terça-feira, 14 de março de 2017

Auditor alerta para "buraco" de 107 milhões na dona do Montepio / O que se passa no Montepio? Nem um pio


Auditor alerta para "buraco" de 107 milhões na dona do Montepio
A KPMG alerta que a Associação Mutualista Montepio Geral, dona da Caixa Económica (banco Montepio), tem capitais próprios negativos e necessita de ser recapitalizada. Banco e seguradora contaminaram contas da mutualista.

CRISTINA FERREIRA 14 de Março de 2017, 6:30

O grupo Montepio Geral Associação Mutualista (AMMG) fechou as contas consolidadas do exercício de 2015 com capitais próprios negativos superiores a 107 milhões de euros, o que gera pressão sobre a Caixa Económica liderada por José Félix Morgado, a necessitar ela própria de reforçar os rácios de capital.

Na certificação das contas consolidadas do grupo Montepio Geral, a auditora KPMG chama a atenção para o facto do Montepio Geral-Associação Mutualista apresentar a 31 de Dezembro de 2015 “um capital próprio negativo atribuível aos associados no montante de 107.529 milhares de euros [o passivo é superior ao activo]”, incluindo um resultado negativo imputado aos mutualistas de 251.445 milhares de euros.

O PÚBLICO teve acesso ao documento anexo às demonstrações financeiras do grupo Montepio, de 31 de Dezembro de 2015, e que foi distribuído a semana passada pelos 23 membros do Conselho Geral da AMMG, para que o possam debater na reunião desta terça-feira, 14 de Março, que vai decorrer durante a tarde.

Nas suas apreciações, a KPMG deixa um forte alerta aos mutualistas de que a associação Montepio Geral enfrenta um quadro crítico, de falência técnica, com necessidades de uma injecção de fundos.

Um alerta para os sócios

A perda de metade do capital social de uma empresa, que acciona o popular artigo 35º, já não tem as consequências que tinha. Até 2005, o Código das Sociedades Comerciais previa que, após dois exercícios nessa situação, a sociedade era automaticamente dissolvida. Desde a alteração feita no Decreto-Lei n.º 19/2005, de 18 de Janeiro desse ano, as consequências resumem-se a uma espécie de alerta para os sócios em relação à situação financeira das sociedades. Um alerta que deve ser feito em assembleia-geral convocada para o efeito e onde deverão ser decididas medidas com vista a resolver a situação, seja através da redução do capital social para valor não inferior ao capital próprio ou através da injecção de capitais pelos sócios. Se nada for decidido, nada acontecer, excepto que a sociedade passa a ser obrigada a mencionar o desequilíbrio em todas as comunicações que fizer que o capital próprio é inferior a metade do capital social registado, de modo a que todos os interessados conheçam a situação. Daí o termo falência técnica. Existe, mas não dissolve a sociedade.
A consultora sugere a apresentação de um plano que restabeleça a situação de capital do grupo e garanta a continuidade da actividade das suas participadas. E há duas vias que se abrem: recorrer a capital por via externa ou através da venda de activos que possui em carteira.

É este quadro que pode explicar os atrasos na publicação das contas consolidadas de 2015 do Montepio Geral-Associação Mutualista que vão ter de ser aprovadas em reunião da assembleia-geral ainda sem data marcada. E a expectativa de que a nova legislação sobre as entidades da economia social pudesse ser aprovada a tempo de evitar a publicação das contas.

Este cenário levanta dificuldades à recapitalização da Caixa Económica (banco) a necessitar de repor os rácios de capital. Isto, a acreditar num relatório do Banco de Portugal (BdP), referente a 2016, e que o Expresso divulgou na sua última edição. E onde se pode ler que o banco Montepio apresenta “um perfil de risco de nível elevado”, tem exposições estratégicas que “não garantem uma gestão sólida” e regista uma “consistente degradação da qualidade da carteira dos clientes. O relatório que o semanário diz ser “arrasador” para a gestão de Félix Morgado, forçou fonte oficial do Montepio a vir garantir que as falhas apuradas pelo supervisor bancário foram entretanto corrigidas e “tudo se encontra em conformidade”.

Dias antes, a 9 de Março, em entrevista ao PÚBLICO, Carlos Costa esclarecera que “a Caixa Económica [fiscalizada pelo BdP] está estabilizada e em processo de reformulação do modelo de governo” e que possui “uma administração profissionalizada e a dar passos sérios no sentido de se transformar num pilar financeiro do terceiro sector”.

Observações que foram interpretadas como um sinal de apoio à equipa de Félix Morgado, um gestor da esfera do governador (os dois são amigos e trabalharam no BCP) que em 2015 o indicou para substituir Tomás Correia à frente do banco Caixa Económica. Félix Morgado é tido como muito próximo da Opus Dei, não alinhando com nenhuma das facções maçónicas que se enfrentam dentro do Montepio.

Uma das decisões que a equipa de Félix Morgado, onde está Luís Jesus, um quadro recrutado à KPMG, terá preparado para ajudar a Caixa Económica a criar capital é o negócio que envolve as minas de Aljustrel. Em causa esteve a criação de um veículo que permitiria a libertação de uma mais-valia, o que terá sido, no entanto, considerado ilegítimo pelo BdP.

