quarta-feira, 1 de março de 2017

“Museu Judaico sim, mas não no Largo de S. Miguel”, diz associação de moradores de Alfama / Autoridades devem reverter construção do Museu Judaico de Lisboa


Museu Judaico sim, mas não no Largo de S. Miguel”, diz associação de moradores de Alfama
Arquitecta da organização do Fórum do Património acredita que edifício do museu judaico de Lisboa não respeita as características arquitectónicas daquele largo em Alfama e ultrapassa as determinações do Plano Directo Municipal.

MARGARIDA DAVID CARDOSO 1 de Março de 2017, 19:58

A Associação do Património e População de Alfama (APPA) quer a “alteração completa do projecto” arquitectónico ou então que o Museu Judaico de Lisboa não seja feito no Largo de S. Miguel, em Alfama, para onde está previsto.Esta quarta-feira, apoiada pela comissão organizadora do Fórum do Património 2017, Maria de Lurdes Pinheiro, da APPA, falou aos jornalistas em nome dos moradores. Diz que são contra um projecto que “corta com a tradição do bairro”. Em causa está o edifício projectado por Graça Bachmann, em colaboração com Luís Neuparth e Pedro Cunha, para receber o museu e centro de interpretação sobre a presença judaica em Portugal.

De acordo com o projecto, o edifício, com quatro andares acima do nível da rua, vai ter duas fachadas distintas, uma delas com uma Estrela de David em baixo relevo e pedra lioz, virada para o largo e a Rua de S. Miguel. Esta fachada terá ainda caixilharias em alumínio. “Vai ser mais um elemento descaracterizador da Baixa”, acredita a moradora.

Segundo Maria de Lurdes, os moradores receberam “com muita surpresa” o acordo que formalizou a construção do Museu Judaico de Lisboa naquele largo, assinado em Setembro de 2016 entre a Comunidade Israelita de Lisboa, a Associação de Turismo de Lisboa e a Câmara Municipal. Desde então os membros da associação de moradores têm-se informado sobre o projecto e “contado às pessoas do bairro”. Um projecto que, diz Maria de Lurdes, foi feito “ao arrepio dos moradores”: “A Câmara arranjou maneira de não fazer a discussão pública”.

A oposição nada tem a ver com o museu em si, garante. “Museu Judaico sim, mas não no Largo de S. Miguel.” Segundo a moradora, Alfama só pode ter um museu que “se integre no ambiente do próprio bairro”.

A APPA teme ainda que a construção do museu impossibilite as cargas e descargas no largo e “acabe com o pouco estacionamento” para moradores e trabalhadores naquele bairro lisboeta. “Vão deixar de estar aqui as barraquinhas de Santo António”, prevê Maria de Lurdes. O museu vai ter uma entrada pelo Largo de S. Miguel e uma saída pelo Beco do Pocinho.

Em alternativa ao Largo de S. Miguel, Maria de Lurdes propõe a construção deste espaço na Rua do Jardim do Tabaco, onde já existe o Museu do Fado. Quando foram assinados os acordos para construção do novo museu, a antiga vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, Ester Mucznik, justificava a escolha do Largo de S. Miguel por este ser um “local altamente simbólico”, dada a proximidade à antiga Judiaria de Alfama.

Aquando da assinatura do protocolo, previa-se a abertura do museu em Setembro deste ano.

“Não pode haver excepções ao PDM”

“Há uma série de regulamentos que estão a ser ultrapassados e postos em causa”, acusou a arquitecta Soraya Genin, da organização do Fórum Património 2017. Começa pela localização. O Largo de S. Miguel está inserido na zona de protecção da Igreja Paroquial de Milharado, um Imóvel de Interesse Público, e parte do Núcleo Histórico de Alfama e Colina do Castelo. “O que implica que tudo o que aqui for construído tem de respeitar as características arquitectónicas do local”, o que não acontece com este projecto, entende.

