Auditor
alerta para "buraco" de 107 milhões na dona do Montepio
A
KPMG alerta que a Associação Mutualista Montepio Geral, dona da
Caixa Económica (banco Montepio), tem capitais próprios negativos e
necessita de ser recapitalizada. Banco e seguradora contaminaram
contas da mutualista.
CRISTINA FERREIRA 14
de Março de 2017, 6:30
O grupo Montepio
Geral Associação Mutualista (AMMG) fechou as contas consolidadas do
exercício de 2015 com capitais próprios negativos superiores a 107
milhões de euros, o que gera pressão sobre a Caixa Económica
liderada por José Félix Morgado, a necessitar ela própria de
reforçar os rácios de capital.
Na certificação
das contas consolidadas do grupo Montepio Geral, a auditora KPMG
chama a atenção para o facto do Montepio Geral-Associação
Mutualista apresentar a 31 de Dezembro de 2015 “um capital próprio
negativo atribuível aos associados no montante de 107.529 milhares
de euros [o passivo é superior ao activo]”, incluindo um resultado
negativo imputado aos mutualistas de 251.445 milhares de euros.
O PÚBLICO teve
acesso ao documento anexo às demonstrações financeiras do grupo
Montepio, de 31 de Dezembro de 2015, e que foi distribuído a semana
passada pelos 23 membros do Conselho Geral da AMMG, para que o possam
debater na reunião desta terça-feira, 14 de Março, que vai
decorrer durante a tarde.
Nas suas
apreciações, a KPMG deixa um forte alerta aos mutualistas de que a
associação Montepio Geral enfrenta um quadro crítico, de falência
técnica, com necessidades de uma injecção de fundos.
Um alerta para os
sócios
A perda de metade do
capital social de uma empresa, que acciona o popular artigo 35º, já
não tem as consequências que tinha. Até 2005, o Código das
Sociedades Comerciais previa que, após dois exercícios nessa
situação, a sociedade era automaticamente dissolvida. Desde a
alteração feita no Decreto-Lei n.º 19/2005, de 18 de Janeiro desse
ano, as consequências resumem-se a uma espécie de alerta para os
sócios em relação à situação financeira das sociedades. Um
alerta que deve ser feito em assembleia-geral convocada para o efeito
e onde deverão ser decididas medidas com vista a resolver a
situação, seja através da redução do capital social para valor
não inferior ao capital próprio ou através da injecção de
capitais pelos sócios. Se nada for decidido, nada acontecer, excepto
que a sociedade passa a ser obrigada a mencionar o desequilíbrio em
todas as comunicações que fizer que o capital próprio é inferior
a metade do capital social registado, de modo a que todos os
interessados conheçam a situação. Daí o termo falência técnica.
Existe, mas não dissolve a sociedade.
A consultora sugere
a apresentação de um plano que restabeleça a situação de capital
do grupo e garanta a continuidade da actividade das suas
participadas. E há duas vias que se abrem: recorrer a capital por
via externa ou através da venda de activos que possui em carteira.
É este quadro que
pode explicar os atrasos na publicação das contas consolidadas de
2015 do Montepio Geral-Associação Mutualista que vão ter de ser
aprovadas em reunião da assembleia-geral ainda sem data marcada. E a
expectativa de que a nova legislação sobre as entidades da economia
social pudesse ser aprovada a tempo de evitar a publicação das
contas.
Este cenário
levanta dificuldades à recapitalização da Caixa Económica (banco)
a necessitar de repor os rácios de capital. Isto, a acreditar num
relatório do Banco de Portugal (BdP), referente a 2016, e que o
Expresso divulgou na sua última edição. E onde se pode ler que o
banco Montepio apresenta “um perfil de risco de nível elevado”,
tem exposições estratégicas que “não garantem uma gestão
sólida” e regista uma “consistente degradação da qualidade da
carteira dos clientes. O relatório que o semanário diz ser
“arrasador” para a gestão de Félix Morgado, forçou fonte
oficial do Montepio a vir garantir que as falhas apuradas pelo
supervisor bancário foram entretanto corrigidas e “tudo se
encontra em conformidade”.
