Tribunal
manda recolher livro de José António Saraiva
Relação
de Lisboa considera que dois parágrafos da obra violam intimidade da
jornalista Fernanda Câncio. Trecho relativo à vida privada da
repórter terá de ser retirado de eventuais novas edições do
livro.
MARIANA OLIVEIRA 6
de Março de 2017, 19:12 actualizado a 6 de Março às 20:05
O Tribunal da
Relação de Lisboa ordenou à editora Gradiva que recolha dos
distribuidores, no prazo de 20 dias, os exemplares do último livro
do ex-director do semanário Sol, José António Saraiva, intitulado
Eu e os Políticos, lançado em Setembro passado. A decisão foi
proferida no âmbito de um recurso de uma providência cautelar
apresentada pela jornalista Fernanda Câncio, que pedia a apreensão
de todos os exemplares do livro e a proibição da sua venda, por
considerar que o mesmo invadia a sua intimidade, já que violava o
seu direito à reserva da vida privada e ao bom nome.
Um colectivo de três
juízes deu-lhe razão, tendo determinado ainda que os dois
parágrafos relativos à vida privada da repórter do Diário de
Notícias terão de ser eliminados em eventuais novas edições do
livro. Esta decisão, datada de final de Fevereiro, revoga uma
anterior em que uma juíza da primeira instância recusou as
pretensões da jornalista. Essa sentença considerava que o era dito
no livro não merecia tutela cautelar e que a liberdade de expressão
do autor devia prevalecer. "Na verdade, pese embora se
compreenda a indignação da requerente, no caso em apreço uma
concepção menos ampla de liberdade de expressão faz surgir o risco
de que os tribunais possam funcionar como órgão de censura,
inibindo asssim a liberdade de expressão, o que não é legalmente
admissível aos tribunais", lia-se na decisão agora
substituída.
Na base do diferendo
está um episódio relatado na página 165 do livro que diz respeito
a um detalhe de uma antiga relação afectiva da jornalista, que mais
tarde foi namorada do ex-primeiro-ministro, José Sócrates.
José António
Saraiva ainda não decidiu se vai tomar alguma posição - segundo a
defesa de Fernanda Câncio a decisão da Relação de Lisboa é
irrecorrível -, mas isso não o impede de "discordar
completamente" do acórdão, que, contudo, promete acatar.
Considera que foi censurado e promete, em futuras edições do livro,
colocar uma tarja negra sobre os dois parágrafos em causa, para se
perceber que "uma parte do texto foi censurada". O antigo
director do Sol diz ter ficado surpreendido com a providência
cautelar apresentada por Câncio, classificando esta passagem do
livro como "relativamente inóqua". O autor do livro diz
que a intenção do relato foi fazer um "retrato rápido de uma
pessoa que foi talvez a namorada mais mediática do primeiro-ministro
José Sócrates" e lembra que o episódio é relatado num
capítulo dedicado ao antigo governante.
Fernanda Câncio
contesta que esteja em causa uma censura e mostra-se "muito
contente" por verificar que os tribunais portugueses "ainda
valorizam os direitos de personalidade". A jornalista destaca o
sentido pedagógico do acórdão, que, sem negar a importância da
liberdade de expressão, explica em que circunstância este direito
deve ceder perante outros igualmente com tutela constitucional. "Este
acórdão explica o que é a liberdade de expressão, para que serve
e que fronteiras tem que respeitar. E lembra que não existe só um
direito fundamental, existem vários", sublinha. E remata:
"Apenas estou a defender os meus direitos consagrados na
Constituição. A lutar pela dignidade da pessoa".
Para os juízes do
Tribunal da Relação de Lisboa, Isoleta Almeida Costa, Octávia
Viegas e Rui Ponte Gomes, a descrição feita no livro “trata-se de
uma evidente invasão da zona da vida privada da requerente, e nesta,
parcialmente, na sua esfera íntima”. O livro identifica a
jornalista pelo nome e descreve factos de cariz pessoal, realçam.
"Escrito
destinado a lazer"
Os magistrados
admitem que neste caso estão em conflito dois direitos fundamentais
a liberdade de expressão e a protecção da vida privada, mas
consideram que este último deve prevalecer já que, neste caso, não
existe um interesse público superior que justifique a divulgação.
“Trata-se de um escrito destinado a lazer”, notam os juízes, que
recordam que o próprio autor o caracteriza como um livro de
memórias.
O tribunal considera
que “não pode razoavelmente manter em venda os livros publicados
com tal referência”, desvalorizando o facto de estar em causa
apenas uma página num total de 263. “(…) A reposição cabal e
sem atropelos ao direito da apelante pode ser efectuada de imediato",
dizem os magistrados sublinhando que "esta medida é necessária
à prevenção da lesão”. E defendem: “Na verdade, se o fim de
quem escreve ou informa não extravasa o simples domínio do privado,
sem qualquer dimensão pública, o direito à reserva da vida privada
não pode ser sacrificado para salvaguarda da liberdade de expressão
e de informação”.
Os juízes rejeitam
ainda um argumento apresentado por José António Saraiva que alegou
que a apreensão do livro seria inútil, já que a obra circula na
Internet numa edição ilegal, mas facilmente acessível a qualquer
pessoa. “Na verdade não vale para aqui a circulação na Internet
de cópias do livro para legitimar a não aplicação de uma medida.
Pois a lesão que ocorra por aquela via não justifica lesão que
venha a ocorrer por outra via como é a da publicação e venda do
livro”, sustenta o colectivo.
Contactada pelo
PÚBLICO, a Gradiva ainda não comentou a decisão do tribunal.
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