Portugal
arrisca tragédia com sismos: "Governos sabem que vai morrer
gente e não fazem nada"
Portugal
vai sofrer um sismo e não está preparado para isso. Em entrevista à
RTP, o investigador Mário Lopes denuncia a falta de fiscalização
nas construções novas e na forma como os edifícios antigos estão
a ser reabilitados. “São baralhos de cartas”, garante,
criticando os sucessivos governos que põem “o mercado imobiliário
antes da vida das pessoas”.
Christopher Marques,
Nuno Patrício - RTP 02 Mar, 2017, 08:00 / atualizado em 03 Mar,
2017, 10:27 | País
Não se sabe quando,
não se sabe com que intensidade, nem exatamente com que
consequências. Mas há uma certeza: “A sorte não dura para
sempre” e Portugal será afetado por um sismo que poderá ter
consequências trágicas.
O alerta é deixado
por Mário Lopes, investigador do Instituto Superior Técnico, em
entrevista à RTP. O especialista em engenharia sísmica vê com
preocupação os estragos que um terramoto poderá provocar em
Portugal, nomeadamente em Lisboa.
O receio de um
fenómeno como o que destruiu Lisboa em 1755 existe, mas não terá
de ser tão forte para provocar danos consideráveis e causar dezenas
de milhares de vítimas mortais, alerta o especialista.
Mário Lopes
considera que o respeito pelo atual regulamento o deixaria já
descansado, mas avisa que não há fiscalização eficiente para
certificar que é aplicado. “Só trabalha bem quem tem consciência
e competência para o fazer. Se não tem pode aldrabar o projeto que
não há consequências nenhumas até vir o sismo”, sublinha.
"As obras
continuam a ser feitas sem reforço sísmico nos edifícios antigos
para poupar dinheiro. Nitidamente estimular a reabilitação urbana,
mesmo que seja mal feita e seja só um peeling aos edifícios, pondo
em risco a vida das pessoas. Isto é feito deliberadamente".
Mas não é quanto à
construção nova que recaem as principais preocupações. É nos
edifícios antigos e naqueles que estão a ser reabilitados.
Mário Lopes
denuncia que a legislação aprovada durante a intervenção da
troika estipula que a reabilitação de uma obra não precisa de ter
em conta a legislação posterior à construção original.
“Para qualquer
edifício cuja construção original seja anterior a 1958, como a
legislação tinha grau zero de exigência de proteção sísmica,
pode continuar a ser zero”, denuncia.
O investigador
denuncia por isso que está a ser feito “um peeling” a muitos
edifícios, que “ficam bonitos” mas sem “condições mínimas
de segurança”.
“São baralhos de
cartas. Não precisam de um sismo como o de 1755 para caírem”,
afirma. A política não é nova, na opinião de Mário Lopes: põe-se
“o mercado imobiliário antes da vida das pessoas”.
“Os Governos sabem
o que estão a fazer e sabem que vai morrer gente por causa disso”,
garante. “Falam connosco, dão-nos razão. Cinco minutos depois
atiram tudo para o caixote do lixo”, garante o homem que presidiu
até 2013 à Sociedade Portuguesa de Engenharia Sísmica.
O investigador do
Instituto Superior Técnico tem uma explicação simples: “Não
traz votos”. Mas nota que há exceções. “A Assembleia da
República foi reforçada porque foi dito aos deputados que a parede
da sala das sessões lhes caía em cima”, afirma. Mas ficou-se por
aí.
"Os sismos têm
sido noutros sítios. As últimas grandes catástrofes têm estado
afastadas daqui. Mas temos a certeza absoluta que a sorte não dura
para sempre
“É uma atitude
egoísta. É primeiro tratamos da nossa pele com o dinheiro dos
outros, o povo português que se dane”, acusa.
Depois de anos e
anos a lançar alertas ao poder político, Mário Lopes perdeu a
esperança que algo mude em relação aos riscos e que haja ação
por parte do poder político.
