedestal dos grandes líderes. Para
outros, o PS é uma caravela que navega à bolina, capaz de apagar a
trajectória que percorreu até agora no mapa da democracia para se
reinventar na procura de um novo destino. Sabe-se que os primeiros
dominam nos órgãos internos do partido ou na bancada parlamentar.
Mas onde estão os outros? A Vítor Ramalho bastou um discurso do
presidente para apagar todas as dúvidas; militantes históricos como
Alberto Martins, habituados a anos de confronto político,
tergiversam. António Vitorino espera para ver.
Mais do que operar
uma reorientação programática, António Costa forçou o PS à
condição de jogador de póquer que, depois de perder uma rodada
importante (a das eleições), decidiu apostar tudo sem ter cartas
seguras para o fazer. O futuro do PS depende dos seus méritos, mas
também da sorte e dos humores dos seus companheiros de mesa. O PS
que foi capaz de respirar enquanto um dos seus governos era associado
(de forma simplista e por vezes injusta, diga-se) à bancarrota, que
conseguiu disputar umas eleições, quando um dos seus ex-líderes
recentes estava preso preventivamente, tem pela frente um duríssimo
combate. A sua sobrevivência enquanto partido de poder depende do
que for capaz de fazer nos próximos tempos. Uma espécie de tudo ou
nada. É essa angústia que matou o debate interno e que fornece
energia à estratégia de Costa.
Se um dia, no futuro
próximo, algo correr muito mal à nova experiência de governo que
se anuncia, o partido enfrentará a sua maior tragédia desde a
fundação. Se no tempo do “exsecretariado”, outro momento de
grandes risco para o partido, havia alguém como Mário Soares para
colar os cacos, desta vez só sobrará uma voz com legitimidade e
credibilidade para evitar a “pasokização”: Francisco Assis.
Numa época em que ter dúvidas sobre a real vontade do Bloco e do
PCP em suportar um projecto de governo ancorado na Europa e empenhado
em manter a disciplina orçamental é sinónimo de direitismo
primário, Assis teve a coragem de dizer que pensa diferente. Não é
coisa pouca por estes dias.
Sem comentários:
Enviar um comentário