A
Adega do Olho pode morrer enquanto o turismo esfrega o dito
SOCIEDADE 27.03.2017
às 18h09
O
prédio onde mora uma das últimas tabernas centenárias do Porto foi
vendido a investidores estrangeiros. Desenham-se programas e
legislação para proteger estes lugares de tradição, mas chegarão
a tempo?
MIGUEL CARVALHO
Texto
LUCÍLIA MONTEIRO
Fotos
Fica numa rua
melancólica, de seu nome Afonso Martins Alho, entalada entre a das
Flores e Mouzinho da Silveira, no coração do Porto mais antigo. Nos
primórdios, a Adega do Olho, cujo batismo é um mistério por
desvendar, era geografia almoçadeira dos pobres e remediados,
cantina do operariado e de quotidianos aziagos. Hoje é o território
onde a pressão turística e urbanística mais se faz sentir:
primeiro foi-se a vizinhança e agora já mal resistem as lojas e
lugares de tradição gastronómica ou outra. Na casa centenária,
esta segunda-feira, 27, havia arroz à portuguesa e badejo. À
sobremesa, rabanadas a desafiar todos os pecados e mais um. As
tripas, de tão famosas e saborosas, tornaram-se afeto servido
através de gerações, às quintas e sábados. Vêm famílias com
crianças pela mão, casais e até turistas, de bem longe, para
acabar a lamber os beiços tal e qual o comum dos mortais. Tudo vai à
mesa em travessas fartas e preços de velhos tempos, quase
arqueológicos (3,5 euros a meia dose). Na casa, ecoa a pronúncia
cerrada do senhor Sousa, de bigode farfalhudo à Vasco Santana, do
Pátio das Cantigas, ora bitaitando sobre o Benfica-Porto que aí
vem, ora amanteigando o sorriso à medida que a desconfiança é
deixada na beira do prato. “Calma, isto chega para todos!”, vai
dizendo a quem se acabou de sentar e tem pressa.
Ali, os almoços
atraem o Porto sem classes, do banqueiro ao bancário, do industrial
ao empregado de balcão. O Jornal de Notícias circula de mão em
mão, as canecas de tinto aterram sem parança nas mesas simples,
qual aeroporto congestionado. A Adega do Olho acolhe memórias com
dezenas de anos, emolduradas para freguês ver.
Tudo isto, porém,
pode ter os dias contados.
NUM ABRIR E FECHAR
DE OLHOS
O alerta foi dado
pelo geógrafo Rio Fernandes nas redes sociais este domingo e
Agostinho Silva, o proprietário, confirmou os maus presságios assim
que o repórter se abeirou do balcão. “O prédio já foi vendido
pelo senhorio a uma imobiliária estrangeira e disseram-nos que isto
vai entrar em obras. Gostava de continuar aqui e manter as portas
abertas, mas parece-me complicado”, referiu o homem que, há quase
30 anos, dá a cara por um dos últimos exemplares das genuínas
tascas portuenses, de frituras e cozeduras de encher o bandulho e
forrar a memória.
“Os bons velhos
lugares do convívio do Porto”, como os batizou o historiador
Hélder Pacheco no seu último livro sobre adegas, tabernas e casas
de pasto, vivem dias de aflição. “Houve uma valorização da
parte antiga da cidade e existe uma grande pressão urbanística e
turística para a abertura de sítios novos, mas temos de saber
preservar o simbólico além das pedras”, refere Rio Fernandes, um
dos elementos do grupo de trabalho que, sob o chapéu da Câmara do
Porto e no âmbito do programa Porto de Tradição, está a
desenvolver um conjunto de critérios e medidas para evitar o
definhamento de, pelo menos, 85 estabelecimentos históricos na
cidade, de adegas a mercearias, passando por barbearias e lojas de
atoalhados. “A cidade vive um momento de especulação imobiliária
fora do comum”, reconhece, por outro lado, o presidente da
Associação de Comerciantes do Porto. “Temos sido bastante
agressivos nessa matéria. A lei do arrendamento comercial só veio
piorar a situação e estamos a assistir a um conjunto de despejos
nunca visto, sem que haja, pelo menos, um processo legislativo
independente e autónomo que proteja o património material e
imaterial das lojas históricas e permita aos seus proprietários
respirar ou, pelo menos, proteger o que criaram”, alerta Nuno
Camilo. Neste momento, o líder da organização de comerciantes
deposita alguma esperança nas propostas legislativas do PS, do PCP e
de “Os Verdes”, em discussão na Assembleia da República, que
desencadeará um conjunto de medidas e incentivos para proteger as
lojas e entidades com interesse histórico e cultural. “O valor de
uma marca, do produto e de um conceito tem de ser protegido e é
nesse sentido que se deverá caminhar para preservar a identidade dos
estabelecimentos que fizeram a memória e a história do Porto. Era
bom que a lei do arrendamento comercial também mudasse, mas aí já
tenho mais dúvidas”, refere Nuno Camilo.
Criado há mais de
três anos, o Grupo dos Amigos das Adegas e Tascos do Porto, cuja
intervenção cívica tem sido elogiada por diversas entidades e
personalidades portuenses, também recebeu a notícia do eventual
desaparecimento da Adega do Olho com pesar. “Não é caso único e
reflete este momento do Porto, onde os lugares carregados de
memórias, símbolos vivos da história da cidade, travam um combate
de David contra Golias por causa da pressão turística”, assinala
Manuel Vitorino, da direção daquele grupo. “Pela nossa parte,
temos alertado para a necessidade de encontrar formas de proteger
estes lugares emblemáticos, de aliar progresso, tradição e
modernidade. Não pode valer tudo”, defende Manuel Vitorino.
Enquanto vai dando
trocos, limpando copos ou recebendo as travessas quentinhas
provenientes da cozinha que seguirão, num ápice, para as mesas,
Agostinho Silva não perde tempo com lamúrias. Para ele, sobram os
factos. “Por mim, não desistia e mantinha este lugar onde tenho
uma parte da minha vida”, assume, aos 57 anos. “Mas a verdade é
esta: o prédio foi vendido, virão as obras e não sei se a seguir
vem um hotel, um restaurante ou outra coisa qualquer. A minha vontade
conta pouco nesta fase. Mudar a Adega do Olho para outro sítio é
que não faz sentido”, admite. “Aqui é que está a sua
história”, desabafa.
“Mais do que
instituição ou coletividade, mais do que associação recreativa ou
imóvel de interesse público”, a histórica Adega do Olho é, no
dizer impresso de Hélder Pacheco, um “verdadeiro monumento” da
cidade, pleno de sentimento, lugar “tripeiríssimo, autêntico e
profundo. Como comida feita em casa”, escreveu. Conseguirá este
santuário do velho burgo ser protegido de “maus-olhados”,
“rutilâncias anodizadas”, “cosmopolitismos hamburgueiros” ou
“novos-riquismos eurocráticos”?
Passa das duas da
tarde.
O senhor Sousa
abeira-se da mesa, recebe os 7,15 euros da refeição (pão, sopa,
arroz à portuguesa, caneca de vinho pequena, rabanada e café) e
agradece. Puxando o cliente pelo braço, acompanha-o à porta, a
cochichar, soturno como o tempo invernoso que se vislumbra lá fora:
“Olhe pró que lhe digo, meu amigo”, confidencia. “Por este
andar, qualquer dia vamos todos morar para um hostel ou para um
banco”.
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