Não deixa de
transmitir conhecimento aos alunos do Técnico e de alertar para as
medidas que cada um de nós pode tomar para evitar problemas maiores.
“A única coisa
que podemos fazer é falar diretamente com as pessoas e ajudá-las a
protegerem-se a si próprias”, explica. É esse o objetivo do
projeto KnowRisk, que visa ajudar adultos e crianças a identificar
os riscos e a incentivá-las a tomar medidas para reduzi-los, como
explicou Mário Lopes na entrevista à RTP.
Um estudo do LNEC de
2006 estima que um sismo como o de 1755 possa provocar mais de 17 mil
mortos. O cenário é hoje melhor ou pior do que em 2006?
Não mudou muito.
Não pode mudar muito porque o parque construído pouco variou. A
tendência é melhorar ligeiramente porque algumas construções
antigas com menos resistência vão sendo demolidas, deixam de ser
utilizadas ou caem e vão sendo feitas construções novas que, em
média, são melhores. Mas isto é uma variação lenta.
A melhoria do parque
se calhar é melhor do que o grau de incerteza do próprio estudo que
apontava para 17 a 27 mil mortes. O parque construído está um
bocadinho melhor, se calhar hoje não eram 17 a 27 mil, eram 15 mil a
26 mil ou assim.
Em dez anos não se
evoluiu muito em termos de construção?
Não, não. O que
digo é que as construções que estavam cá em 2006 continuam cá.
São quase todas as mesmas. Houve algumas novas e houve algumas que
foram demolidas. As novas que foram construídas, em princípio, são
melhores do que as que foram inutilizadas, mas são uma parte pequena
do parque construído. Portanto, a variação não é muito grande,
logo os números continuam atuais.
Quando é que pode
acontecer um sismo como o de 1755?
É aquela pergunta à
qual a ciência não consegue responder porque a previsão sísmica
não se consegue fazer em geral. Os sismos têm origem na crosta
terrestre e a crosta é um material extremamente frágil que, em
geral, não dá sinal antes da rutura. Só há um caso na história
em que foi previsto um sismo, evacuada uma cidade e salvas as vidas a
milhares de pessoas.
Nós podemos ter
sismos como o de 1755 ou podemos ter outros não tão fortes. Se
considerarmos sismos com um potencial destrutivo mas inferior ao de
1755, diria que estarmos mais do que umas décadas sem acontecer nada
é sorte. É bem provável que nas próximas décadas possa haver
algum sismo que cause centenas ou milhares de mortes.
Um sismo como o de
1755 tem um período de retorno que se pensa ser de algumas centenas
de anos. Podemos ter a sorte de o próximo não ser tão forte, que é
a situação mais provável.
Mas a situação
pode ser tão má ou pior do que em 1755 porque as zonas com maior
potencial para ocorrência de sismo – Lisboa, Vale do Tejo, Costa
Alentejana e Algarve – têm muito mais população do que tinham em
1755. Um sismo mesmo que inferior pode em termos absolutos causar um
número de mortes semelhante. Não é preciso um sismo como o de 1755
para termos aqui dez ou 20 mil mortes.
O último grande
sismo que tivemos em Portugal foi em 1969…
Sim, mas o sismo de
1969 foi fraquinho. Em termos das acelerações que se sentiram em
Lisboa, o sismo de 1969 foi cerca de dez por cento da capacidade de
resistência dos edifícios prevista pela regulamentação atual.
Aquilo, como sismo, foi um aperitivo. Foi só para nos lembrarmos que
há aqui sismos.
Agora, foi
assustador. Vivi esse sismo, tinha nove anos, a cama andava de um
lado para o outro, os pratos caíam dos armários, as pessoas estavam
cheias de medo, vínhamos para a rua em roupa interior. Fui passar a
noite ao aeroporto num carro. Foi um pânico grande mas aquilo não
foi nada comparado com o que pode vir aí. Foi só para nos
lembrarmos que às vezes há aqui sismos.
