domingo, 12 de março de 2017

A memória e a Nutella / O tempo que resta para salvar a Europa


A memória e a Nutella
O ambiente no Conselho Europeu também não foi o mais ameno. Mantêm-se divergências profundas sobre a conclusão da reforma da UEM, para que fique afastada uma nova crise dentro de “seis semanas, seis meses ou seis anos”.

TERESA DE SOUSA
12 de Março de 2017, 5:03

1. O Conselho Europeu aprovou na sexta-feira, a 27, as conclusões (informais) apresentadas pelo seu presidente e não foi por causa do Reino Unido. A Polónia não votou. Quis protestar contra a reeleição de Donald Tusk também a 27, ignorando a oposição do país de origem do recandidato. Acusou a Europa de infringir as regras e de fazer chantagem. A “eminência parda” que dirige os destinos dos polacos, o gémeo Jaroslaw Kaczynski, invocou, como já vai sendo costume, a ocupação da Polónia durante a II Guerra, para apontar o dedo a Berlim. A primeira-ministra Beata Szydlo até pode ter razão. O problema é que não é só o Conselho Europeu que torce as regras para ultrapassar o bloqueio das suas decisões por um só país. O Governo polaco tem torcido ainda mais os princípios constitutivos da União Europeia, nomeadamente o Estado de Direito, com alterações que põem em causa a independência dos tribunais ou a liberdade de imprensa, ignorando os avisos da Comissão. E resta ainda à Polónia outro problema: arrisca-se a ficar sozinha. Não pôde contar com o outro país infractor, a Hungria, que não quer arriscar um confronto com Bruxelas. Votou disciplinadamente a eleição de Donald Tusk e as conclusões da cimeira, como tem sempre votado a renovação das sanções contra a Rússia, mesmo que Viktor Órban se declara amigo de Putin e do seu modo de governar.

2. Há já um historial de braços-de-ferro com a Polónia em Conselhos Europeus. Angela Merkel teve uma paciência infinita com os irmãos Kaczynski (Lech morreu num acidente de aviação quando era Presidente) durante a cimeira de Junho de 2007, sob presidência alemã, que visava aplanar o terreno para a aprovação do Tratado de Lisboa que acabou por ser aprovado em Outubro, durante a presidência portuguesa. O Governo de Varsóvia, do mesmo partido que hoje está no poder, insistia em bloquear um acordo (por causa dos sistemas de votação), atirando os trabalhos para alta madrugada, sem que Merkel perdesse a paciência. Desta vez, a chanceler e alguns dos seus pares já não estão dispostos a fazer madrugadas, o que é bom e é mau, ao mesmo tempo. O partido ultraconservador de Kaczynski perdeu logo a seguir as eleições para Donald Tusk, que abriu as portas a uma convivência muito melhor com os seus parceiros europeus, ao ponto de fazer dele, em 2014, o presidente do Conselho Europeu. A chanceler esforçou-se por restabelecer uma boa relação com a Polónia e percebe-se porquê. Tê-la a bordo é uma necessidade histórica e um garante de que a Alemanha não ficará de novo isolada no centro da Europa. O triste episódio do gasoduto (North Stream), ligando directamente a Rússia à Alemanha e contornando a Polónia, protagonizado por Gerhart Schroeder, então chanceler social-democrata e depois um grande amigo de Putin, não foi um dos melhores momentos de Berlim para ganhar a confiança da Polónia. Há feridas que ficam e que os nacionalismos estão sempre a invocar. Mas também não valia a pena a François Hollande ter insinuado que Varsóvia podia ser penalizada com cortes nos fundos, se não respeitasse os valores europeus. A resposta da primeira-ministra polaca foi num tom absolutamente inaceitável, ultrapassando quase todos os limites. Da mesma maneira que é preciso compreender que a paciência da chanceler tenha limites, quando, na mesma semana, Varsóvia recorda o passado nazi do seu país e o Presidente turco resolve fazer a mesma coisa, por causa dos votos da comunidade turca que vive na Alemanha (muito grande), que ele quer assegurar para o referendo sobre uma nova constituição que lhe dará poderes quase absolutos. Por razões de segurança e de aviso prévio, as entidades locais não deram autorização para os comícios que o seu Governo queria organizar. Seguiu-se, depois, a Holanda, onde as mesmas restrições mereceram de Erdogan a classificação de “quase nazi”. Mais uma vez, são os princípios que estão em causa. A Turquia nunca poderá aceder à União Europeia se Erdogan continuar a ignorar as regras de uma sociedade democrática e a criar um regime autoritário para si próprio. Merkel tem feito o que pode para manter o seu país aberto aos que já lá vivem e aos que chegaram agora fugidos à guerra na Síria. Aliás, uma das razões pelas quais a chanceler não estava inicialmente disposta a bater-se demasiado pela recondução de Tusk, foi a oposição que ele fez à sua política corajosa e decente de abertura aos refugiados. Tusk, nesta matéria, não deixou de ser polaco e Merkel não deixou de ser Merkel, com todos os seus defeitos e virtudes.

