segunda-feira, 6 de março de 2017

Presidenciais agravam crise política francesa / Um míssil no porta-aviões


Presidenciais agravam crise política francesa

Fillon permanece em campanha. Mas com a direita ameaçada de implosão e a esquerda estilhaçada, com os dois grandes partidos em risco de ficar fora da segunda volta das presidenciais, é o sistema político que está em causa.

Jorge Almeida Fernandes
JORGE ALMEIDA FERNANDES 7 de Março de 2017, 7:12

Um dos pilares da política francesa, a “direita tradicional”, está há semanas à beira da implosão, mas isso não se traduz num lucro da esquerda. Se a direita agoniza, a esquerda está estilhaçada. É uma situação extraordinária em que as duas grandes famílias políticas, a esquerda e a direita, podem ficar de fora da segunda volta das eleições presidenciais. As manobras anularam todo o debate político, inclusive contra Marine Le Pen.

Olhemos os últimos factos. Na segunda-feira, o comité político do partido Os Republicanos (LR, direita) cedeu a François Fillon, apelando à “unidade em torno da candidatura”. Depois de ter tentado forçar a sua desistência, o LR tenta encerrar uma “guerra civil interna”. Mas as fracturas do partido parecem consumadas.

A pressão para o afastamento de Fillon decorria dos erros cometidos na campanha, designadamente o ataque aos magistrados e uma derrapagem direitista. Mas sobretudo pela manifesta possibilidade de ser eliminado na primeira volta (23 de Abril). Fillon tinha contudo um pesado trunfo: sem a sua anuência o LR não pode mudar de candidato. O partido está refém. E, no domingo, Fillon desafiou os rivais no comício do Trocadero em Paris, em que foi manifesta a radicalização dos seus apoiantes.

De manhã, o antigo primeiro-ministro Alain Juppé, mais próximo do centro e com uma posição “vencedora” nas sondagens, anunciou a sua renúncia à candidatura presidencial. A declaração de Juppé foi um libelo contra Fillon, contra a sua “obstinação” e o ataque à justiça, falando num “assassínio político” e num “pretenso complot” no caso dos empregos fictícios de sua mulher: “Como mostrou a manifestação no Trocadéro, o núcleo dos militantes do LR radicalizou-se.”

Os apoiantes de Juppé atribuem a sua desistência a Nicolas Sarkozy. Comentou um deles: “Sarkozy prefere perder com Fillon a ganhar com Juppé.” A rivalidade entre eles vem de longe.

A erosão dos partidos
Escrevia há semanas o politólogo Pascal Perrineau: “Um vento de loucura parece soprar sobre a campanha da eleição presidencial. Cada dia traz mais um lote de informações, de revelações e também de ajustes de contas.” Acrescentou dias depois: “A eleição presidencial que se organizava desde há lustros em torno da clivagem esquerda-direita, parece hoje ter desertado das duas famílias bisseculares para ser habitada pelo conflito entre os ‘nacionais’ e os ‘cosmopolitas’, para usar o jargão de Marine le Pen.”

Esta nova clivagem atravessa a esquerda e a direita. Benôit Hamon, candidato do Partido Socialista, e o seu rival esquerdista, Jean-Luc Mélenchon, assumem os temas do proteccionismo e da anti-globalização contra o “cosmopolitismo” do primeiro-ministro Manuel Valls — derrotado nas primárias do PS — ou do independente Emmanuel Macron. Este define o seu combate como o dos “progressistas” contra os “conservadores” de esquerda e direita, e procura ocupar os espaços do centro-esquerda e do centro-direita. O LR defende posições económicas liberais. A Frente Nacional (FN, extrema-direita) de Marine Le Pen propõe a saída do euro, o proteccionismo e o nacionalismo económico que casou com o nacionalismo étnico.

Por trás das “anomalias” está a erosão dos grandes partidos e a dcrescente desconfiança dos cidadãos no sistema político, um fenómeno europeu que ultrapassa as fronteiras da França. O primeiro barómetro deste ano do Cevipof (centro de investigação de Sciences Po) reporta que 89% dos inquiridos dizem que os seus representantes não se preocupam com o que eles pensam. Esta desconfiança tende a ser capitalizada sobretudo pela FN.

Aos olhos dos franceses, o governo de François Hollande falhou. As primárias do PS foram ganhas pelos seus dissidentes de esquerda, que fizeram sistemática oposição ao governo do partido. Hollande é o primeiro Presidente da V República que desiste de se candidatar a um segundo mandato: é a constação do fracasso. E Sarkozy, o seu antecessor de direita, não so perdeu as presidenciais de 2012 como as próprias primárias do LR em Novembro passado.

A conjugação de todos estes factores “extraordinários” abriu uma avenida para a candidatura centrista de Emmanuel Macron. Primeiro, a incapacidade da esquerda se unir em volta de uma identidade comum, depois a derrapagem da campanha de Fillon, que em Novembro parecia já estar eleito.

Le Pen sorri
Em ambos os pólos se anunciam ajustes de contas. A hipótese de Hamon passar à segunda volta é cada vez mais longínqua e não será ajudado por Mélenchon, cujo objectivo estratégico é destruir o PS para se arvorar em líder da esquerda. Valls foi marginalizado, pelo partido e por Macron. Como se irá recompor o PS, ou a que novas formações dará lugar o estilhaçamento da esquerda?