Depois há uma
questão que é: mesmo um sismo que não seja muito forte pode causar
muitos danos; mesmo que um prédio não caia, pode haver danos nas
paredes e há todo o tipo de danos não estruturais.
É disso que trata o
projeto do KnowRisk, tem muito a ver com evitar os danos dentro das
casas porque o processo de cálculo dos edifícios tem como objetivo
evitar que eles colapsem, mas não evitar que vibrem. Portanto, como
vibram, tudo o que está dentro das casas pode cair e pode haver
danos associados a isto. Basta um sismo mediano que já temos muito
dano económico e muita gente ferida.
Os portugueses estão
preparados para um sismo?
Há de tudo. Se
tomarmos como exemplo Lisboa, o primeiro problema é que o primeiro
regulamento que obriga a fazer o cálculo sísmico data de 1958. Ou
seja, o que foi construído antes de 1960 não foi calculado para
resistir a sismos. Em Lisboa são os edifícios onde vivem 40 por
cento da população.
Depois, em relação
à construção nova, temos regulamentos mas a verificação da
aplicação da regulamentação não é feita. Não há fiscalização
e, portanto, há de tudo.
Quer dizer que a
regulamentação é boa mas não há certeza de que esteja a ser
aplicada?
Sim. De uma forma
genérica, a primeira regulamentação de 1958 ainda é um bocado
embrionária. Foi depois atualizada em 1983, mesmo essa de 1983 já
está obsoleta, mas é uma questão política.
A Comissão Europeia
em 1988 começou a desenvolver regulamentos para aplicar na Europa.
Como havia um para as zonas sísmicas, Portugal optou por pôr todo o
esforço nesse e não fez um regulamento novo.
Mas desde a primeira
versão deste regulamento já vão quase 30 anos. O nosso regulamento
está desatualizado. Os gregos e os italianos atualizaram os deles
com base no regulamento europeu e nós continuamos a trabalhar com o
antigo. Mesmo assim, se seguíssemos esse regulamento era ótimo. Já
as nossas construções teriam um bom nível de segurança.
O regulamento que
esteve em vigor entre 1958 e 1983 representa uma melhoria muito
significativa mas ainda seria preferível que fosse melhor.
Agora, teoricamente,
todos estes edifícios têm um nível de resistência razoável. Os
atuais, se fossem bem feitos, teriam um nível de resistência ótimo.
Se eu vivesse num edifício construído na atualidade, bem feito, eu
teria muito mais medo de morrer atropelado ou num acidente de
automóvel do que num sismo.
O problema é que
como não há fiscalização da construção e os sismos ocorrem com
grandes espaçamentos temporais, qualquer pessoa que trabalhe no
projeto ou na construção sabe que se fizer um edifício bem feito
vende-o pelo mesmo preço que um mal feito.
Não havendo
fiscalização, em princípio ninguém é apanhado. Essa impunidade
faz com que só trabalhe bem quem tem consciência e competência
para o fazer. Se não tem pode aldrabar o projeto que não há
consequências nenhumas até vir o sismo.
A consequência é
que nós temos de tudo: construções boas de primeiro mundo e, ao
lado, podemos ter um edifício igual, mas que é um baralho de cartas
que se desfaz com o primeiro abanão.
Este não é o
primeiro aviso que deixa. Porque não há fiscalização?
Não sei porque não
há fiscalização mas sei que não é fácil fazer fiscalização
eficiente. Não se trata de fazer uma lei a dizer que as câmaras
agora têm de aprovar os projetos de estrutura. Se as autarquias não
tiverem meios para fiscalizar, você pode fazer as leis que quiser
que aquilo não funciona. No limite podemos ter o inconveniente de
uma fiscalização ineficiente apenas gerar corrupção. Ou seja quem
quer aprovar um projeto tem de pagar para o ver aprovado.