Destaca o Plano Director Municipal, segundo o qual o terreno em causa está registado para habitação corrente, mas “como sendo um exemplar significativo”. Para construir o novo museu é necessária a demolição de quatro edifícios neste local, um deles já demolido. “Não pode haver excepções ao PDM nem a plano nenhum”, defende a arquitecta.


O próprio despacho de apreciação técnica do projecto feito pela autarquia reconhece que o edifício se “destacará da linguagem arquitectónica dos edifícios confinantes, dissonando das referências das composições arquitectónicas dominantes no conjunto do Largo”. O “excepcional do uso em causa” – construção do museu –, “contemporaneidade e o interesse da solução proposta” justificaram, no entanto, a aprovação do projecto. O mesmo é dito em relação à demolição dos quatro edifícios, aprovada, apesar não ter sido apresentada uma “justificação suficiente” do ponto de vista do estado de conservação dos edifícios.

Autoridades devem reverter construção do Museu Judaico de Lisboa
Prepara-se para Alfama uma das piores intervenções da Lisboa do século XXI, aquela que impõe o que as pessoas não desejam.

MIGUEL DE SEPÚLVEDA VELLOSO
1 de Março de 2017, 6:32

A concretizar-se a sua construção em pleno largo de S. Miguel em Alfama, o edifício destinado ao Museu Judaico desferirá um golpe trágico e irreversível no tecido urbano de um dos mais genuínos bairros de Lisboa. Um projecto em toda a linha dissonante da envolvente. Funcionará como um “exo-edificio” em conflito permanente com os pequenos prédios de cariz popular que povoam o Largo e com a magnífica igreja de São Miguel, imóvel de interesse público.

Não se trata de forma nenhuma de criticar a criação de um museu dedicado às comunidades judaicas que sempre fizeram e fazem parte da história e do desenvolvimento de Portugal, museu que há muito é devido e que será um novo pólo cultural de inegáveis valor e oportunidade.

O mesmo, contudo, não se poderá dizer da localização escolhida nem da linguagem e programa arquitectónicos propostos. Esses sim passíveis de crítica. Pretende-se intervir numa área ocupada antes por edifícios habitacionais propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, substituindo-os por construção nova de linhas contemporâneas com grandes panos de fachada cegos num programa em tudo alheio ao tecido urbano pré-existente. E tudo aprovado sem os devidos debates e análise de alternativas.

Mas para que tal não acontecesse seria preciso que as instâncias chamadas a dar o seu parecer, tivessem a vontade e a coragem para reverter a decisão, impedindo a sua construção; que ousassem cumprir o estipulado numa bateria de regras e balizas, tão numerosas como inúteis nas mãos dos que deveriam ser os primeiros a zelar pela sua prática.

O facto de esta construção se implantar no coração do centro histórico rodeado de zonas de protecção, de áreas próximas de Monumentos Nacionais, cuja classificação reconhece o ímpar valor identitário para Lisboa e para Portugal, refira-se o castelo de S. Jorge e os vestígios das cercas muralhadas, não parece incomodar os gabinetes próximos do poder.

Alfama não pode ser um santuário congelado no tempo, não deve ser contudo um palco de exibições desmedidas de arquitectos, directores-gerais ou de políticos. Alfama é um bairro único numa capital europeia, deveria ser protegido como o são as coisas raras e insubstituíveis. Uma mostra de singularidade urbana e histórica deste nível irá sofrer um atentado grave que a apeará para sempre desse pódio que é seu por direito e das suas gentes por mérito e fidelidade ao bairro.

Neste contexto, estranha-se o facto de a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) ter deliberadamente ignorado algumas disposições da Lei de Bases do Património que estipula no seu Art. 52, nº 2 que “Nenhuma intervenção relevante, em especial alterações com incidência no volume, natureza, morfologia ou cromatismo que tenham de realizar-se na proximidade de um bem imóvel classificado, ou em vias de classificação, poderá alterar a especificidade arquitectónica da zona ou perturbar significativamente a perspectiva ou contemplação do bem”.