Dias antes, a 9 de
Março, em entrevista ao PÚBLICO, Carlos Costa esclarecera que “a
Caixa Económica [fiscalizada pelo BdP] está estabilizada e em
processo de reformulação do modelo de governo” e que possui “uma
administração profissionalizada e a dar passos sérios no sentido
de se transformar num pilar financeiro do terceiro sector”.
Observações que
foram interpretadas como um sinal de apoio à equipa de Félix
Morgado, um gestor da esfera do governador (os dois são amigos e
trabalharam no BCP) que em 2015 o indicou para substituir Tomás
Correia à frente do banco Caixa Económica. Félix Morgado é tido
como muito próximo da Opus Dei, não alinhando com nenhuma das
facções maçónicas que se enfrentam dentro do Montepio.
Uma das decisões
que a equipa de Félix Morgado, onde está Luís Jesus, um quadro
recrutado à KPMG, terá preparado para ajudar a Caixa Económica a
criar capital é o negócio que envolve as minas de Aljustrel. Em
causa esteve a criação de um veículo que permitiria a libertação
de uma mais-valia, o que terá sido, no entanto, considerado
ilegítimo pelo BdP.
Mas na sua
entrevista ao PÚBLICO Carlos Costa fez outros comentários, também
recebidos com perplexidade: “O que me preocupa não é que o
accionista tenha problemas, é assegurar que o banco não está
exposto ao accionista. Essa é que é a raiz do contágio. Se um
accionista tiver dificuldades vende acções e a sua participação
sem afectar o banco. Só afecta se ele também beneficiar do crédito.
O crédito entre entidades relacionadas não pode ser aceite.” Uma
observação que remete para o BES, que colapsou contaminado pelo GES
(o banco era usado para financiar as empresas accionistas de
referência e sem condições de ir ao mercado levantar fundos e de
saldar as suas dívidas).
Só que,
aparentemente, o que se passa no grupo Montepio é o inverso. É o
banco, supervisionado pelo BdP, que se financia junto da Associação
Mutualista, fiscalizada pelo Ministério da Segurança Social, o que
pode ter criado dificuldades à entidade, com cerca de 630 mil
associados. Todos eles clientes normais do banco. Muitos foram
convidados a subscreverem produtos financeiros mutualistas, cujas
aplicações, enquanto investimentos da Associação, regressavam ao
banco sob forma de capital, de empréstimos obrigacionistas ou em
depósitos.
Com activos de 3,7
mil milhões de euros, a exposição da AMMG à Caixa Económica e às
empresas do grupo ronda 87%: mil milhões em forma de empréstimos
obrigacionistas e 2,3 mil milhões investidos em capital do banco e
das participadas. Mas os 2,3 mil milhões estão valorizados no
balanço por apenas 1,9 mil milhões, dado que 423 milhões são
imparidades. Segundo as demonstrações financeiras da entidade, só
ao banco a AMMG está exposta em mais de dois mil milhões
(provisionados em 350 milhões), posição valorizada no balanço a
1,6 mil milhões: mais do que vale o BCP (cerca de mil milhões) ou o
BPI (aproximadamente 1,3 mil milhões).
E é por isso que a
acção do BdP pode estar novamente em causa. Apesar de em 2014 terem
sido abertas averiguações à gestão de Tomás Correia, que
acumulava as presidências do banco Caixa Económica e a da AMMG, e
que acabaram na reavaliação da sua idoneidade. Processo que levou
ao afastamento em 2015 de Tomás Correia do banco, mantendo-se, no
entanto, o gestor na AMMG.
