Anticomunista,
obrigada!
07.11.2015 às
9h0010 / EXPRESSO /
http://expresso.sapo.pt/politica/2015-11-07-Anticomunista-obrigada
Ou António Costa é
um génio político e submete os parceiros à sua imponderável
vontade ou caminhamos para a mais grave crise de regime depois do 25
de Abril
CLARA FERREIRA ALVES
Escritora e
Jornalista
Não estava à
espera neste ponto da minha vida e neste ponto do século XXI,
dobrado o século XX há uns aninhos, de ver aparecer a acusação.
Anticomunismo. Parece que qualquer pessoa que não confie na bondade
intrínseca de um acordo de governo com o Partido Comunista Português
é anticomunista. Confesso ter nostalgia de muitas coisas, mas não
desta. A de repensar o anticomunismo privado. Sou ou não
anticomunista? E se for? A questão não é meramente ideológica, é
existencial. É, por assim dizer, teológica. Cheguei à conclusão,
depois de muito matutar, de que sou anticomunista. Acredito na
economia de mercado, no capitalismo regulado e na iniciativa privada.
Não acredito na coletivização da propriedade e da economia, na
eliminação da competição nem na taxação intensiva do capital. O
atual Partido Comunista não partilha estas minhas convicções. É
coletivista, e foi sempre, ao contrário do que nos querem convencer,
pragmático. O PCP foi sempre pragmático e anti-idealista por
natureza. Nunca foi um partido romântico e só teve um panfleto
literário romântico, os “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes.
Tirando isto, o PCP é um bloco realista e de realismo social, no
sentido que a palavra tinha no século XIX. Para o PCP, a marcha da
História é marxista, o sentido da História é o da extinção do
capitalismo (e não a sua regulação) e o da criação de uma nova
consciência social, cívica e política nas mãos do proletariado e
das suas vanguardas, organizadas em comités, ou no que lhes quiserem
chamar, que controlem os meios de produção e os seus instrumentos
financeiros. O PCP era isto. E é isto.
Por razões
históricas, fui sempre anticomunista. E por razões ideológicas,
também. Sou uma anticomunista que não tem vergonha de ser
anticomunista e que tem e teve amigos comunistas (mais teve do que
tem, porque tudo o que se relaciona com esta doutrina é,
irremediavelmente, passado). Claro que podem ler nesta frase —
“tenho amigos comunistas” — a mesma desconfiança que leem
quando os homofóbicos dizem que têm amigos gays. E, já que falamos
disso, o PCP sempre foi ferozmente antigay. Só se mudaram. Já lá
iremos.
Sou anticomunista
por razões históricas e profundamente temperamentais. Como boa
individualista que sou, tenho horror a coletivismos impostos, e uma
boa parte da minha adolescência e entrada na idade adulta foi
passada a assistir e a resistir a isto. Posso mesmo dizer que,
doutrinariamente, o que me definiu foi ser anticomunista. O fascismo
tinha terminado no 25 de Abril. O fascismo foi outro regime
totalitário que não percebeu a História. Comecemos pelo princípio.
Na Faculdade de
Direito de Lisboa, os estudantes comunistas tinham o estranho hábito
de decretar greves gerais sem consultarem todos os alunos nessa
votação. Um aluno chegava à faculdade e diziam-lhe: hoje não
entras, há greve. Há greve? Quem votou? Nós. Nós quem? Numa
reunião secreta. Se foi secreta, como é que votámos? Nós votámos.
Por causa desta discussão insana que despertava em mim instintos
libertários e anarquistas, cheguei a furar uma ou duas greves com
mais uns dementes como eu que não gostavam de ser paus-mandados. De
um lado tínhamos os gorilas e do outro lado tínhamos as greves
obrigatórias dos comunistas, que se arrogavam o monopólio da
contestação. A UEC era formidável nisto, no monopólio da
contestação, e quando o MRPP tentou furar este monopólio teve o
apoio de boa parte dos estudantes, que estavam fartos da UEC e dos
seus esbirros da MJT. A MJT era o braço armado dos comunistas e
chegou a encerrar alunos dentro das aulas para bater nos maoistas à
vontade depois de deixar sair os outros, os “cobardes”. Uma das
vezes, escapuli-me por uma janela antes que a MJT entrasse armada de
matracas e correntes de bicicleta. A MJT era o operariado da UEC para
a porrada. O Movimento da Juventude Trabalhadora. Quando o COPCON
entrou pela faculdade, dando cabo de tudo à passagem, esgueirei-me
para Coimbra em “transferência secreta” (não podíamos fugir da
revolução em curso) e implorei ao professor Rui Alarcão que me
aceitasse na vetusta instituição. Em Coimbra, vigorava um comunismo
soft. Os comunistas controlavam tudo muito civilizadamente. Sem
pressões e mantendo o currículo académico. Restava o problema dos
sovkhozes e dos kolkhozes. Sobrando em Direito professores comunistas
que não abdicavam da coletivização dos bens e dos meios de
produção, fomos obrigados a estudar marxismo coagidos pela frase:
quem vier para as minhas provas escritas e orais defender a
propriedade privada pode contar com um chumbo. Andei em guerra até
ao fim do curso com um professor chamado Orlando de Carvalho, que
jurou que me chumbaria em qualquer circunstância (deu-me 14 depois
de eu ter encornado a sebenta toda, incluindo as cedilhas e os pontos
e vírgulas e, salvo erro, a célebre nota 64). O Orlando era um
comunista católico envergonhado. Era um coletivista desavergonhado e
um misógino desembestado. Sem dinheiro para ir estudar para fora e
fugir desta gente, achei que mais valia submeter-me e engolir a
teoria, engolir os kolkhozes e os sovkhozes (que eram de outro
professor comunista) e despachar-me daquilo. Foi o que fiz.