3. Um dos pontos que esteve presente, pelo menos no papel, no encontro da semana passada foi a situação nos Balcãs. A instabilidade está a regressar à região e a capacidade europeia de influenciar os seus governos com o isco da futura adesão já se perdeu. Mogherine viu uma parte do Parlamento sérvio vaiá-la com uma frase que explica quase tudo: “Sérvia e Rússia, não precisamos da UE”. A presença desestabilizadora da Rússia faz-se sentir cada vez mais numa região onde a Europa ainda tem milhares de soldados e investe milhões de euros. A assistência financeira já não chega, com a Turquia, China e países do Golfo a investirem sem colocar condições de bom comportamento democrático. Ninguém acredita que a Europa se volte a abrir proximamente para receber estes países a quem prometeu um futuro europeu. O que pesa hoje é o contrário: a rebeldia nacionalista polaca ou a sombra pesada e inesperada da saída do Reino Unido. E a falta de uma estratégia comum capaz de enfrentar o mundo tal como ele é.

4. O ambiente no Conselho Europeu também não foi o mais ameno. Mantêm-se divergências profundas sobre a conclusão da reforma da UEM, para que fique afastada uma nova crise dentro de “seis semanas, seis meses ou seis anos”. Falta convencer a Alemanha e os países do Norte, como a Holanda. Mark Rutte, a braços com eleições catastróficas, dispara para todos os lados. Em casa, contra os emigrantes. Em Bruxelas, contra os países europeus do Sul para os quais olha como uma enorme displicência. Voltou a fazer isso neste Conselho Europeu. Ao mesmo tempo que Jeroem Diysselbloem, o seu ministro das Finanças que preside ao Eurogrupo, defendia a criação de um órgão destinado a fiscalizar os take-overs de empresas estrangeiras sobre empresas holandesas. A própria chanceler, que vai disputar o seu quarto mandato, não está em modo de trazer para cima da mesa as questões que falta resolver na zona euro (que ela diz que já estão resolvidas), das quais os alemães não gostam. Ainda não sabemos com clareza se Martin Schulz, no caso de ganhar, terá uma política muito diferente da chanceler sobre a zona euro. Nem conseguimos antecipar como funcionaria uma dupla Schulz-Macron. Há apenas uma boa notícia. Talvez por causa das eleições, a economia alemã começa a dar sinais de aceleração num sentido que pode ser mais útil aos seus parceiros europeu. Os últimos dados sobre a balança comercial indicam que as importações cresceram mais do que as exportações, o que não acontecia há muito tempo na maior máquina exportadora do mundo.


Como escrevia ontem o Le Monde no balanço da cimeira, “os europeus dividem-se por causa de um frasco de Nutella”. Qualquer pessoa com filhos (ou netos) pequenos sabe o que significa um frasco de Nutella. Pelo menos sete países de Leste convenceram Tusk a mencionar a Nutella no comunicado final, acusando as marcas ocidentais de fabricarem um creme de menor qualidade para os seus países. Não deviam estar preocupados com isso, é um facto. Mas enquanto estiverem, há um lado de normalidade que é ligeiramente tranquilizador.  