Portanto, o problema
não é arranjar uma fiscalização. É arranjar uma fiscalização
que funcione e que atinja o fim que se pretenda. Não é fácil. A
Sociedade Portuguesa de Engenharia Sísmica tinha feito duas
propostas nesse sentido. Eu acho que era preciso debater o problema
com os agentes da construção, tentar otimizar essas propostas ou
outras alternativas e depois avançar. Mas digo-lhe já que não há
aqui nenhuma solução miraculosa que resolva tudo como deve ser.
Todas elas têm vantagens e inconvenientes.
Nós tínhamos
apresentado uma proposta ligada aos seguros. As companhias de seguros
têm interesse em segurar coisas que não têm risco. Nós também
gostávamos de viver em casas com muito pouco risco, visto que sem
risco não existe. Se as companhias fizessem seguros em que a
componente do risco sísmico fosse proporcional ao risco real das
construções, através dos seguros as pessoas apercebiam-se do risco
da sua construção e isso ia influenciar o mercado para valorizar as
melhores.
Mas a primeira vez
que a comunidade técnica discutiu isto com um governo, a primeira
coisa que disseram foi: estejam calados, não digam nada a ninguém
porque senão as construções piores são desvalorizadas. Esse
deveria ser mesmo o objetivo da política. Pôs se o mercado
imobiliário antes da salvaguarda da vida das pessoas. Essa política
ainda não se alterou.
Continua a pôr-se o
mercado imobiliário à frente da vida das pessoas?
Obviamente.
Claramente. A legislação sobre reabilitação urbana é exatamente
o reflexo disto. Quando a legislação foi discutida em 2012 e se
abriram exceções ao regime jurídico da reabilitação urbana,
fomos ouvidos pela Assembleia da República e propusemos que o
reforço sísmico passasse a ser obrigatório em obras a partir de um
certo valor ou de uma certa dimensão.
O Governo rejeitou
isso. As obras continuam a ser feitas sem reforço sísmico nos
edifícios antigos para poupar dinheiro. Nitidamente estimular a
reabilitação urbana, mesmo que seja mal feita e seja só um peeling
aos edifícios, pondo em risco a vida das pessoas. Isto é feito
deliberadamente. Os governos sabem o que estão a fazer e sabem que
vai morrer gente por causa disso. E fazem-no.
A lei 32/2012 diz
muito claramente que numa obra de reabilitação urbana não é
preciso respeitar a legislação posterior à construção original.
Para qualquer edifício cuja construção original seja anterior a
1958, como a legislação tinha grau zero de exigência de proteção
sísmica, pode continuar a ser zero.
Os edifícios têm
muito pouca resistência, são reabilitados, ficam bonitos, põe-se
lá gente, sabendo nós que não têm condições mínimas de
segurança. Os governos sabem e fazem isso deliberadamente. Grande
parte destes edifícios são baralhos de cartas. Não precisam de um
sismo como o de 1755 para caírem.
Quando faz estes
alertas qual a resposta que recebe do poder político?
Normalmente, quando
falam connosco, dão-nos razão e dizem para continuarmos o trabalho.
Cinco minutos depois atiram tudo o que dissemos e a documentação
para o caixote do lixo porque começam a pensar quantos votos é que
isto lhes dá. Como não traz votos, esquecem.
O tema do risco
sísmico não traz votos?
Pelo menos até
agora não tem trazido. Talvez venha a mudar no futuro, mas por
enquanto ainda não. Se traz são poucos, não os suficientes para
convencer algum político a gastar tempo ou recursos do país com
esta matéria.
Repare, isto foi
ostensivo no Governo do doutor Pedro Passos Coelho mas com o
engenheiro Sócrates também transmitidos a informação toda e a
resposta foi rigorosamente a mesma. Não há qualquer diferença.
Aliás passaram já
imensos governos desde que começaram a alertar para estas situações.
Sim. Começámos
ainda com o engenheiro Guterres. Enviámos a metade dos membros do
Governo e a ele uma série de documentação. Quando saiu do Governo,
o engenheiro Guterres veio dar aulas para o Técnico. Pedimos para
falar com ele.