Mas na sua entrevista ao PÚBLICO Carlos Costa fez outros comentários, também recebidos com perplexidade: “O que me preocupa não é que o accionista tenha problemas, é assegurar que o banco não está exposto ao accionista. Essa é que é a raiz do contágio. Se um accionista tiver dificuldades vende acções e a sua participação sem afectar o banco. Só afecta se ele também beneficiar do crédito. O crédito entre entidades relacionadas não pode ser aceite.” Uma observação que remete para o BES, que colapsou contaminado pelo GES (o banco era usado para financiar as empresas accionistas de referência e sem condições de ir ao mercado levantar fundos e de saldar as suas dívidas).

Só que, aparentemente, o que se passa no grupo Montepio é o inverso. É o banco, supervisionado pelo BdP, que se financia junto da Associação Mutualista, fiscalizada pelo Ministério da Segurança Social, o que pode ter criado dificuldades à entidade, com cerca de 630 mil associados. Todos eles clientes normais do banco. Muitos foram convidados a subscreverem produtos financeiros mutualistas, cujas aplicações, enquanto investimentos da Associação, regressavam ao banco sob forma de capital, de empréstimos obrigacionistas ou em depósitos.

Com activos de 3,7 mil milhões de euros, a exposição da AMMG à Caixa Económica e às empresas do grupo ronda 87%: mil milhões em forma de empréstimos obrigacionistas e 2,3 mil milhões investidos em capital do banco e das participadas. Mas os 2,3 mil milhões estão valorizados no balanço por apenas 1,9 mil milhões, dado que 423 milhões são imparidades. Segundo as demonstrações financeiras da entidade, só ao banco a AMMG está exposta em mais de dois mil milhões (provisionados em 350 milhões), posição valorizada no balanço a 1,6 mil milhões: mais do que vale o BCP (cerca de mil milhões) ou o BPI (aproximadamente 1,3 mil milhões).

E é por isso que a acção do BdP pode estar novamente em causa. Apesar de em 2014 terem sido abertas averiguações à gestão de Tomás Correia, que acumulava as presidências do banco Caixa Económica e a da AMMG, e que acabaram na reavaliação da sua idoneidade. Processo que levou ao afastamento em 2015 de Tomás Correia do banco, mantendo-se, no entanto, o gestor na AMMG.

No final de 2008, o grupo tornou-se parceiro da Ongoing ao aplicar mais de 40 milhões de euros em veículos da empresa de Rafael Mora e Nuno Vasconcelos, com sede no Luxemburgo. O que Tomás Correia justificou com a necessidade de diversificar riscos. Mais tarde, o banqueiro emprestou outro tanto à Ongoing para que esta pagasse o investimento realizado e a dívida ao banco disparou para 70 milhões. Neste momento, o Montepio reclama apenas 15 milhões.

A 19 de Julho de 2014, o PÚBLICO revelava que a exposição directa e indirecta do grupo Montepio às áreas financeira e não financeira do GES rondava os 200 milhões de euros. O risco estava na Caixa Económica, na Lusitânia e em fundos de investimento do grupo Montepio Geral. Parte da verba foi já recuperada, nomeadamente, pela execução de garantias reais.

Há outros movimentos igualmente controversos. A 21 de Julho de 2009, a Caixa Económica investiu 42,5 milhões na compra de 85% da Real Seguros, detida pela Sociedade Lusa de Negócios, a ex-dona do BPN, dos quais 35 milhões destinaram-se a aumentar o capital da seguradora. A operação ainda se reflecte nas contas da Lusitânia, que absorveu a Real Seguros, que acumulou nos últimos três anos prejuízos de 70 milhões de euros.

Já em Julho de 2010, Tomás Correia tinha avançado com uma OPA de 341 milhões sobre o Finibanco. E que foi o culminar de uma negociação que começou ano e meio antes, quando as avaliações apontavam para menos 100 milhões de euros. Um acréscimo justificado com o facto de a transacção final incluir o Finibanco Angola. Esta transacção “salvou” os accionistas do Finibanco, a família Costa Leite/Vicaima e o Banif (que tinha na altura 10% do banco).

Contas feitas: entre 2011 e 2015, o grupo mutualista encaixou mais de mil milhões de perdas consolidadas (Associação, banco, seguradora e outras sociedades). E, em 2015, pela primeira vez na sua história de 175 anos, a Associação Mutualista encerrou o exercício em terreno vermelho, ao revelar um prejuízo de 393 milhões de euros (depois de um lucro de 41,5 milhões em 2014). Em 2016, deverá voltar a terreno positivo para cerca de sete milhões. Já a Caixa Económica tem vindo a acumular perdas sucessivas, de 243,4 milhões de euros em 2015 e de 187 milhões em 2014. E a Lusitânia tem seguido a mesma tendência do banco.


Contactado, o grupo Montepio não respondeu às questões do PÚBLICO até à hora de fecho.

