Cais
do Ginjal. Da fortuna à decadência
02 Maio 20151.076
Marlene Carriço
Enclausurado entre a
falésia e o rio Tejo, o Cais do Ginjal foi em tempos ponto
estratégico de forte atividade industrial e comercial. Hoje,
resta-lhe a paisagem privilegiada, as memórias e ruínas.
“Aí é que você
não está muito bem. Ainda na semana passada me caiu mesmo aqui à
frente da cabeça uma pedra que se soltou das paredes. Não morri por
um triz. Isto está tudo a cair, não vê? Olhe ali. E ali. Ali então
está tudo podre”. Margarida Martins vai apontando
indiscriminadamente para as paredes em redor, ao mesmo tempo que diz
não ter dúvidas do risco que corre neste velho edifício do Cais do
Ginjal, em Cacilhas, onde entra, diariamente, há três anos.
A mulher, na casa
dos 60 anos, prefere ainda assim correr o risco, até porque, como
diz, “a morte é certa” e ali sempre fica mais abrigada do frio,
no inverno, quando vai alimentar as dezenas de gatos que se passeiam
pelo cais, nas margens do Tejo. No verão já não faz frio junto ao
rio, mas o hábito vence e acaba por se sentar no mesmo sítio.
“Até há dois
meses ainda havia gente a morar ali na casa principal, mas a senhora,
que sempre viveu lá, saiu em março e entregou a chave ao
proprietário”, apressa-se a relatar Margarida Martins, explicando
que têm sido os proprietários a pôr tijolos nas portas e janelas
dos edifícios, nos últimos anos, e a tornar impossível a vida
naqueles prédios que hoje mais não são do que um monte de paredes
devolutas. Os telhados, esses, já não existem. Mesmo assim há quem
continue a encontrar abrigo por estas bandas.
"Isto é uma
miséria. Dá-me pena tudo estar ao abandono. Trabalhava aqui tanta
gente..."
Helder Gonçalves,
pescador
Margarida não se
lembra do espaço industrial de outrora. Tudo estava fechado quando
começou a ir para lá à pesca, não faz muitos anos. Já para
Helder Gonçalves as memórias são outras e mais antigas. Agora com
69 anos, tinha 19 quando começou a pescar neste cais. “Há 50 anos
ainda o Ginjal tinha vida”, lembra com alguma saudade. “Isto é
uma miséria. Dá-me pena tudo estar ao abandono. Trabalhava aqui
tanta gente”, conta o antigo trabalhador da Siderurgia Nacional,
enquanto ajeita a linha no carreto.
Onde Helder
Gonçalves está hoje a tentar a sorte para o almoço, antes
atracavam arrastões (barcos de pesca com redes de arrasto)
bacalhoeiros e outras canoas cacilheiras, fragatas e faluas,
lembra-se bem. Mas já naquela altura havia autorização para as
pessoas pescarem. E onde agora se veem fachadas de edifícios com
janelas e portas tapadas com tijolos, salvo uma ou outra exceção,
antes operavam armazéns de apoio à frota bacalhoeira, tanoarias,
armazéns de carvão e de outros mantimentos para abastecimento da
frota pesqueira, armazéns de vinho, azeite e vinagre e fábricas de
conservas de peixe. Havia também casas, quintas, tabernas e casas de
pasto.
No século XIX
nascia o Cais do Ginjal
“Isto tinha uma
vida, queira lá saber. Era quase tudo homens, mas também havia
algumas mulheres a trabalhar nas cantinas”. “Ali”, diz o
pescador já de costas voltadas para o rio, ao mesmo tempo que aponta
para o fundo à direita, “era o ti Toino Pereira da adega”.
Mas o “ti Toino
Pereira” de Helder é, afinal, Teotónio Pereira, que não tinha só
uma adega. E é aqui que começamos a recuar no tempo, até ao século
XIX.
A família Theotónio
Pereira tinha uma longa tradição no mundo financeiro segurador,
nomeadamente na Companhia de Seguros Fidelidade, e teve uma forte
ligação ao mundo da política.
Corria 1845 quando
João Teotónio Pereira, ligado ao comércio, se instalou no Cais do
Ginjal, levando a indústria de abastecimento de água aos navios e
armazéns de vinho, azeite e vinagre. Construiu também uma
residência e uma quinta, com várias árvores de frutos e muita
ginja, nas traseiras dos edifícios, onde passava férias mais a
família. “Era gente de bem”, descreve o pescador Helder. E não
diz nenhuma mentira.
