A
Europa de Merkel ou a Europa de Schäuble?
A
capacidade do ministro das Finanças alemão para criar eurocépticos
é verdadeiramente inigualável. Certamente, muito maior do que a de
Geert Wilders.
19 de Março de
2017, 6:05
1.Não se pode dizer
que tenha sido um sucesso o primeiro encontro na Casa Branca entre
Donald Trump e Angela Merkel. Talvez fosse inevitável, mas não é
certamente um bom sinal. A chanceler foi igual a si própria. Tinha
uma mensagem a transmitir ao Presidente americano sobre os temas
fundamentais da relação entre os dois lados do Atlântico, do
comércio à defesa, passando pelo respeito dos valores que são
comuns. Repetiu, ao seu lado, uma frase que já tinha dito em casa
antes de partir: A Alemanha continua a ter uma dupla nacionalidade,
alemã e europeia. “São duas faces da mesma moeda.”
É bom que a
chanceler continue a ver o seu país assim, mas também é bom que
Trump compreenda que a Europa em nome da qual ela (também) fala é
um potência económica incontornável para qualquer actor mundial e
que continua fiel à ordem liberal que os EUA criaram depois da II
Guerra. O que se passou à porta fechada ainda não sabemos ao
pormenor. O que sabemos é que Trump não gostou muito do que ouviu e
não conseguiu disfarçar. A recusa em apertar a mão à chanceler,
quando os jornalistas pediam e Merkel sugeria, é de uma deselegância
que ultrapassa tudo o que possamos imaginar. Alguma imprensa admite
que Trump não a ouviu, o que é bem possível. Mas a imagem ficou
para o mundo inteiro ver.
Se restasse qualquer
dúvida, a forma como decorreu a conferência de imprensa chega e
basta para mostrar até que ponto Merkel e Trump discordam em quase
tudo. O Presidente americano voltou a deixar claro que não vai
aceitar o gigantesco défice comercial que tem com a Alemanha, o que
quer dizer que pode recorrer às tarifas alfandegárias, hoje
praticamente inexistentes entre os dois lados do Atlântico. Louvou a
promessa de Merkel de gastar com a defesa os 2% estabelecidos pela
NATO até 2024. Ela podia ter-lhe dito que não foi ele que a
convenceu, foi Putin. Mas não deixou de insistir em que os europeus
são grandes devedores em matéria de segurança e que vão ter de
compensar as suas dívidas. Num tweet, posterior à visita,
acrescentou que a Alemanha “devia uma vasta soma à NATO e aos
EUA”, pelos serviços prestados neste domínio.
As relações com a
Rússia passaram quase desapercebidas no final do encontro. Merkel
apenas disse que o Presidente apoiava o acordo de Minsk e Trump
elogiou o “great job” que a chanceler e Hollande estavam a fazer
na Ucrânia. O nome de Putin nunca se fez ouvir. As relações, no
mínimo promíscuas, de muitos membros do seu gabinete com Moscovo
têm sido um dos aspectos mais controversos da presidência de Trump.
2.O Presidente
atravessa um mau momento. Os tribunais impugnam sistematicamente as
suas ordens executivas sobre quem pode ou não entrar nos EUA. Os
serviços secretos do seu principal aliado europeu consideraram
“ridículas” as acusações de que estariam envolvidos na
espionagem ordenada por Obama à Trump Tower. O Senado também. O
primeiro Orçamento da America First é de tal forma desequilibrado
que já suscitou uma onda de críticas, entre as quais de várias
dezenas de altas patentes do Exército na reserva. A questão é
simples. Há um aumento brutal do orçamento do Pentágono, de cerca
de 10% sobre uma verba que já deixa os Estados Unidos a anos-luz de
qualquer dos seus adversários ou aliados. Quem paga a factura é a
diplomacia e a ajuda ao desenvolvimento (para além dos serviços
sociais, naturalmente), dois poderosos instrumentos do soft power
americano.