O que se passa no Montepio? Nem um pio
O relatório do Banco de Portugal sobre o Montepio mais parece uma autópsia. O banco central lava as mãos e não fala. Os outros supervisores assobiam para o lado. Do Governo não se ouve nem um pio.

Pedro Sousa Carvalho
Ontem

Quando Mário Centeno e António Costa decidem mudar o modelo de supervisão, numa altura em que estão em guerra com o Banco de Portugal, é caso para dizer que a intenção do Governo tresanda a tentativa de politização do regulador. Já que não conseguem correr com Carlos Costa, vão tentar retirar poderes ao Banco de Portugal.

Mas olhando para aquilo que se passa no banco Montepio, sendo que ainda ninguém percebeu muito bem o que se passa no Montepio, é caso para dizer que alguma coisa tem de mudar na supervisão em Portugal. As motivações de Mário Centeno são as piores, mas tem razão quando diz que alguma coisa tem de mudar para que não fique tudo na mesma.

Depois do monumental falhanço do Banco de Portugal na supervisão do BES, os reguladores continuam todos impávidos — na mesma cadeira de onde assistiram à queda do banco de Ricardo Salgado, do BPN, do BPP e do Banif — a olhar para o que se está a passar no Montepio.

E o que se está a passar no Montepio? Ninguém sabe. No dia 8 de maio de 2015, escrevi este artigo no jornal Público, — No Montepio, falam, falam, mas não os vejo a fazer nada — onde dizia que “uma parte do grupo está em terra de ninguém em termos de supervisão”.

Quase dois anos volvidos, a terra de ninguém continua às moscas. E esta semana o Expresso deu conta da existência de um relatório do Banco de Portugal sobre a supervisão da Caixa Económica Montepio Geral (CEMG), supostamente relativo ao ano de 2016, com o seguinte conteúdo:

O banco apresenta “um perfil de risco de nível elevado”.
As exposições estratégicas “não garantem uma gestão sólida”.
“A atribuição [de créditos] contraria o parecer dado pela análise de crédito do banco sem fundamentação robusta para a decisão tomada”.
Desde julho de 2015 “não dispõe de qualquer relatório de monitorização de risco”.
“Após várias solicitações”, as atas das reuniões do conselho de administração e do conselho de gestão “não têm sido remetidas de forma tempestiva”, constituindo esse facto “um entrave ao exercício pleno de supervisão”.
Isto não é um relatório de supervisão. Isto mais parece uma certidão de óbito ou uma autópsia a um grupo que desde sempre teve semelhanças com o BES por causa das relações incestuosas entre o banco e o acionista. No caso do Montepio, entre a Caixa Económica e a Associação Mutualista.

O banco defende-se dizendo que os alertas não deverão ser relativos ao exercício de 2016 já que “de acordo com a prática do Banco de Portugal, os seus relatórios são previamente discutidos com as entidades visadas”. Como o BdP pelos vistos não ouviu o Montepio, deduzem eles que o relatório não é sobre o ano transato.

E o que diz o Banco de Portugal? Não diz grande coisa. Numa entrevista recente ao Público, Carlos Costa afirmou que o banco “está a dar passos sérios no sentido de se transformar num pilar financeiro do terceiro setor”. Questionado sobre as relações do banco com o seu acionista, respondeu que a Associação Mutualista “é uma entidade que não é supervisionada pelo BdP.” Sobre os produtos da associação mutualista, seguros, que são vendidos aos balcões da Caixa Económica responde: “os produtos não são supervisionados por nós.” Pilatos não responderia melhor.

Enquanto o Banco de Portugal se entretém a lavar daí as suas mãos, — aliás na mesma pia em que lavou as mãos quando descobriu que o problema do BES eram ligações a empresas que estavam fora da sua jurisdição, — os restantes reguladores, a CMVM e o regulador dos Seguros, assobiam para o lado.

O Governo, que através do Ministério do Trabalho e Segurança Social, supostamente deveria supervisionar a associação mutualista Montepio, mantém-se calado. Calado sobre a situação do Montepio e calado sobre o facto de o presidente da Mutualista, Tomás Correia, ter sido constituído arguido.

O Expresso conta que o antigo banqueiro, que foi presidente da Caixa Económica entre 2008 e 2015, é suspeito de ter recebido 1,5 milhões de euros do construtor José Guilherme. Sim, é o mesmo que deu uma prenda a Ricardo Salgado. O Público também noticiou que o mesmo Tomás Correia foi constituído arguido no final de janeiro, juntamente com mais 14 pessoas, num caso em que são suspeitos de insolvência dolosa, burla qualificada, emissão de cheques sem provisão por causa da venda de uns terrenos.

As semelhanças entre o caso BES e o caso Montepio são aterradoras. E para impedir que alguma coisa aconteça ao banco, os reguladores estão a seguir o mesmo caminho que seguiram no caso do banco de Ricardo Salgado. Como dizia Albert Einstein, “insanidade é continuar a fazer sempre a mesma coisa e esperar que os resultados sejam diferentes”. Nem mais um pio.

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