E à direita? Marine aguarda a derrota de Fillon para recuperar a franja mais radical dos seus eleitores, no objectivo de fracturar a “direita tradicional” e criar uma “direita nacional” por ela hegemonizada. Se Fillon for eliminado na primeira volta, anuncia-se uma guerra fratricida entre chefes e clãs. “É muito preocupante”, observa Le Monde: “Marine Le Pen esfrega as mãos. O seu programa não tem sido questionado e o tempo do ‘são todos corruptos’ nunca foi tão explosivo.”


Um míssil no porta-aviões

Se a França “cair”, a Europa, como a conhecemos, cairá com ela, mesmo que ainda seja difícil antecipar as possíveis saídas para essa catástrofe política.

Teresa de Sousa
7 de Março de 2017, 7:12

1. É quase escusado dizer que, na maioria das capitais europeias, as eleições presidenciais francesas estão a tirar o sono a muita gente. A pouco mais de um mês da primeira volta, tudo parece ainda possível. A sombra de Marine Le Pen pesa cada vez mais sobre um país que é central para a integração europeia, desde o momento da sua fundação. A crise da direita abre-lhe ainda mais espaço. A sua eleição, mesmo que improvável, seria um míssil no porta-aviões. François Hollande, numa entrevista a seis jornais europeus, lembrou que nunca o partido nacionalista foi tão forte como hoje. O Presidente francês recebeu também ontem, em Versalhes, os líderes dos maiores países da União Europeia, menos o Reino Unido, para pensar o que pode e deve acontecer na cimeira que vai assinalar os 60 anos do Tratado de Roma, a 25 de Março. À mesa estiveram líderes com sensibilidades distintas quanto ao que é preciso fazer. Hollande quer deixar alguma “arrumação” no eixo Paris-Berlim, onde as bases de entendimento não abundam. Na mesma entrevista, disparou em duas direcções. Insistiu na necessidade de uma Europa a várias velocidades, para a qual já conquistou a chanceler, mesmo que não se saiba ainda em que termos. Apelou a Theresa May para que não se desvincule de uma futura defesa europeia, fundamental no actual quadro de instabilidade mundial. Os dois países sempre se assumiram como as duas potências militares de vocação global.

2. A Europa viveu as últimas décadas assente num equilíbrio de poder entre os três “grandes”: França, Alemanha e Reino Unido. Cada um dos maiores países da União encontrava num terceiro uma forma de contrabalançar o outro. Se Berlim precisava de Londres para manter um modelo de economia aberta e a liberalização dos mercados, Paris via na Grã-Bretanha um “companheiro de armas” que lhe permitia balançar o poder económico alemão. A crise europeia, com o "Brexit" e a afirmação da Alemanha, acabou por abanar profundamente este equilíbrio. A América, com a eleição de Trump, deixará provavelmente de exercer a missão de garantir que nenhum país se sobrepusesse aos outros. O rearmamento da Alemanha, imposto pelo compromisso dos países da NATO com um gasto de 2% do PIB na defesa, não é ainda totalmente pacífico – nem para os europeus, nem para os alemães. Mas o tempo de uma Alemanha que se desvinculava das acções militares de Londres e de Paris já desapareceu. Há cinco anos, Merkel ainda dizia que não tinha nada a ver com a intervenção militar da França no Mali. Hoje, diz o contrário, porque percebeu o terrorismo e a nova ameaça a Leste, vinda de Moscovo. Os dois países querem agora dotar Bruxelas de um “pequeno” quartel-general capaz de coordenar uma operação de natureza militar, que esteja fora do âmbito da Aliança (ontem, os chefes da diplomacia e os ministros da Defesa decidiram a favor de um embrião desse quartel-general apenas para missões de treino militar noutros países). Mas o desenho do que poderá ser essa defesa europeia ainda está no início e não pode depender apenas da vontade de Merkel e de Hollande. A Alemanha ainda precisa da França para se sentir confortável no papel de liderança europeia. Os governos de pendor nacionalistas que se instalaram em Varsóvia ou Budapeste, tentados por uma retórica antigermânica, não deixam a chanceler descansada. Como escrevia Gideon Rachman no Financial Times, tudo o que a chanceler não quer é uma Alemanha isolada no centro da Europa.

3. Outros equilíbrios fundamentais estão em fase de acelerada mutação. O equilíbrio entre Conselho e Comissão está a ser posto em causa, claramente a favor dos governos. A erosão do poder da Comissão é prejudicial para os países mais pequenos, que deixaram de ter nela o garante da defesa dos seus interesses contra os grandes. A crise financeira e económica, que abalou profundamente a União Monetária, criou mais um desequilíbrio que acabará por ser insustentável: entre os países do Norte e os do Sul. A França é, justamente, o único país que tem lugar nos dois lados e uma vocação de charneira.

Se a França “cair”, a Europa, como a conhecemos, cairá com ela, mesmo que ainda seja difícil antecipar as possíveis saídas para essa catástrofe política. Na Itália, a instabilidade política vai manter-se. Na Holanda, que continua a ser rica, a eventual vitória de Geert Wilders (15 de Março) e a dispersão de votos por um número anormalmente elevado de partidos, dificultará a estabilidade governativa e aumentará a pressão para um referendo. E nem é preciso dizer que, se Le Pen conseguir 40% dos votos na segunda volta e a capacidade de eleger algumas dezenas de deputados nas legislativas (as sondagens variam entre 40 e 80), nem a França nem a Europa voltarão a ser as mesmas.

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