A família Theotónio
Pereira tinha uma longa tradição no mundo financeiro segurador,
nomeadamente na Companhia de Seguros Fidelidade, e teve uma forte
ligação ao mundo da política. Um exemplo: Pedro Teotónio Pereira,
neto de João Teotónio Pereira, chegou a ser subsecretário de
Estado das Corporações e Previdência Social e Ministro do Comércio
e Indústria, sob a liderança de Salazar, e é considerado por
alguns como um dos seus principais interlocutores. Foi também ele o
escolhido para ser embaixador de Portugal nos Estados Unidos durante
a II Guerra Mundial. Outro dos irmãos, Luís Teotónio Pereira, foi
presidente da Câmara Municipal de Almada, presidente do Grémio do
Comércio de Exportação de Vinhos, presidente do Grémio dos
Exportadores de Azeite, integrou a Câmara Corporativa e foi deputado
à Assembleia Nacional.
Foi o neto de Luís
Teotónio Pereira que o Observador descobriu. Numa conversa por
telefone, André Teotónio Pereira começa por esclarecer: “o cais
foi feito por nós, com dinheiro privado”. Este tetraneto de João
Teotónio Pereira, que continua à frente do negócio de vinhos,
azeites e vinagres, com escritório no Cais do Sodré, em Lisboa,
sabe a história de fio a pavio. E os registos do Centro de
Arqueologia de Almada confirmam-na.
A verdade é que o
Cais do Ginjal sempre foi privado, embora tenha resultado de uma
exigência da Câmara Municipal de Almada, em 1860. Com vários
investidores interessados naqueles terrenos, a autarquia começou a
aforar lotes, obrigando à construção de uma parcela de cais em
frente aos edifícios.
E assim nasceu o
Cais, ponto de passagem e paragem quase obrigatória. Localizado num
sítio estratégico, frente à capital e perto da barra do Tejo, O
Ginjal foi muito importante numa época em que todo o trânsito se
fazia por via fluvial. E durante largos anos teve muita atividade,
muita vida e muita gente.
E tudo a Ponte
Salazar levou
O início da queda
veio anos mais tarde. O “grande símbolo do futuro”, como foi
anunciada quando da sua inauguração em 1966, é apontado como
principal motivo do abandono deste cais. É isso mesmo, a Ponte
Salazar, hoje Ponte 25 de Abril, tirou o fulgor àquele pedaço de
terra pois o rio “deixou de ser a principal autoestrada” e a via
rodoviária destronou a fluvial, segundo permitem perceber os
arquivos históricos, referidos pelo Centro Arqueológico da cidade.
A este motivo acrescem outros como a criação de cooperativas
vinícolas, a proibição de exportação de vinho em barris, a
descolonização – as colónias eram importantes mercados para o
vinho, azeite e conservas – e a concorrência externa na pesca do
bacalhau.
Mas para André
Teotónio Pereira a explicação para o fim do Ginjal é outra. “O
meu avô Luís, a quem o meu bisavô tinha delegado a gestão dos
negócios do Ginjal, zangou-se com os irmãos. Um deles morreu cedo,
o meu tio Pedro passava a vida a viajar e aquilo acabou por ficar em
autogestão entregue aos empregados e foi morrendo lentamente”,
resume.
O "grande
símbolo do futuro”, como foi anunciada a Ponte Salazar (atual 25
de Abril) aquando da sua inauguração em 1966, é apontado como
principal motivo do abandono deste cais.
Em 1973, ainda antes
da Revolução, já a família de André estava a vender os tonéis à
Taylor’s, uma das mais antigas casas de comércio do vinho do
Porto, e a indemnizar os trabalhadores. E não foi só esta família
que começou a saltar fora. Também outras detentoras de edifícios
no Ginjal sentiram muitas dificuldades, acabando os bancos por ficar,
na altura, com muitas parcelas. Com o 25 de Abril, vários edifícios
foram ocupados e a degradação não mais parou desde então, atesta
André Teotónio Pereira.
Entretanto, em 1986,
os Teotónio Pereira regressaram ao Ginjal, onde instalaram uma
fábrica de formas de alumínio, mas saíram novamente passado dez
anos, para Sintra.