O tempo que resta para salvar a Europa
Perante a América de Trump, a Europa tornou-se não só uma oportunidade mas também uma necessidade.

Vicente Jorge Silva
12 de Março de 2017, 8:04

O tempo para salvar a Europa acaba este ano, porventura o mais tardar no Outono, encerradas as urnas na Holanda (já no próximo dia 15), na França (a 7 de Maio) e na Alemanha (em Setembro). Mas entretanto vamos ter, a 25 de Março, a celebração dos sessenta anos do Tratado de Roma que lançou os alicerces da actual União Europeia (UE). Aí, na Cidade Eterna, espera-se estabelecer os compromissos mínimos possíveis entre os 27 que restam no clube depois da saída do Reino Unido para manter aparentemente vivo um projecto comum.

Nunca esta Europa nascida há seis décadas pareceu tão profundamente dividida e frágil como agora, refém das expectativas que criou e do espaço que se propôs abranger, num alargamento imponderado a todos os quadrantes, do Oeste atlântico à fronteira com a antiga União Soviética, sem levar em conta as contradições geopolíticas insanáveis no espaço de uma geração. Daí que se fale novamente numa Europa de geometria variável ou a diferentes velocidades – cenário mais caro aos países fundadores e a outros como Portugal, mas temido ou mais claramente rejeitado pelo grupo de países do Leste que receiam a sua marginalização. Ora, um dos equívocos fatais pode residir nisso mesmo. Se não há Europa viável sem serem assumidas as diferenças que separam muitos dos seus Estados membros, é precisamente por causa disso que os compromissos se tornam inviáveis…

Significativamente, são os países do Leste onde vigoram regimes de matriz autoritária, onde o pluralismo e o Estado de direito não são respeitados – como na Hungria ou na Polónia – os mais refractários a uma redefinição do espectro europeu. Recusam-se a partilhar o património dos valores democráticos europeus, fecham-se num nacionalismo agressivo e xenófobo, mas, ao mesmo tempo, insistem em não querer sair do círculo de privilégios que lhes é concedido pelo estatuto de membros da UE. Ora, a eurocracia europeia, tão expedita em regulamentar – por vezes até à asfixia – a vida económico-financeira dos países mais frágeis e periféricos mas de cultura democrática, não tem sido capaz de impor, apesar das advertências retóricas, um idêntico rigor de comportamento aos que não cumprem os padrões mínimos de democracia e criam eles próprios as suas fronteiras geográficas e políticas (como se tem verificado desde a crise dos refugiados).

O predomínio avassalador das instâncias económico-financeiras sobre todas as outras – com prejuízo dos princípios civilizacionais que fundamentam o espírito europeu – provocou a maior distorção na vida da Europa nas últimas décadas, levando a que Estados em maior dificuldade, nomeadamente por causa da recessão e da bancarrota bancária, como é o caso de Portugal, ficassem colocados numa situação de dependência agravada. Se não fosse a Comissão Europeia, o salvamento da Caixa Geral de Depósitos – apesar da magnitude dos seus custos – não teria sido possível. Obrigado, Europa, pelo menos serves-nos para isto…

Mas se a Europa não é aquilo que devia ser, se o sonho europeu continua por concretizar, a verdade nua e crua é que não temos uma verdadeira alternativa fora da Europa – por mais que gritem em sentido oposto os profetas do populismo de extrema-direita ou alguns ensimesmados esquerdistas. Apesar dos ventos contrários – ou sobretudo por causa deles – não podemos abandonar a esperança europeia, até porque só nos restariam contrapartidas trágicas – e, não por acaso, isso foi compreendido pelos gregos. Face ao caos do mundo e às derivas populistas, o combate pela ideia de Europa é aquele que não podemos deixar de travar antes que o ano acabe. Perante a América de Trump, a Europa tornou-se não só uma oportunidade mas também uma necessidade.

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