Mostrámos-lhe a
publicação mais importante que lhe tínhamos enviado e ele nunca a
tinha visto. Não posso jurar, mas tenho quase a certeza que ele
estava a ser sincero. Ou seja, a informação foi-lhe enviada e nem
sequer passou do gabinete.
Foi enviada a todos
os grupos parlamentares e aos líderes de todos os partidos. Creio
que poucos terão lido, se é que algum leu, alguma das coisas que
lhes enviámos por causa da tal questão: não dá votos e portanto
põe-se ali na prateleira.
No entanto, ficámos
com esperança que as coisas mudassem em 2003 e 2004. Falámos com
todos os grupos parlamentares e depois com a Comissão de Obras
Públicas. A deputada Judite Jorge do PSD Açores interessou-se muito
por isto e, em conjunto com outros deputados do PSD e do CDS-PP, fez
um projeto de resolução em que recomendavam ao Governo políticas
para alterar isto.
Esse projeto entrou
na Assembleia da República em 2004 mas nunca foi votado porque a
legislatura acabou. Na legislatura seguinte aconteceu algo muito
engraçado. Num encontro de ciência e educação no Parlamento,
fiquei numa mesa com o deputado Miguel Tiago do PCP. Ele é geólogo
e, portanto, sabe que isto existe e que eu não estava a inventar
nada.
Interessou-se pelo
problema e fez um novo projeto resolução. Achei imensa piada porque
só mudou o preâmbulo em relação ao do PSD. Isto não é uma
crítica, é um elogio. O problema não é partidário, não é de
esquerda ou de direita. Os sismos não querem saber disso para nada.
Até deveria ser relativamente fácil haver consenso político entre
todos os quadrantes.
Esse novo projeto
demorou dois anos a ser discutido. Entrou na Assembleia em 2006, foi
votado a 3 de abril de 2008 e todos votaram a favor, exceto o PS. O
projeto foi chumbado.
Continuámos a
“chatear” a Assembleia. Em 2010, com o PS já em minoria, foi
aprovado por unanimidade um projeto de resolução em que se
recomendavam várias coisas, entre elas que o reforço sísmico
passasse a ser obrigatório na reabilitação urbana. Foi aprovado
por unanimidade e a sua não aplicação foi feita pelos mesmo que a
aprovaram.
Esta questão já
foi apresentada ao atual Governo?
Não. Eu andei nesta
saga de falar com os políticos 14 anos, sem nunca ter conseguido
resultados palpáveis, a não ser uma resolução aprovada no
Parlamento mas que nunca quiseram aplicar. Eu não consigo levar a
Assembleia da República muito a sério por causa disto: aprovam uma
coisa e depois toda a gente faz o contrário.
Em 2013, achei que
devia retirar-me. Saí e deixei de ter aquela atitude militante para
ter uma atitude passiva. Faço o meu trabalho, ensino os alunos,
participo nos projetos de investigação, falo publicamente quando me
convidam. Mas já não vou enviar uma carta ao primeiro-ministro ou
ao Presidente da República. Acho que o dinheiro do selo é um
desperdício. Pelo que se passou no passado, ninguém liga.
Os Açores são
diferentes nesta questão da resistência sísmica?
São bastante
diferentes. Eles têm lá sismos periodicamente. A sensibilidade da
população é diferente e a própria atitude do Governo é
diferente. Há uma coisa que eu não conhecia: o crédito a habitação
nos Açores, quando é para reabilitação, está condicionado ao
reforço sísmico.
Aqui ninguém se
lembra sequer de uma coisa dessas. Mas estar a emprestar dinheiro
para fazer a reabilitação de uma construção que não tem
resistência, sabendo que ela depois pode cair facilmente, até é
arriscado do ponto de vista económico. Pode vir um sismo e destrói
o investimento todo.
Fazer com que um
edifício esteja mais preparado tem um custo assim tão elevado?