Projetos que não
saem do papel. Degradação que se agrava
E foi precisamente
nos anos 1990 que um consórcio de proprietários (credores das
anteriores empresas) tentaram, juntamente com a Câmara Municipal de
Almada, avançar com um projeto de reabilitação para este local,
que acabou por não ir para a frente.
Os projetos de
reabilitação do Cais do Ginjal nunca saíram do papel. O último
previa a criação de uma praia, de um jardim, habitação para
jovens e espaços culturais.
Mas esse foi só o
primeiro projeto. Em 2009, já depois de a empresa Tejal –
Empreendimentos Imobiliários Lda ter comprado mais de 90% da área
do Cais do Ginjal, foi assinado um protocolo tendo em vista a
elaboração de um Plano de Pormenor para o desenvolvimento urbano da
área do Ginjal.
E esse projeto de
plano prevê que seja desde logo garantida a estabilização
sustentável da arriba e que as obras respeitem a primeira linha da
fachada dos edifícios. Mas estão previstas muitas novidades:
criação de praças urbanas e miradouros, uma praia e um jardim, a
abertura de espaços culturais, ateliers e escolas de artes, a
construção de habitação para jovens, bem como a melhoria das
condições de acessibilidade ao Cais, com zonas de cargas e
descargas e um silo automóvel.
A Câmara Municipal
de Almada explica o atraso com “o quadro de dificuldades económicas
e financeiras dos últimos anos”, mas não deixa de atribuir as
responsabilidades pela recuperação do espaço à empresa
proprietária, a Tejal, que, contactada pelo Observador, não quis
prestar esclarecimentos. De resto, poucos dos que vão ao Cais sabem
a quem pertence. “Já ouvi dizer que é tudo da filha do Presidente
e do Joe Berardo”, diz um transeunte que vem a passar, arriscando
uma resposta. E nem quem usufrui de espaços cedidos pelos donos,
como os pescadores que lá estão em permanência há 30 anos, e que
guardam material nos edifícios mais seguros, próximos do cais de
embarque para Lisboa, têm exata noção de quem manda ali. “São
dois irmãos açorianos”, respondem.
A verdade é que
mesmo que poucos saibam quem são, os donos do Ginjal existem e a
Câmara Municipal de Almada sabe quem são. Tem até “procedido a
notificações consecutivas da proprietária no sentido de serem
concretizadas as intervenções de conservação e proteção
necessárias à prevenção de quaisquer acidentes”, sem contudo
obter qualquer resposta. Com o Cais cada vez mais degradado e mais
perigoso para as pessoas, sobretudo turistas, que diariamente se
passeiam junto ao Tejo, a autarquia tem aumentado o número de avisos
de risco de derrocada.
Em fevereiro último,
a Câmara Municipal de Almada, a Agência Portuguesa do Ambiente e a
Administração do Porto de Lisboa fizeram uma vistoria ao local,
tendo concluído pela urgência de uma intervenção imediata com
obras de contenção do cais. Chegaram a colocar sinais a indicar a
proibição de circulação de carros, mas esses sinais foram
roubados e as proteções desviadas. O pior aconteceu a 25 de abril
de 2015. Um carro capotou numa zona do cais onde uma parte do chão
já tinha abatido anteriormente. O estrago foi agora bem maior e a
viatura mantém-se no local, pois terá de ser o proprietário a
retirá-la.
Com um cenário cada
vez pior, a Câmara já anunciou que vai avançar com algumas obras
no Cais, nas zonas de maior perigo, designadamente onde se encontra
caído o veículo. Porém, questionada, não diz quando, nem onde,
nem o que vai ser feito.
Quem anseia por
obras são os gerentes de dois restaurantes no Cais do Ginjal, que
ocupam duas antigas casas de pasto que tornavam aquele local ainda
mais apetitoso para os pescadores e navegadores, há mais de 50 anos.
Hoje, os clientes são maioritariamente turistas estrangeiros que
questionam o que havia ali antes e o porquê de a zona estar tão
degradada. Mas o ambiente devoluto não os afasta, garantem. “Os
turistas adoram isto. Tudo, desde a comida, à paisagem para Lisboa,
ao facto de estarem a comer perto do rio e com sol”, relata
Dulcínia Coelho, sócia-gerente do restaurante Ponto Final.
“Mas gostávamos
que isto fosse revitalizado. O Cais ganharia outra vida. Afinal, esta
é uma das portas de Almada. Se fosse revitalizada, ganharíamos
todos”, remata.
Texto de Marlene
Carriço, fotografia de Hugo Amaral.
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