A
memória e a Nutella
O
ambiente no Conselho Europeu também não foi o mais ameno. Mantêm-se
divergências profundas sobre a conclusão da reforma da UEM, para
que fique afastada uma nova crise dentro de “seis semanas, seis
meses ou seis anos”.
TERESA DE SOUSA
12 de Março de
2017, 5:03
1. O Conselho
Europeu aprovou na sexta-feira, a 27, as conclusões (informais)
apresentadas pelo seu presidente e não foi por causa do Reino Unido.
A Polónia não votou. Quis protestar contra a reeleição de Donald
Tusk também a 27, ignorando a oposição do país de origem do
recandidato. Acusou a Europa de infringir as regras e de fazer
chantagem. A “eminência parda” que dirige os destinos dos
polacos, o gémeo Jaroslaw Kaczynski, invocou, como já vai sendo
costume, a ocupação da Polónia durante a II Guerra, para apontar o
dedo a Berlim. A primeira-ministra Beata Szydlo até pode ter razão.
O problema é que não é só o Conselho Europeu que torce as regras
para ultrapassar o bloqueio das suas decisões por um só país. O
Governo polaco tem torcido ainda mais os princípios constitutivos da
União Europeia, nomeadamente o Estado de Direito, com alterações
que põem em causa a independência dos tribunais ou a liberdade de
imprensa, ignorando os avisos da Comissão. E resta ainda à Polónia
outro problema: arrisca-se a ficar sozinha. Não pôde contar com o
outro país infractor, a Hungria, que não quer arriscar um confronto
com Bruxelas. Votou disciplinadamente a eleição de Donald Tusk e as
conclusões da cimeira, como tem sempre votado a renovação das
sanções contra a Rússia, mesmo que Viktor Órban se declara amigo
de Putin e do seu modo de governar.
2. Há já um
historial de braços-de-ferro com a Polónia em Conselhos Europeus.
Angela Merkel teve uma paciência infinita com os irmãos Kaczynski
(Lech morreu num acidente de aviação quando era Presidente) durante
a cimeira de Junho de 2007, sob presidência alemã, que visava
aplanar o terreno para a aprovação do Tratado de Lisboa que acabou
por ser aprovado em Outubro, durante a presidência portuguesa. O
Governo de Varsóvia, do mesmo partido que hoje está no poder,
insistia em bloquear um acordo (por causa dos sistemas de votação),
atirando os trabalhos para alta madrugada, sem que Merkel perdesse a
paciência. Desta vez, a chanceler e alguns dos seus pares já não
estão dispostos a fazer madrugadas, o que é bom e é mau, ao mesmo
tempo. O partido ultraconservador de Kaczynski perdeu logo a seguir
as eleições para Donald Tusk, que abriu as portas a uma convivência
muito melhor com os seus parceiros europeus, ao ponto de fazer dele,
em 2014, o presidente do Conselho Europeu. A chanceler esforçou-se
por restabelecer uma boa relação com a Polónia e percebe-se
porquê. Tê-la a bordo é uma necessidade histórica e um garante de
que a Alemanha não ficará de novo isolada no centro da Europa. O
triste episódio do gasoduto (North Stream), ligando directamente a
Rússia à Alemanha e contornando a Polónia, protagonizado por
Gerhart Schroeder, então chanceler social-democrata e depois um
grande amigo de Putin, não foi um dos melhores momentos de Berlim
para ganhar a confiança da Polónia. Há feridas que ficam e que os
nacionalismos estão sempre a invocar. Mas também não valia a pena
a François Hollande ter insinuado que Varsóvia podia ser penalizada
com cortes nos fundos, se não respeitasse os valores europeus. A
resposta da primeira-ministra polaca foi num tom absolutamente
inaceitável, ultrapassando quase todos os limites. Da mesma maneira
que é preciso compreender que a paciência da chanceler tenha
limites, quando, na mesma semana, Varsóvia recorda o passado nazi do
seu país e o Presidente turco resolve fazer a mesma coisa, por causa
dos votos da comunidade turca que vive na Alemanha (muito grande),
que ele quer assegurar para o referendo sobre uma nova constituição
que lhe dará poderes quase absolutos. Por razões de segurança e de
aviso prévio, as entidades locais não deram autorização para os
comícios que o seu Governo queria organizar. Seguiu-se, depois, a
Holanda, onde as mesmas restrições mereceram de Erdogan a
classificação de “quase nazi”. Mais uma vez, são os princípios
que estão em causa. A Turquia nunca poderá aceder à União
Europeia se Erdogan continuar a ignorar as regras de uma sociedade
democrática e a criar um regime autoritário para si próprio.