O Partido Socialista
parecia-me, com Mário Soares e a doutrina do socialismo democrático,
a única oposição responsável ao totalitarismo de Cunhal e dos
militares que não queriam regressar aos quartéis. Estive na Fonte
Luminosa, claro, e assisti ao lento e duríssimo processo da
democratização de Portugal. Os comunistas eram o que tinham sido
sempre, intratáveis e muito pragmáticos. Quem não era por eles era
contra eles. Nunca entrevistei Cunhal até ao fim da vida dele porque
sempre recusei mostrar-lhe a entrevista para ele editar à vontade.
Não iria à Soeiro Pereira Gomes. Um dia, consegui negociar. Iria à
Soeiro Pereira Gomes, mas editaríamos o texto juntos. No que eu não
concordasse, não passaria a emenda. Cunhal aceitou, e a conversa
resvalou para Shakespeare e o “Rei Lear”, que ele queria traduzir
(acabar de traduzir). Não emendou nada da entrevista. Álvaro
Cunhal, com perto de 80 anos, tinha adoçado e era uma figura
intelectual respeitável que eu respeitava muito. Já não era o
inimigo. Havia uma diferença entre conversarmos sobre Shakespeare —
o “Rei Lear” é a minha peça favorita e era a dele, um tratado
sobre o poder e a partilha do poder — e ter o doutor Cunhal a
mandar na minha vida. Na verdade, anos antes, o doutor Cunhal quisera
fazer de Portugal a jangada de pedra do estalinismo europeu. Uma
espécie de little Bulgária. Do PCP tinham entretanto saído muitos
dissidentes, enquistados com a ausência de democracia
intrapartidária. Muitos desses dissidentes eram ou tinham sido
comunistas ortodoxos, dos que aplaudiram de pé a entrada dos tanques
do Pacto de Varsóvia em Praga. Eu estava, sempre estive e estarei
com os dissidentes checos, com Václav Havel e com a democracia.
Em Portugal, o PCP
sufocou todos os desvios à sua norma ou absorveu toda a contestação
não emanada das suas instâncias representativas da massa. Da massa,
sim, não da cultura de massas. Por um lado, o PCP tinha a tradição
da clandestinidade e da coragem na clandestinidade e não admitia
dissidências desta tradição. Julgava-se o único detentor da
verdade contestatária (como se tinha julgado na Faculdade de Direito
o único autor das greves estudantis). Por outro lado, a cultura de
massas assente no individualismo era-lhe profundamente estranha. No
meio literário português dominava largamente, não apenas através
das instituições que controlava (da APE à SPA) como através dos
compagnons de route sem filiação na extrema-esquerda radical e sem
movimentos adequados à sua representação. O papão da direita e um
esquerdismo social unia esta gente. Mais um certo aggiornamento
chique que, pensavam erradamente, o PCP lhes conferia. A Festa do
“Avante!” era um dos altares desta missa. O PCP pode ter muitos
defeitos, mas nunca foi um partido estúpido, embora tenha sido
apanhado desprevenido com a queda do Muro de Berlim. Quem não foi? O
PCP olhou para Gorbachev primeiro com ódio e depois com
incredulidade. O império soviético desmoronava-se. Os que
acreditaram numa mudança de mentalidades dentro do PCP depressa
foram expelidos ou condenados pela inquisição do partido. O PCP não
mudara. O mundo mudara sem ele.
