O
Trump de falinhas mansas é o mais perigoso
Com
Trump a tentar adormecer-nos e os líderes europeus a não quererem
acordar-nos, é a próxima crise que me inquieta.
Rui Tavares
3 de Março de 2017,
7:06
https://www.publico.pt/2017/03/03/mundo/noticia/o-trump-de-falinhas-mansas-e-o-mais-perigoso-1763839
Houve dois discursos
importantes esta semana, e nenhum me deixou mais tranquilo.
Numa encenação
cuidada e noticiada à exaustão, Trump foi ao Congresso e fez tudo
aquilo de que os media e o público americano gostam: ler tudo a
partir do teleponto, dar tempo aos aplausos no fim das frases e parar
a meio do discurso para uma homenagem patriótica a um veterano de
guerra. De repente, o mundo parecia ter entrado de novo nos carris.
Os comentadores já podiam proclamar à vontade que o Presidente era
um homem de estado, que Trump era capaz de aprender a comportar-se e
que, se lhe ao menos lhe déssemos uma hipótese, talvez ele fosse
capaz de mudar.
Só que, como é
evidente, este não é um Trump mudado. Nem esta foi a primeira vez
que o agora Presidente dos EUA decidiu disciplinar-se por razões
táticas. O mesmo aconteceu em pelo menos duas fases diferentes no
passado recente — após a sua vitória nas primárias republicanas
e no último terço da sua campanha eleitoral. Estas mudanças de
velocidade não correspondem a mudanças de personalidade. Quando se
sentiu sob ataque, Trump voltou a fazer campanha para os seus fiéis,
perante os quais usou toda a sua retórica vociferante e paranóica.
Depois de escorado nesse apoio da sua base, dirigiu-se ao Congresso e
ao mundo para, como bom sedutor que é, tirar o máximo proveito de
um breve momento de falinhas mansas. A sua personalidade bastante
inteligente e altamente manipuladora tem perfeita consciência de
quando pode avançar e quando deve parar.
E é nestes momentos
— em que tenta descansar alguns dos seus aliados e hipnotizar as
suas vítimas — que Trump é mais perigoso.
Isto leva-nos ao
segundo discurso, pronunciado pelo presidente da Comissão Europeia,
Jean-Claude Juncker, perante o Parlamento Europeu reunido no seu
hemiciclo de Bruxelas, para apresentar um Livro Branco sobre o futuro
da Europa até 2025. Não costumando ser reconhecido por isso,
Juncker é também um bom taticista. Sabendo que poderia sempre ser
criticado por ter uma visão do futuro da Europa que fosse demasiado
modesta ou demasiado ambiciosa, decidiu-se por apresentar cinco
cenários diferentes para o futuro da Europa.
A opção foi
inteligente. Assim, perante qualquer interlocutor, Juncker pode
sempre dizer: “esta é a minha visão para a Europa; se não
gostar, tenho mais quatro diferentes”.
O único cenário
que ele recusou no seu discurso foi o de a União Europeia se remeter
a ser apenas um mercado único. O grande problema, quando se lê o
Livro Branco da Comissão Europeia, é que não se consegue escapar à
sensação de que os cinco cenários propostos são na verdade cinco
versões de um mercado mais ou menos integrado. Não há nada sobre a
Carta Europeia dos Direitos Fundamentais e a sua aplicação na ordem
interna dos estados-membros. Nada sobre democratização da UE. Nada
sobre a defesa do estado de direito no interior da União. E
relativamente pouco sobre o papel global da Europa. O Livro Branco é
um exercício interessante para a era pré-Trump num momento em que
os europeus não podem confiar em Trump.
Ora, a União
Europeia deve habituar-se à ideia de que a eleição de Trump já
mudou o mundo de uma forma tão radical que agora existem quatro
atores globais essenciais, de que — com os EUA, a China e Rússia —
a UE faz parte. Perante essa nova realidade é bastante inútil
ficar, como de costume, a discutir a resolução da última crise que
passou.
Com Trump a tentar
adormecer-nos e os líderes europeus a não quererem acordar-nos, é
a próxima crise que me inquieta.
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