Merkel tem feito o que pode para manter o seu país aberto aos que já
lá vivem e aos que chegaram agora fugidos à guerra na Síria.
Aliás, uma das razões pelas quais a chanceler não estava
inicialmente disposta a bater-se demasiado pela recondução de Tusk,
foi a oposição que ele fez à sua política corajosa e decente de
abertura aos refugiados. Tusk, nesta matéria, não deixou de ser
polaco e Merkel não deixou de ser Merkel, com todos os seus defeitos
e virtudes.
3. Um dos pontos que
esteve presente, pelo menos no papel, no encontro da semana passada
foi a situação nos Balcãs. A instabilidade está a regressar à
região e a capacidade europeia de influenciar os seus governos com o
isco da futura adesão já se perdeu. Mogherine viu uma parte do
Parlamento sérvio vaiá-la com uma frase que explica quase tudo:
“Sérvia e Rússia, não precisamos da UE”. A presença
desestabilizadora da Rússia faz-se sentir cada vez mais numa região
onde a Europa ainda tem milhares de soldados e investe milhões de
euros. A assistência financeira já não chega, com a Turquia, China
e países do Golfo a investirem sem colocar condições de bom
comportamento democrático. Ninguém acredita que a Europa se volte a
abrir proximamente para receber estes países a quem prometeu um
futuro europeu. O que pesa hoje é o contrário: a rebeldia
nacionalista polaca ou a sombra pesada e inesperada da saída do
Reino Unido. E a falta de uma estratégia comum capaz de enfrentar o
mundo tal como ele é.
4. O ambiente no
Conselho Europeu também não foi o mais ameno. Mantêm-se
divergências profundas sobre a conclusão da reforma da UEM, para
que fique afastada uma nova crise dentro de “seis semanas, seis
meses ou seis anos”. Falta convencer a Alemanha e os países do
Norte, como a Holanda. Mark Rutte, a braços com eleições
catastróficas, dispara para todos os lados. Em casa, contra os
emigrantes. Em Bruxelas, contra os países europeus do Sul para os
quais olha como uma enorme displicência. Voltou a fazer isso neste
Conselho Europeu. Ao mesmo tempo que Jeroem Diysselbloem, o seu
ministro das Finanças que preside ao Eurogrupo, defendia a criação
de um órgão destinado a fiscalizar os take-overs de empresas
estrangeiras sobre empresas holandesas. A própria chanceler, que vai
disputar o seu quarto mandato, não está em modo de trazer para cima
da mesa as questões que falta resolver na zona euro (que ela diz que
já estão resolvidas), das quais os alemães não gostam. Ainda não
sabemos com clareza se Martin Schulz, no caso de ganhar, terá uma
política muito diferente da chanceler sobre a zona euro. Nem
conseguimos antecipar como funcionaria uma dupla Schulz-Macron. Há
apenas uma boa notícia. Talvez por causa das eleições, a economia
alemã começa a dar sinais de aceleração num sentido que pode ser
mais útil aos seus parceiros europeu. Os últimos dados sobre a
balança comercial indicam que as importações cresceram mais do que
as exportações, o que não acontecia há muito tempo na maior
máquina exportadora do mundo.
Como escrevia ontem
o Le Monde no balanço da cimeira, “os europeus dividem-se por
causa de um frasco de Nutella”. Qualquer pessoa com filhos (ou
netos) pequenos sabe o que significa um frasco de Nutella. Pelo menos
sete países de Leste convenceram Tusk a mencionar a Nutella no
comunicado final, acusando as marcas ocidentais de fabricarem um
creme de menor qualidade para os seus países. Não deviam estar
preocupados com isso, é um facto. Mas enquanto estiverem, há um
lado de normalidade que é ligeiramente tranquilizador.