A atitude
intelectual totalitária que caracteriza o PCP deixou como legado a
anemia intelectual portuguesa. O neorrealismo deixou de ser
dominante, mas não chegou a ser substituído por movimentos
herdeiros da modernidade e do modernismo. Nem por um esboço de
pós-modernismo importado de Paris. Esta é a nossa tradição. Os
grandes intelectuais portugueses sentiram-se sempre exilados dentro
do seu país, como Fernando Pessoa e Alexandre O’Neill, ou exilados
reais, como Jorge de Sena. Ou como Eduardo Lourenço, que sofreu a
ansiedade da separação. E havia os açorianos, uma casta especial
de solipsistas, de Vitorino Nemésio a Natália Correia. São, todos,
navegadores solitários. Pessoa teve a sorte de ter tido a geração
de Orpheu a fazer-lhe companhia.
Basta ir a Londres e
à Tate Modern, e visitar a exposição “The World Goes Pop”,
para ver como Portugal não consta desta revolução. É a única
ditadura ocidental dos anos 60 e 70 que não teve representantes e
cultores pop. Não teve movimento pop. Não teve a anarquia pop. O
protesto pop. A arte pop. O Brasil teve, a Argentina teve, o México
teve, a Espanha teve, o Chile teve. Portugal não teve. Devemos isto
ao PCP e à hegemonia do PCP num país pequeno e sem mercado de
ideias, vinculado ao Estado e aos ditames e subsídios e cargos do
Estado. A única escritora portuguesa que verdadeiramente escapou a
esta hegemonia foi Agustina Bessa-Luís, e por isso ela permanece o
ícone intelectual da direita (da nova direita) e por ela é exaltada
e venerada. Agustina era o triunfo do individualismo desde que
decidira escrever “A Sibila”. Agustina detestava os comunistas,
não por serem comunistas mas por não serem livres. Tive com ela
esta discussão e sei que as palavras de Agustina eram diferentes das
palavras de todos os outros escritores, incluindo os liberais
cosmopolitas que estavam próximos do PS, como Sophia de Mello
Breyner ou David Mourão-Ferreira. Agustina não é, não era, nunca
foi de esquerda. Nunca precisou de uma moral de esquerda, tal como
esse lúcido libertário chamado Mário Cesariny de Vasconcelos.
Para a nomenclatura
do PCP, ser de esquerda era mais benéfico do que ser comunista,
quando se tratava de escritores. Controlando as instituições, o PCP
resistia a dar prémios literários a José Saramago. Porquê?
Dava-os aos outros e não a ele. Deu a José Cardoso Pires e a Paulo
Castilho ou Mário Cláudio. Nunca deu a “Memorial do Convento” e
a “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Porquê?
Assente-se que
Álvaro Cunhal não gostava de Saramago. Nem pessoalmente nem
literariamente. Cunhal era um esteta, um romancista falhado, e nem no
estilo nem na receção crítica do estilo, relacionados com a pureza
do neorrealismo, podia identificar-se com a retórica do
escritor-estrela dos comunistas. Saramago era um maneirista inspirado
pelo padre António Vieira e o Século de Ouro espanhol, e mais
depressa apanhariam Cunhal a aplaudir a subversão existencialista de
um Albert Camus do que um missionário jesuíta do século XVII.
Saramago era um escolástico, e Cunhal abominava a escolástica.
Ninguém reparou nisto. Foram mais rivais do que Eça e Camilo foram.
E o PCP nunca gostou de estrelas.
E a direita? A
direita portuguesa foi sempre preguiçosa e tendencialmente
analfabeta. Quando digo a direita, digo o capital, os capitalistas
portugueses. Simbolicamente gordos e anafados como nas caricaturas de
Vilhena, nutriam pelos socialismos e pela social-democracia um ódio
rancoroso e viviam no passado. Sá Carneiro foi tolerado por eles,
não foi amado. Até nascer o novo capital, o das novas empresas e
grupos e dos novos assalariados de luxo do novo capitalismo
português, a direita era uma caricatura sem ideologia com uma ou
duas figuras excecionais na indústria, como António Champalimaud.
Ficara presa à nostalgia do antigo regime, sem particular
engrandecimento da memória imperial, às vezes por ignorância, e a
uma postura cívica sem mestre intelectual. Os raros ativistas
letrados e revolucionários desta direita sentiam-se órfãos. Como
dizia um deles, a direita portuguesa era do género: vão andando que
depois vou lá ter. Os outros converteram-se e decidiram trabalhar
com quem estivesse no poder. Nascia gente na banca e nas empresas,
produto da democracia e da pequena burguesia dos partidos, que não
se revia na direita mumificada. Esta ficou à espera de D. Sebastião
e chegou a ver nos traços endurecidos de Aníbal Cavaco Silva, um
membro do povo que tinha tudo para lhes ser estranho, a face do
salvador. Como vira em Salazar.
Neste ambiente, PCP
e PS dominaram tudo. Dominaram a literatura, dominaram a música, o
teatro, o cinema, a fotografia, as artes, o jornalismo, a crítica,
tudo. Foi preciso esperar pela agonia do século XX para esta
dominação se atenuar. A revolução tecnológica capitalista
pôs-lhe cobro de vez.