No final de 2008, o
grupo tornou-se parceiro da Ongoing ao aplicar mais de 40 milhões de
euros em veículos da empresa de Rafael Mora e Nuno Vasconcelos, com
sede no Luxemburgo. O que Tomás Correia justificou com a necessidade
de diversificar riscos. Mais tarde, o banqueiro emprestou outro tanto
à Ongoing para que esta pagasse o investimento realizado e a dívida
ao banco disparou para 70 milhões. Neste momento, o Montepio reclama
apenas 15 milhões.
A 19 de Julho de
2014, o PÚBLICO revelava que a exposição directa e indirecta do
grupo Montepio às áreas financeira e não financeira do GES rondava
os 200 milhões de euros. O risco estava na Caixa Económica, na
Lusitânia e em fundos de investimento do grupo Montepio Geral. Parte
da verba foi já recuperada, nomeadamente, pela execução de
garantias reais.
Há outros
movimentos igualmente controversos. A 21 de Julho de 2009, a Caixa
Económica investiu 42,5 milhões na compra de 85% da Real Seguros,
detida pela Sociedade Lusa de Negócios, a ex-dona do BPN, dos quais
35 milhões destinaram-se a aumentar o capital da seguradora. A
operação ainda se reflecte nas contas da Lusitânia, que absorveu a
Real Seguros, que acumulou nos últimos três anos prejuízos de 70
milhões de euros.
Já em Julho de
2010, Tomás Correia tinha avançado com uma OPA de 341 milhões
sobre o Finibanco. E que foi o culminar de uma negociação que
começou ano e meio antes, quando as avaliações apontavam para
menos 100 milhões de euros. Um acréscimo justificado com o facto de
a transacção final incluir o Finibanco Angola. Esta transacção
“salvou” os accionistas do Finibanco, a família Costa
Leite/Vicaima e o Banif (que tinha na altura 10% do banco).
Contas feitas: entre
2011 e 2015, o grupo mutualista encaixou mais de mil milhões de
perdas consolidadas (Associação, banco, seguradora e outras
sociedades). E, em 2015, pela primeira vez na sua história de 175
anos, a Associação Mutualista encerrou o exercício em terreno
vermelho, ao revelar um prejuízo de 393 milhões de euros (depois de
um lucro de 41,5 milhões em 2014). Em 2016, deverá voltar a terreno
positivo para cerca de sete milhões. Já a Caixa Económica tem
vindo a acumular perdas sucessivas, de 243,4 milhões de euros em
2015 e de 187 milhões em 2014. E a Lusitânia tem seguido a mesma
tendência do banco.
Contactado, o grupo
Montepio não respondeu às questões do PÚBLICO até à hora de
fecho.
O
que se passa no Montepio? Nem um pio
O
relatório do Banco de Portugal sobre o Montepio mais parece uma
autópsia. O banco central lava as mãos e não fala. Os outros
supervisores assobiam para o lado. Do Governo não se ouve nem um
pio.
Pedro Sousa Carvalho
Ontem
Quando Mário
Centeno e António Costa decidem mudar o modelo de supervisão, numa
altura em que estão em guerra com o Banco de Portugal, é caso para
dizer que a intenção do Governo tresanda a tentativa de politização
do regulador. Já que não conseguem correr com Carlos Costa, vão
tentar retirar poderes ao Banco de Portugal.
Mas olhando para
aquilo que se passa no banco Montepio, sendo que ainda ninguém
percebeu muito bem o que se passa no Montepio, é caso para dizer que
alguma coisa tem de mudar na supervisão em Portugal. As motivações
de Mário Centeno são as piores, mas tem razão quando diz que
alguma coisa tem de mudar para que não fique tudo na mesma.
Depois do monumental
falhanço do Banco de Portugal na supervisão do BES, os reguladores
continuam todos impávidos — na mesma cadeira de onde assistiram à
queda do banco de Ricardo Salgado, do BPN, do BPP e do Banif — a
olhar para o que se está a passar no Montepio.