O
tempo que resta para salvar a Europa
Perante
a América de Trump, a Europa tornou-se não só uma oportunidade mas
também uma necessidade.
Vicente Jorge Silva
12 de Março de
2017, 8:04
O tempo para salvar
a Europa acaba este ano, porventura o mais tardar no Outono,
encerradas as urnas na Holanda (já no próximo dia 15), na França
(a 7 de Maio) e na Alemanha (em Setembro). Mas entretanto vamos ter,
a 25 de Março, a celebração dos sessenta anos do Tratado de Roma
que lançou os alicerces da actual União Europeia (UE). Aí, na
Cidade Eterna, espera-se estabelecer os compromissos mínimos
possíveis entre os 27 que restam no clube depois da saída do Reino
Unido para manter aparentemente vivo um projecto comum.
Nunca esta Europa
nascida há seis décadas pareceu tão profundamente dividida e
frágil como agora, refém das expectativas que criou e do espaço
que se propôs abranger, num alargamento imponderado a todos os
quadrantes, do Oeste atlântico à fronteira com a antiga União
Soviética, sem levar em conta as contradições geopolíticas
insanáveis no espaço de uma geração. Daí que se fale novamente
numa Europa de geometria variável ou a diferentes velocidades –
cenário mais caro aos países fundadores e a outros como Portugal,
mas temido ou mais claramente rejeitado pelo grupo de países do
Leste que receiam a sua marginalização. Ora, um dos equívocos
fatais pode residir nisso mesmo. Se não há Europa viável sem serem
assumidas as diferenças que separam muitos dos seus Estados membros,
é precisamente por causa disso que os compromissos se tornam
inviáveis…
Significativamente,
são os países do Leste onde vigoram regimes de matriz autoritária,
onde o pluralismo e o Estado de direito não são respeitados –
como na Hungria ou na Polónia – os mais refractários a uma
redefinição do espectro europeu. Recusam-se a partilhar o
património dos valores democráticos europeus, fecham-se num
nacionalismo agressivo e xenófobo, mas, ao mesmo tempo, insistem em
não querer sair do círculo de privilégios que lhes é concedido
pelo estatuto de membros da UE. Ora, a eurocracia europeia, tão
expedita em regulamentar – por vezes até à asfixia – a vida
económico-financeira dos países mais frágeis e periféricos mas de
cultura democrática, não tem sido capaz de impor, apesar das
advertências retóricas, um idêntico rigor de comportamento aos que
não cumprem os padrões mínimos de democracia e criam eles próprios
as suas fronteiras geográficas e políticas (como se tem verificado
desde a crise dos refugiados).
O predomínio
avassalador das instâncias económico-financeiras sobre todas as
outras – com prejuízo dos princípios civilizacionais que
fundamentam o espírito europeu – provocou a maior distorção na
vida da Europa nas últimas décadas, levando a que Estados em maior
dificuldade, nomeadamente por causa da recessão e da bancarrota
bancária, como é o caso de Portugal, ficassem colocados numa
situação de dependência agravada. Se não fosse a Comissão
Europeia, o salvamento da Caixa Geral de Depósitos – apesar da
magnitude dos seus custos – não teria sido possível. Obrigado,
Europa, pelo menos serves-nos para isto…
Mas se a Europa não
é aquilo que devia ser, se o sonho europeu continua por concretizar,
a verdade nua e crua é que não temos uma verdadeira alternativa
fora da Europa – por mais que gritem em sentido oposto os profetas
do populismo de extrema-direita ou alguns ensimesmados esquerdistas.
Apesar dos ventos contrários – ou sobretudo por causa deles –
não podemos abandonar a esperança europeia, até porque só nos
restariam contrapartidas trágicas – e, não por acaso, isso foi
compreendido pelos gregos. Face ao caos do mundo e às derivas
populistas, o combate pela ideia de Europa é aquele que não podemos
deixar de travar antes que o ano acabe. Perante a América de Trump,
a Europa tornou-se não só uma oportunidade mas também uma
necessidade.
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