Depende. No caso da
construção nova, o custo é tão irrelevante que ninguém dá por
ele. Podemos estar a falar de dois ou três por cento no custo de
construção. Só que, por exemplo em Lisboa, só o custo do terreno
é mais elevado do que o custo de construção.
Na construção
existente já não é assim. Os materiais são os que lá estão, não
são escolhidos. Muitas vezes nesses edifícios, se tiverem pouca
resistência sísmica, pode não ser tão irrisório quanto isso.
Com base nos custos
da Parque Escolar, da reconstrução dos Açores depois do sismo de
1998 e em algumas obras feitas em Lisboa, os valores na maioria dos
casos estão abaixo dos 200 euros por metro quadrado. Em mais de
metade estão abaixo dos 100 euros.
E estamos a proteger
as casas, os conteúdos e a vida das pessoas. Estamos a falar de
gastar dez, 12 ou 15 por cento do bem que estamos a proteger para ter
resistência sísmica.
As pessoas quando
vão viver para uma casa poderiam ter que pensar: será que, se me
pedirem dez ou 12 por cento do valor para eu estar numa casa com
resistência sísmica, vale ou não vale a pena pagar? É evidente
que se não souberem que pode voltar a haver sismos fortes aqui não
vão pagar. Mas se souberem o risco que correm é evidente que vão e
seria um disparate não o fazer.
As pessoas têm
teoricamente a sensação de que um sismo pode ocorrer. Mas na
prática é um risco que não personalizam?
O cidadão comum não
vê praticamente ninguém com responsabilidade – um Presidente da
República, um primeiro-ministro – minimamente preocupado com o
assunto. Portanto, as pessoas até podem acreditar em mim. Mas, para
eles, inconscientemente, o problema não existe porque não veem
ninguém preocupado com isto. As pessoas racionalmente dizem uma
coisa mas depois vão fazer o contrário.
Isto agrava imenso a
situação e não é consciente. Vou dar-lhe um exemplo. Num debate
sobre reabilitação urbana em Lisboa em 2004, perguntei à vereadora
como é que o problema do risco sísmico estava a ser tido em conta.
A resposta foi: “A legislação técnica está a ser aplicada e as
obras são acompanhadas pelos técnicos municipais.
Como a legislação
técnica exige um grau de resistência igual a zero nos edifícios
construídos antes de 1958, significa que estamos a fazer aquilo mal
feito. Sabemos que os edifícios não têm resistência e é tudo
legal. Mas quem ouve aquela resposta fica descansado. Ela não mentiu
mas omitiu que a legislação técnica tem um grau de exigência
nulo.
Isto transmite uma
falsa sensação de segurança. Falsa porque não é verdadeira, mas
as pessoas pensam que é. Estas pessoas não vão tomar qualquer
precaução se comprarem uma casa ou mesmo em casa porque o poder
político lhes mente, os engana e lhes diz que está tudo bem.
O que é que os
cidadãos podem fazer de concreto em casa para estarem mais
protegidos?
O mais importante
pode ser uma vez na vida: quando a pessoa compra casa deve tentar
obter garantias e o conselho de alguém que esteja por dentro do
assunto. Depois quando a pessoa já está na sua casa não consegue
modificar isso.
Agora os edifícios,
mesmo que bem feitos, são calculados para não colapsar mas para
vibrar. Pode haver armários que caiam em cima das pessoas, portas
que abram, pratos e vidros a cair. Há todo um conjunto de riscos em
casa ou no local de trabalho que podem causar danos, ferimentos ou
até a morte. Este tipo de situação já se pode fazer alguma coisa
para diminuir os riscos.
Qual a importância
do projeto KnowRisk nesse sentido?
O KnowRisk é um
programa financiado pela União Europeia que tem como objetivo
principal difundir informação para os cidadãos sobre estas
matérias. Vamos fazer várias coisas, nomeadamente um guia de
procedimentos com um conjunto de instruções para ajudar as pessoas
a identificar os riscos e algumas medidas simples e baratas para
reduzir esses riscos.