Trump reafirmou que
o seu objectivo é, por outras palavras, pôr o mundo todo em
sentido, mesmo que às vezes isso não resulte. As declarações do
secretário de Estado, Rex Tillerson, em digressão pela Ásia, sobre
a Coreia do Norte são preocupantes, não por colocarem em cima da
mesa o recurso à força (Obama fez o mesmo com o Irão), mas pelo
que disse sobre o esgotamento das outras opções. A nova política
externa de Trump quer fazer da China o principal adversário e da
Rússia um “aliado”. O problema é que não há solução para a
Coreia do Norte que não passe pela China. Ontem, em Pequim,
Tillerson já foi bastante mais comedido. Enfim, as contradições
são muitas, e isso não é nada tranquilizador A perda de influência
dos Estados Unidos no mundo é vista com enorme apreensão na Europa,
porque criaria um vazio que ninguém está em condições de ocupar.
3. Foi essa
igualmente a preocupação de Merkel, na sua primeira vista à Casa
Branca, para além da enorme preocupação com a cartilha
proteccionista do Presidente, rasgando ou congelando acordos
comerciais, que é altamente lesiva para a Alemanha e para a Europa
(para não falar do Japão ou da própria China). Trump repetiu na
conferência de imprensa que não era contra o livre comércio desde
que fosse “justo”. E “justo” para ele é acabar com os
défices comerciais que os EUA mantêm com vários países do mundo,
a começar pela Alemanha que, como já sabemos, (ainda) não está
disposta a enveredar por uma política expansionista dentro de casa.
Merkel levou consigo
uma panóplia de propostas para ir ao encontro de Trump em matéria
de desenvolvimento industrial. Mas nem aqui as coisas foram fáceis.
Uma das imagens mais extraordinárias da visita é o rosto da
chanceler, entre o divertido e o admirado, a olhar para Ivanka Trump,
sentada ao seu lado, a explicar aos CEO das grandes empresas alemãs
como é que se criavam empregos.
A questão dos
refugiados também não deve ter sido fácil. Merkel fala em dever de
acolhimento. Trump responde que é a concessão de um “privilégio”.
O objectivo da chanceler era mostrar a Trump que a Alemanha (e a
União Europeia) não era um inimigo, mas um amigo. Terá conseguido?
Há 12 anos no poder, a chanceler já teve de lidar com outros
“homens fortes” convencidos que poderiam intimidá-la. Mas tem
plena consciência de que a relação transatlântica continua a ser
fundamental para o seu país e para a Europa.
4. Enquanto Merkel
dizia a Trump que a nacionalidade alemã continua a ser europeia,
Wolfgang Schäuble tratava de provar o contrário em Berlim. O
ministro das Finanças alemão resolveu advertir Portugal quanto ao
risco de um novo resgate. A que propósito? Com que oportunidade, no
preciso momento em que a Comissão reconheceu o esforço de redução
do défice, considerando-o sustentável? Há a desculpa política.
Schäuble não gosta da solução de governo que vigora em Lisboa.
Coabita com o PSD no grupo do PPE e poderá ter ouvido Passos Coelho
dizer que o diabo chegaria em Setembro (do ano passado). Nenhuma
dessas razões justifica os seus avisos extemporâneos.
Mas há, talvez,
outra razão para eles, que também não abona a seu favor. Berlim já
deu como concluída a crise do euro. Entende que, a partir de agora,
os países da união monetária têm de cumprir as regras e
sujeitar-se às consequências, se isso não acontecer. É uma
espécie de regresso a Maastricht e à cláusula do “no bailout”,
acrescida do Pacto Orçamental. O Governo português tem uma visão
diferente: é preciso concluir a união bancária e garantir que há
instrumentos para fazer face a uma nova crise, num momento de enorme
imprevisibilidade na situação internacional.
Outros países
pensam da mesma maneira. António Costa disse-o na última cimeira de
Bruxelas, provocando algumas reacções mais ou menos exaltadas. Pode
admitir-se que a resposta veio agora de Schäuble. Serve para quê?
Para rigorosamente nada, a não ser para criar desconfiança nos
mercados A não ser que o ministro ainda não tenha desistido de
recriar o euro, libertando-o dos “pesos mortos” do Sul. Se for
assim, talvez não ande muito longe de Trump, nem irá contribuir
para o fortalecimento da Europa, cada vez mais necessário perante a
deriva americana. A sua capacidade para criar eurocépticos é
verdadeiramente inigualável. Certamente, muito maior do que a de
Geert Wilders.
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