Crónica.
Um Parlamento assim é um perigo para a democracia
Vitor Matos
8/3/2017, 18:59
Quando
só discutimos a discussão, a discussão não acaba bem e no final
esquecemo-nos sobre que raio estávamos a discutir. O populismo adora
terrenos adubados assim. A AR deu hoje um mau exemplo.
“Enlamear”,
“desfaçatez”, “desonestidade”, “ofender”, “ressabiado”,
“mal-educado”, “vil, reles e soez”, eis o pequeno dicionário
do combate quinzenal desta quarta-feira. Os debates parlamentares não
estão cada vez mais duros, antes fosse assim. Estão cada vez mais
feios. E como de cada vez que se bate no fundo ele desce ainda mais,
a degradação bi-mensal da linguagem parlamentar vai tornando a
Assembleia da República um perigo para a democracia tendo em conta o
contexto que vivemos nas democracias ocidentais.
O português cheio
de problemas que está em casa a ver políticos a trocar insultos no
Parlamento acha que ninguém está preocupado em resolver o que lhe
aflige a vida — o que é injusto para os protagonistas dos vários
partidos que têm ideias sobre como resolver os problemas das nossas
vidas. O português no seu sofá, que assiste ao debate, acha que os
políticos são todos iguais, mesmo que sejam absolutamente
diferentes. O português comum acha que os políticos são aquilo que
ele tem diante dos olhos: um conjunto de sectários que se agride
numa linguagem que ele próprio não permite aos filhos em casa.
Daqui aos fenómenos populistas é um passo.
É este o perigo da
perpetuação deste estilo de incidentes parlamentares para uma
democracia que não quer ser “iliberal”. Louve-se ao menos a
liberdade que a democracia permite — mesmo os insultos — embora
seja preocupante que o nível de escrutínio do Governo sofra com
estes desvios à dureza leal de um debate político.
Não eram dois
deputados anónimos que se confrontavam: era um primeiro-ministro com
um ex-primeiro-ministro. Com este nível de agressividade mal
direcionado — a somar a outros aspetos como as suspeitas de
corrupção generalizadas, casos judiciais, etc. –, Portugal não
pode achar-se imune ao aparecimento de um Trump, de uma Le Pen, ou de
um palhaço Grilo. Só ainda não surgiu o protagonista certo para
capitalizar a má imagem das instituições e do sistema. Os
partidos, os deputados e as lideranças têm-lhe adubado bem o
terreno. Marinho e Pinto não conseguiu. Mas quem sabe se não há
por aí um novo Manuel Monteiro da era moderna, mas verdadeiramente
perigoso, com o discurso dos “deputados sanguessugas” e a colher
votos contra uma Europa que já não é a terra prometida dos anos
90?
Esta quarta-feira,
António Costa e Pedro Passos Coelho não deram um contributo para
uma democracia mais saudável. De quem é a culpa? De todos. Podemos
discutir, como as crianças, sobre quem foi o bully que começou a
pancadaria no recreio, sendo certo que acabaram todos a sangrar do
nariz. Um dos problemas nestes casos, é que passamos da discussão
sobre um assunto para a discussão sobre a discussão. E quando
discutimos a discussão, o passo está dado para que a discussão não
acabe bem e que no final tenhamos esquecido sobre que raio estávamos
a discutir.
A troca de
argumentos começou como é suposto, com Passos Coelho a discutir
aquilo que é sempre discutível: se os resultados apresentados por
um Governo não são demasiado otimistas, como aliás dizem todos os
Governos. Passos fez o que fazem todas as oposições. Costa fez o
que fazem todos os primeiros-ministros. Até aqui tudo normal:
críticas políticas.
O nível passou para
o amarelo quando António Costa, numa tática parlamentar comum,
passou ao ataque em vez de responder às perguntas. Afinal, Passos
não estava satisfeito porque o “diabo” não apareceu, porque “os
resultados bons para o país são maus” para Passos. Logo, o PSD
quer o mal do país. Pode ser uma subida de tom, mas é retórica
parlamentar antiga, a dos primeiros-ministros confundirem a ação do
Governo com o interesse nacional e acusarem as oposições de
desejarem o pior para a nação, quando criticam os governantes.
Adiante.
Passos Coelho tinha
perguntado, entre outras coisas, o que era feito da criação do
veículo para gerir o crédito mal parado, que deu alguma polémica
há uns meses (até entre o Bloco e o Governo). E Costa respondeu —
sem responder à substância — que havia uma série de reuniões
agendadas em Bruxelas, com a DGCOmp e com o BCE para tratar do
assunto. Ora o líder do PSD voltou a questionar Costa sobre se tinha
mais alguma coisa a apresentar “para além do calendário”. Costa
fingiu que não percebeu a pergunta e Passos repetiu-a: “Quero
saber se para além do calendário tem alguma coisa que possamos
discutir…”
Então o nível
passou para laranja. Costa fez o que faz quase sempre. Quando não
quer responder, desconversa. Pode não ser bonito, podemos não
apreciar as fintas do primeiro-ministro — aliás habituais nos
primeiros-ministros — mas ainda estamos dentro dos limites
parlamentares. “Temos a vontade de resolver um problema que o
senhor não resolveu”, respondeu Costa. “E temos trabalhado
várias soluções com o Banco de Portugal. Quando tivermos uma
solução, ficará desiludido porque fica sempre desiludido quando
resolvemos um problema do país”.
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