Os EUA a caminho da ditadura
Pensem duas vezes porque o que se passou à volta do processo do impeachment é particularmente perigoso para as instituições democráticas dos EUA.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
8 de Fevereiro de 2020, 6:30
Pensam que este título é alarmista e exagerado? Pensem duas vezes porque o que se passou à volta do processo do impeachment é particularmente perigoso para as instituições democráticas dos EUA. Acresce, e não vou repetir o que escrevi recentemente no PÚBLICO, que Trump não sairá do poder a bem, mesmo que perca eleições.
Considerei durante algum tempo que o sistema de “checks and balances” e que a resistência profissional de muitos funcionários responsáveis, aquilo a que Trump chama o “pântano”, fossem suficientes para travar Trump. Não foi, e é cada vez menos. Essa resistência institucional existe com enormes riscos pessoais na carreira e no arrastar pela lama que Trump e os seus serviçais fazem de imediato para intimidar as pessoas. Mas não é suficiente, e tem cada vez menos meios pela perversão crescente da autonomia da administração por Trump, através de nomeações políticas, demissões, e enormes pressões, inaceitáveis numa democracia. Sobra parte da comunicação social e é por isso que Trump a apresenta como “inimigo do povo”.
O grave não foi tanto o facto previsível da maioria republicana no Senado absolver Trump, é tudo o que se passou à volta do processo. Aqui ficam alguns exemplos:
1) Nem vale a pena falar do tema central do impeachment, nos seus dois artigos, que ficou mais que demonstrado, e toda a documentação e testemunhos que vem a público revelam estar provado sem margem para dúvidas: Trump usou de chantagem com o apoio militar votado no Congresso a uma Ucrânia em guerra, para obter o “anúncio” de investigações sobre o rival Biden.
2) A recusa de ouvir as testemunhas mais directamente associadas ao processo ucraniano depois de os republicanos se estarem sistematicamente a queixar que não havia testemunhos em primeira mão (havia), tornou o processo do Senado numa farsa, e o voto dos Senadores uma violação do seu juramento.
3) A retirada ao Congresso, um “braço igual de governo”, de todos os seus poderes de facto. O Senado trava toda a legislação e em particular todas as medidas a favor dos americanos com menos recursos, para dar a ideia de que o Congresso não funciona, o bloqueio do poder do Congresso de intimar testemunhas e conduzir investigações, a recusa de enviar documentos da administração Trump para conhecimento dos congressistas, a tomada de posições em segredo sem a consulta ao Congresso que a lei exige, em particular em matérias de paz e guerra (o Presidente entende que basta informá-los pelo Twitter),
4) Alargamento do “poder executivo” sem restrições, apenas baseado na vontade discricionária do presidente, considerando-se imune a qualquer processo por violação da lei (a tese do Procurador escolhido por Trump é que o presidente não pode ser acusado por nada enquanto estiver em funções). Conhecendo-se Trump, depois da absolvição no Senado, vai fazer tudo o que quiser sem restrições, quer no plano interno quer internacional.
5) A transformação do Partido Republicano num partido de gnomos de jardim, muito contentes por estarem especados firmes e hirtos diante da porta do seu senhor.
6) A moldagem das instituições do estado a começar pelos tribunais através da escolha de juízes partidários, muitos sem currículo e experiência mas apenas fidelidade absoluta ao Presidente. Outro exemplo muito preocupante do modus operandi da Administração Trump é que, enquanto bloqueia todos os documentos ao Congresso, em particular os respeitantes às declarações de impostos de Trump, o Departamento do Tesouro enviou imediatamente ao Senado os documentos relativos a Hunter Biden.
7) A destruição da imagem dos seus adversários por todos os meios possíveis, alguns ilegais. Trump matou Biden como candidato, porque Biden pai e, particularmente Biden filho, estavam comprometidos num sistema de favorecimento inaceitável na Ucrânia. Nada que os filhos de Trump que gerem as suas empresas não saibam bem o que é, mas o extremo-tribalismo e a moleza dos democratas deixaram-nos de fora. Mas agora irá “sujar” com aquelas mãos pequeninas e aquela poça sem fundo de narcisismo, autoritarismo, violência, todos os outros candidatos a começar pelo “comunista” Sanders.
8) Mentiras, mentiras, mentiras, nunca um político em democracia usou com maior desplante e mentira como instrumento de poder.
9) Trump inovou todos os métodos de manipulação, aproveitando-se como ninguém da combinação da ajuda russa, dos mecanismos das redes sociais, a utilização indevida da Big Data por empresas como a Cambridge Analitics, do Twitter para saltar a mediação da comunicação social (deixou de haver os tradicionais briefings da Casa Branca à imprensa), para criar uma ecologia mortífera feita de agressividade tribal. A transformação da política num reality show em que a televisão é utilizada como eficaz máquina de propaganda, em particular a “televisão do governo”, a Fox News, e a sistemática utilização de comícios e insultos para inflamar a sua “base”
10) Pelos vistos os negócios e a bolsa dão-se bem com Trump como já se tinham dado com Pinochet, em particular com a desregulação, mas não é verdade, ao contrário do que Trump afirma, que “nunca” houve presidentes com melhores resultados na economia. Houve e foram vários.
Os democratas não têm sido particularmente eficazes em responder a Trump. Em parte por pecados antigos, e por muitas fragilidades, em parte porque estão divididos e sem candidato presidencial conhecido, têm dificuldade em se afirmar na luta unipessoal contra Trump. Mas, quer eles, quer muita gente nos EUA estão a começar a perceber que o autoritarismo de Trump é um caminho para a ditadura.
Um dos responsáveis pelo impeachment disse-o claramente, e o gesto de Nancy Pelosi, rasgando o discurso de Trump, é mais difícil de engolir por este do que horas de argumentos racionais que ele não ouve, e muito menos lê. Por isso, um magnífico cartoon de Mike Luckovich representando os pais fundadores da nação americana, Washington, Adams, Madison, a brindar “to Nancy” com uma caneca de cerveja diz muito. Também brindo.
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