Não se antevê, aqui, qualquer subjectividade. A preocupação do legislador na preservação e salvaguarda do património cultural é clara e objectiva. Querer reinterpretá-la para que se permita uma intervenção arrasadora com a que se prepara é, no mínimo, irregular.

Caso tivesse havido a necessária reflexão sobre as condicionantes que intervenções em bairros como Alfama colocam, outro projecto poderia e deveria ter sido defendido. Não se compreende, também, que a mesma DGPC tenha feito tábua-rasa de algumas das suas atribuições, entre as quais “pronunciar-se sobre o impacto de planos ou grandes projectos e obras (….) e propor medidas correctivas e de minimização que resultem necessárias para a protecção do património cultural.”

Mais se lê no Regulamento do Plano de Urbanização do Núcleo Histórico de Alfama e da Colina do Castelo “(…) o conjunto edificado é maioritariamente de raiz popular, tendo-se desenvolvido sempre de modo casuístico e improvisado, mas de forma tão anónima e contida pelas dificuldades inerentes às características topográficas (….) que o seu ambiente nunca foi verdadeiramente alterado. Estas características, para além de constituírem testemunho histórico, definem o “sítio”, consubstanciando um ambiente de características únicas, o que leva a reconhecê-lo como núcleo a preservar.” Uma disposição em plena consonância com o que a Carta de Veneza defende, alargando o valor de património ao contexto urbano onde determinado bem se localiza.

Afirma-se no papel o que as oportunidades do momento destroem na prática. O que pensar, então, da paradoxal atitude das entidades responsáveis em relação ao prédio dos anos 70 do Largo Bordalo Pinheiro (ao Chiado) que irá ser demolido, considerando-se que é profundamente dissonante da envolvente e um factor de descontinuidade visual e estética do largo?

As razões que levam ao abate de um deveriam impedir o nascimento do outro. Mas não é este o entendimento da DGPC e da CML. Em Alfama problemas estéticos não se colocam a partir do momento em que a mesma vontade política se aplica em corrigir contestáveis erros passados e em transformar os actuais, mais graves, em virtudes.

Mas nada disto é relevante aos olhos de outra magna autoridade que rege, e tantas vezes mal, os destinos do património histórico de Lisboa. A Comissão de Apreciação da ARU [Área de Reabilitação Urbana] onde têm assento a DGPC e a CML. É esta uma instância todo-poderosa que autoriza processos em zonas históricas consolidadas, retirando o protagonismo deliberativo aos responsáveis máximos dos organismos a que pertencem. Actua como se a Lisboa histórica fosse uma nota de rodapé, insignificante e incómoda.

O que foi criado para impedir a morosidade na apreciação de processos, transformou-se numa passadeira para que tudo se tornasse possível, alterações em obras em curso, autorizações e derrogações a vários artigos da legislação em vigor. Por razões que o bom senso desconhece, as sacrossantas entidades envolvidas, na sua turvada e proverbial visão, optaram por interferir num bairro mais do que emblemático, fazendo-o de uma forma altamente lesiva para a integridade e coerência urbana e histórica de Alfama.

Outras localizações existem para a legítima criação do Museu Judaico de Lisboa, espaços vazios, como a Antiga Alfândega, poderiam ser adaptados para esse fim.

Tornam-se imperativas as perguntas: de que servem relatórios, pareceres, condicionantes, se a opção feita vai contra a letra e o espírito do que se afirma na própria legislação? Alguém mediu o impacto que este projecto terá no desfecho da candidatura de Lisboa-Cidade Global a património mundial? Como podem justificar que o alegado interesse excepcional deste projecto possa suplantar o objectivo e universal interesse de Alfama?

Respostas urgentes que não podem ter como base toda a parafernália burocrática com que as instâncias envolvidas querem lavar as suas consciências e adormecer a opinião pública.


Prepara-se para Alfama uma das piores intervenções da Lisboa do século XXI, aquela que impõe o que as pessoas não desejam, a que age sob os ditames de uma refinada prepotência, a que não reconhece o erro, nele persistindo de forma tão infeliz como leviana.

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