Estamos também a
fazer um portefólio que vai ter um conjunto de medidas, mais vasto e
completo. Para algumas medidas é preciso algum conhecimento
profissional.
Outra coisa que
temos feito é alguma intervenção junto da comunicação social
para alertar as pessoas para isto. Pela parte que me toca, já
desisti de alertar os políticos.
Depois de 14 anos a
falar sem resultados, se algum dia acontecer alguma coisa fico muito
satisfeito mas não alimento grandes expetativas. Acho que a única
coisa que podemos fazer é falar diretamente com as pessoas e
ajudá-las a protegerem-se a si próprias.
O KnowRisk vai ao
encontro das crianças. É uma forma de chegar aos adultos?
Também é. As
escolas são sempre uma preocupação porque é onde estão os nossos
filhos e a juventude. A opinião pública é mais sensível à morte
de crianças do que de adultos. Ter alguma atenção às escolas é
importante.
Aquilo que me
preocupa no projeto é que transmitimos bastante informação mas a
poucos alunos. O que eu gostaria era que isto chegasse ao maior
número possível de pessoas para que o guia de procedimentos e o
portefólio pudesse chegar à mão das pessoas e elas tomassem
precauções.
Mas acho que
enquanto as pessoas continuarem, no seu inconsciente, a achar que o
problema não existe porque não veem as autoridades minimamente
preocupadas com o assunto, tenho receio que a mensagem irá cair em
saco roto para muita gente.
Uma das coisas
fundamentais que o poder político deveria fazer era dar o exemplo.
Preocuparem-se com a resistência sísmica dos ministérios, dos
edifícios públicos e essa preocupação não existe.
Se existir são
casos particulares. Por exemplo, a Parque Escolar a partir de certa
altura começou a reforçar as escolas. Mas é uma exceção, não
era a política do Governo. A Parque Escolar acabou, acabaram-se as
obras e a resistência sísmica das escolas já deixou de interessar.
Ninguém está minimamente preocupado com isso neste momento.
Ou seja, nem nos
edifícios públicos há preocupação com o risco sísmico?
Acho que a escola
era a primeira coisa a que se deveria dar atenção, bem como os
hospitais. Os edifícios do Governo também são importantes porque o
país depois de um sismo vai precisar de recuperar e de ter uma
administração pública a funcionar. O Estado nem consigo próprio
se preocupa quanto mais com os cidadãos.
Há umas pequenas
exceções. A Assembleia da República foi reforçada porque foi dito
aos deputados que a parede da sala das sessões lhes caía em cima e
eles aprovaram de urgência o reforço. Mas depois esqueceram-se que
há mais dez milhões de portugueses cá fora e já ninguém quis
saber desses para nada.
É uma contradição?
Não, não é uma
contradição. É uma atitude egoísta. É primeiro tratamos da nossa
pele com o dinheiro dos outros. O povo português que se dane. Quando
houver um sismo diz-se que é um fenómeno da natureza. O que é um
fenómeno da natureza é o sismo propriamente dito. O colapso dos
edifícios não é um fenómeno natural. É preciso que as pessoas se
lembrem disso.
Mas quando isso
acontecer, a única coisa que se vai querer falar é a solidariedade
com as vítimas e vai-se dizer que não é altura de caça às bruxas
que é para ver se as responsabilidades nunca são apuradas. Já se
sabe como é neste país, a culpa morre sempre solteira. Mas os
sismos não matam. O que mata são as construções mal feitas.
Quer dizer que vai
acontecer como na época de Marquês de Pombal: enterrem-se os mortos
e trate-se dos vivos?
Genericamente, é
isto que tem de acontecer. O problema são as proporções. Mesmo com
limitações económicas, se tomássemos as devidas precauções se
calhar tínhamos num sismo forte dez vezes menos estragos e vítimas.
Se tivermos aqui uma catástrofe de grandes dimensões não há
Proteção Civil nenhuma no mundo para isso. Estamos tramados, ponto
final.