E o que se está a
passar no Montepio? Ninguém sabe. No dia 8 de maio de 2015, escrevi
este artigo no jornal Público, — No Montepio, falam, falam, mas
não os vejo a fazer nada — onde dizia que “uma parte do grupo
está em terra de ninguém em termos de supervisão”.
Quase dois anos
volvidos, a terra de ninguém continua às moscas. E esta semana o
Expresso deu conta da existência de um relatório do Banco de
Portugal sobre a supervisão da Caixa Económica Montepio Geral
(CEMG), supostamente relativo ao ano de 2016, com o seguinte
conteúdo:
O banco apresenta
“um perfil de risco de nível elevado”.
As exposições
estratégicas “não garantem uma gestão sólida”.
“A atribuição
[de créditos] contraria o parecer dado pela análise de crédito do
banco sem fundamentação robusta para a decisão tomada”.
Desde julho de 2015
“não dispõe de qualquer relatório de monitorização de risco”.
“Após várias
solicitações”, as atas das reuniões do conselho de administração
e do conselho de gestão “não têm sido remetidas de forma
tempestiva”, constituindo esse facto “um entrave ao exercício
pleno de supervisão”.
Isto não é um
relatório de supervisão. Isto mais parece uma certidão de óbito
ou uma autópsia a um grupo que desde sempre teve semelhanças com o
BES por causa das relações incestuosas entre o banco e o acionista.
No caso do Montepio, entre a Caixa Económica e a Associação
Mutualista.
O banco defende-se
dizendo que os alertas não deverão ser relativos ao exercício de
2016 já que “de acordo com a prática do Banco de Portugal, os
seus relatórios são previamente discutidos com as entidades
visadas”. Como o BdP pelos vistos não ouviu o Montepio, deduzem
eles que o relatório não é sobre o ano transato.
E o que diz o Banco
de Portugal? Não diz grande coisa. Numa entrevista recente ao
Público, Carlos Costa afirmou que o banco “está a dar passos
sérios no sentido de se transformar num pilar financeiro do terceiro
setor”. Questionado sobre as relações do banco com o seu
acionista, respondeu que a Associação Mutualista “é uma entidade
que não é supervisionada pelo BdP.” Sobre os produtos da
associação mutualista, seguros, que são vendidos aos balcões da
Caixa Económica responde: “os produtos não são supervisionados
por nós.” Pilatos não responderia melhor.
Enquanto o Banco de
Portugal se entretém a lavar daí as suas mãos, — aliás na mesma
pia em que lavou as mãos quando descobriu que o problema do BES eram
ligações a empresas que estavam fora da sua jurisdição, — os
restantes reguladores, a CMVM e o regulador dos Seguros, assobiam
para o lado.
O Governo, que
através do Ministério do Trabalho e Segurança Social, supostamente
deveria supervisionar a associação mutualista Montepio, mantém-se
calado. Calado sobre a situação do Montepio e calado sobre o facto
de o presidente da Mutualista, Tomás Correia, ter sido constituído
arguido.
O Expresso conta que
o antigo banqueiro, que foi presidente da Caixa Económica entre 2008
e 2015, é suspeito de ter recebido 1,5 milhões de euros do
construtor José Guilherme. Sim, é o mesmo que deu uma prenda a
Ricardo Salgado. O Público também noticiou que o mesmo Tomás
Correia foi constituído arguido no final de janeiro, juntamente com
mais 14 pessoas, num caso em que são suspeitos de insolvência
dolosa, burla qualificada, emissão de cheques sem provisão por
causa da venda de uns terrenos.
As semelhanças
entre o caso BES e o caso Montepio são aterradoras. E para impedir
que alguma coisa aconteça ao banco, os reguladores estão a seguir o
mesmo caminho que seguiram no caso do banco de Ricardo Salgado. Como
dizia Albert Einstein, “insanidade é continuar a fazer sempre a
mesma coisa e esperar que os resultados sejam diferentes”. Nem mais
um pio.
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