No século XXI,
amigos meus que tinham sido comunistas desde crianças, como Miguel
Portas, confessavam a sua desilusão com o comunismo e a crença numa
nova esquerda. O que Miguel Portas fez, e só fez, foi tentar
experiências de esquerda que escapassem à ditadura intelectual
comunista. Revistas, jornais, intervenções, plataformas e,
finalmente, a criação do Bloco de Esquerda. Pressagiei que as
alianças entre estes esquerdistas ilustrados e estrangeirados e os
radicais da extrema-esquerda e de partidos como a UDP não seria um
casamento feliz. Não foi. As tensões dentro do Bloco desaguaram nas
dissidências do Bloco. Assisti a isto mais ou menos por dentro e
discuti isto muitas vezes. O Bloco era importante para as causas
ditas fraturantes, porque o PCP era um partido ferozmente conservador
e antirrevolucionário nos costumes. Tendo criado a sua moral, a sua
igreja e a sua liturgia, o PCP nunca transigia. Era nisso simétrico
da direita reacionária. A aliança tática entre PS e Bloco permitiu
“desbloquear” certa legislação que andava pendurada há anos na
boa consciência de católicos e de direitistas.
O contributo de
forças como o PCP e o Bloco para a democracia portuguesa é
importante, apesar destes desníveis. Mas só é importante por ter
sido enquadrado e travado pelo socialismo democrático dos
socialistas e a social-democracia dos sociais-democratas.
Tal como o PSD, o PS
tem sofrido um desgaste e uma desvalorização intelectual
preocupantes. O PS de homens como António Arnaut ou Mário Soares já
não existe. Nem sequer existe o PS de António Guterres. O PS de
hoje divide-se entre os socratistas, com tudo o que de nefasto essa
denominação representa, os oportunistas e os apoiantes de qualquer
chefe que conduza ao poder um grupo de gente que sabe que o partido
precisa de lançar mão do aparelho de Estado para sobreviver
politicamente. Junte-se ao caldo meia dúzia de jovens idealistas sem
maturidade. À direita, o “ideologismo” (chamar-lhe ideologia
seria um manifesto exagero) pseudoneoliberal de Passos Coelho e dos
videirinhos amestrados, de que Relvas é a caricatura apurada,
forneceu a uma gente desavinda pela História o último pretexto para
a união.
Uma união que nunca
se consumaria. O PS não é coletivista. Não foi. Não será. É um
velho partido de católicos e de maçons que se sente ameaçado e
está a jogar póquer fechado com altas paradas. E a direita de
Passos perdeu esta jogada, num espanto emudecido que não provocou um
texto, um pretexto, um protesto. A direita portuguesa continua a
dizer: vai andando que já lá vou ter. Deixou a contestação aos
jornalistas e articulistas que julga protetores do statu quo. Esta
nova aliança das esquerdas descambará em novas direitas,
seguramente.
A destruição do
centro, à esquerda, e a insensatez de quem nos tem governado, à
direita, tornaram o combate ideológico um combate tribal, como o
futebol. Um combate onde não vingam a inteligência e a ilustração.
Muito menos a memória. Não é preciso invocar a Europa e a sua
putativa falência, ou o diktat de Bruxelas, para concluir que o PS
abriu a boceta de Pandora. Convencidos de que os comunistas mudaram,
os socialistas serão, como recusaram historicamente ser,
chantageados por um partido que joga aqui a sua derradeira cartada da
História. O comunismo acabou em toda a parte, mas não aqui, não
aqui. E não acabou aqui porque a desigualdade e a pobreza que a
direita exalta em Portugal como regra de vida comum, como modo
operativo de um capitalismo egoísta, autodidata e desmembrado, são
a bandeira do PCP. São o seu eleitorado. Juntem-lhe os funcionários
públicos num país envelhecido onde todos dependem do Estado, da
banca aos artistas, e temos a explicação do anacronismo chamado
Partido Comunista Português. Tal como o capital, o trabalho sabe
defender-se.
O Partido Socialista
meteu-se nesta querela sem ter trunfos na manga. Perdeu as eleições,
e isso faz toda a diferença na potestade. O PS não tem sobre o PCP
e o BE um direito potestativo. São eles que o têm, e exigirão a
submissão. Não sei como sairá disto. Sei que das duas uma. Ou
António Costa é um génio político e submete os parceiros à sua
imponderável vontade ou caminhamos para a mais grave crise de regime
depois do 25 de Abril. E, talvez, para o fim do regime saído do 25
de Abril.
Quanto a mim, sou o
que sempre fui. Portuguesa e anticomunista, obrigada. Nisso, não
mudei.
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