NUNO PACHECO
OPINIÃO
O
disparate é livre, mas para quê abusar?
Terá
Canavilhas reparado que Portugal é um país soberano há séculos?
Por favor: antes de falar, leia. Leia muito. Informe-se.
9 de Março de 2017,
7:30
Uma nota prévia:
pessoalmente, nada me move contra Gabriela Canavilhas.
Cumprimentamo-nos cordialmente. Mas quando ela fala, ou escreve,
sobre o Acordo Ortográfico (AO), e ainda por cima o faz em nome do
PS, raia o inominável. Vejamos então o que a ex-ministra escreveu
na edição de 17 de Fevereiro do Acção Socialista (assim mesmo,
com a temível consoante muda intacta em "aCção"). "Sendo
a língua uma expressão de tradições, de criatividade e de
inovação, é natural que haja palavras diferentes em todos os
países lusófonos para designar coisas iguais. E ainda bem. Por isso
o Português é tão rico. Mas a divergência da grafia — a questão
ortográfica — precisa, na minha opinião, de ser controlada por
determinação política, sob pena de uma fragmentação irreversível
do português." Precisa de ser controlada? Ela explica como: "O
PS confia nas instituições académicas, às quais compete dar corpo
científico às determinações políticas."
Mas como dar corpo a
decisões de gente que neste caso raramente sabe do que fala? É bom
lembrar que o PS, em matéria de ortografia, sendo hoje impenetrável
a qualquer decisão racional, votou dividido em 4 de Junho de 1991,
quando a proposta de resolução que aprovou o AO (sem sequer o
discutir) foi submetida ao plenário da Assembleia da República.
Canavilhas acusa, no seu texto, o PSD de falta de memória por andar
a pôr em causa o AO, mas o PS também anda bastante desmemoriado.
Porque, nesse dito dia, 16 deputados seus votaram contra o AO, ao
lado dos deputados independentes Helena Roseta, Jorge Lemos e José
Magalhães, tendo votado a favor o PSD, o CDS, o PRD e 12 deputados
do PS (número inferior ao dos que votaram contra). O PCP absteve-se.
O que se passa, hoje, é que muitos dos que abriram os braços
cegamente ao AO já conseguem olhar para ele e para os seus efeitos
com frieza. Daí as críticas, as sugestões de alteração — ou
até a rejeição pura e simples, que muita gente ainda mantém
convictamente.
Mas julgam que isso
escapa a Canavilhas? De modo algum! "O PS defende o
fortalecimento da Língua Portuguesa para lhe proporcionar maior
valor económico, garantindo a sua unidade cultural essencial",
escreve. Isto, que não quer dizer absolutamente nada e já é
ridículo repetir, vem com um bónus: "O texto do Acordo prevê
a elaboração de um Vocabulário Ortográfico Comum. A versão final
será apresentada, finalmente, no próximo mês de maio [sic]."
Erro crasso no tempo verbal. Não prevê, previa; desde 1990. E sabem
para quando? 1 de Janeiro de 1993! Passaram muitos anos e inúmeras
asneiras, sem que os responsáveis por tal dislate corassem de
vergonha. Podiam aprender com o recém-aniversariante PÚBLICO (27
anos), que falhou a saída a 2 de Janeiro de 1990 e não anunciou
nova data até estar certo de que não falharia outra vez. Mas ao
menos façam-nos um favor: calem-se com datas. Têm-nas errado à
exaustão, e anedoticamente!
Voltemos ao início:
"a questão ortográfica precisa de ser controlada por
determinação política". Ora vejam algumas pérolas que tal
"determinação" incentivou: "pato de estabilidade",
"fato", "fatual", "fatualmente",
"frição", "fricional", "fricionar",
"inteleto", "inteletual", "latose",
"otogenária", "setuagenários", "espetável",
"espetadores", "contatos", "conceção [do
visto]", "conceção [da autorização]", etc. Há
mais. Muito mais. A colheita, abundante e diária, é dos Tradutores
contra o Acordo Ortográfico e tem todas as fontes e datas
assinaladas, que vão do Governo a jornais, câmaras, empresas,
universidades, fundações. Um delírio geral. Mas não há problema.
Os políticos tratam de tudo, não é? Não podem é mudar nada.
Canavilhas avisou, solene, na rádio (Antena 2): “O Governo
brasileiro está solidamente comprometido com o acordo ortográfico,
não cogita promover retrocessos e não admite a reabertura de
negociações sobre o seu texto.” (E citou o embaixador do Brasil,
Mário Vilalva.) O Brasil não admite, ouviram?! Terá Canavilhas
reparado que Portugal é um país soberano há séculos? Por favor:
antes de falar, leia. Leia muito. Informe-se. O disparate é livre,
mas em excesso cansa. Esgota-nos a paciência.
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