É preciso no fundo
evitar uma catástrofe de grandes dimensões. Para isso, é preciso
trabalhar com antecedência. Há quase 20 anos que andamos a dizer
isto sem resultados absolutamente nenhuns. É um bocado frustrante. O
maior contributo que dei na minha para evitar as consequências de
futuros sismos foram os alunos que formei na Universidade. Podíamos
fazer muito mais do que isso mas tudo depende de decisões políticas.
Na reabilitação
urbana, se quisermos melhorar o que se faz precisamos de ter
legislação que estabeleça quais as obras em que tem de ser
aplicada ou não. Não podemos dizer à pessoa que tem uma
infiltração em casa para reforçar o prédio inteiro. Era pior a
emenda do que o soneto, aí é que ninguém fazia reforço sísmico.
Temos de legislar
sobre quais são os objetivos desse reforço sísmico. Deveríamos
ter legislação para proteger o património não vá alguém
lembrar-se de mandar os Jerónimos abaixo por não ter sido
construído para resistir a sismos. Os monumentos são parte da nossa
identidade cultural, hoje em dia a identidade das nações joga-se
muito mais no plano da cultura e economia do que no plano militar.
A preservação do
património é uma coisa muito importante. Nas construções com
grande valor patrimonial tem que se tentar compatibilizar segurança
e preservação dos edifícios. Precisamos de umas recomendações
técnicas para as obras de reabilitação porque o que existe é para
obras novas. Estas recomendações são uma tarefa técnica mas
mandá-las elaborar é uma decisão política porque elas não
aparecem do ar. Sem as decisões políticas de implementar tudo isto,
nada se faz.
Deveria haver mais
simulações de sismos?
Acho que é
importante que periodicamente haja esses exercícios. Servem para
lembrar às pessoas que o problema existe e o que devem fazer quando
ele ocorrer. Mas em Portugal têm sido utilizados para esconder o
problema principal.
Ou seja, quando se
debate os sismos vai se falar da Proteção Civil. A Proteção Civil
só age depois do sismo. Já é tarde demais porque as pessoas morrem
principalmente durante o sismo. Quando a Proteção Civil começa a
atuar, o pior já aconteceu.
Se queremos reduzir
as consequências dos sismos, o mais importante é a prevenção. Só
se fala atualmente do que se faz depois e não do que se faz antes
porque é muito mais incómodo do ponto de vista político. O
principal não está a ser feito.
Temos capacidade
para responder caso haja um grande sismo?
Tudo depende do que
se fizer antes. No estado atual e com um sismo forte, não há
proteção civil nenhuma no mundo que nos valha. A dimensão da
catástrofe é tal que a diferença entre meios disponíveis e
necessários é abissal e não há hipótese.
Mesmo tomando
precauções, nunca vamos conseguir reforçar os edifícios todos e
evitar que haja feridos dentro de casa. O risco zero não existe,
mesmo coisas bem-feitas podem colapsar porque houve um azar muito
grande. Vamos precisar sempre da Proteção Civil. Agora, para que os
meios sejam compatíveis com a realidade, temos de tomar muitas
medidas preventivas que não tomamos.
Esteve em Itália,
onde ocorreram grandes sismos recentemente. Nem assim Portugal
aprendeu?
Acho que não. Nós
falamos, as pessoas ouvem, mas volta tudo ao mesmo. Ainda não vi
nada de concreto mudar. Temos sempre esperança, a esperança é a
última a morrer. Mas eu no início deste processo tinha mais
esperança do que agora. Só quando vir alguma coisa a acontecer
mesmo é que eu acredito.
Portugal continua a
pensar que só acontece aos outros?
Exatamente. O
problema é que temos a certeza que isso não é verdade. Ignoramos a
realidade, um dia vamos ter de pagar as consequências. A sorte não
vai durar para sempre. Os sismos têm sido noutros sítios. As
últimas grandes catástrofes têm estado afastadas daqui. Mas temos
a certeza absoluta que a sorte não dura para sempre.
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