sábado, 8 de fevereiro de 2020

Bem-vindos ao Reino da República de Portugal


Bem-vindos ao Reino da República de Portugal

A aristocracia não desapareceu em Portugal – ela apenas deixou de ter sangue azul. Com uma agravante: a actual aristocracia oficiosa reclama todos os seus direitos, mas despreza cada um dos seus deveres.

JOÃO MIGUEL TAVARES
8 de Fevereiro de 2020, 6:26

Na passada quinta-feira, a propósito da referência que fiz a Catarina Loureiro, filha de Manuel Dias Loureiro, no meu artigo sobre António Vitorino e os negócios da Venezuela, uma leitora enviou-me uma sugestão de correcção. Dizia apenas isto: “A filha de Dias Loureiro é Joana e não Catarina.” A leitora não tem razão – é mesmo Catarina Loureiro, mulher de Alejo Morodo, que está envolvida no caso –, mas o lapso é curioso. Vale a pena olhar um pouco mais de perto para a descendência de Manuel Dias Loureiro.

Existe um justo e prudente pudor republicano que nos convida a não confundir vida pública com vida privada. Infelizmente, em Portugal são os próprios envolvidos em casos duvidosos que começam por não separar uma coisa da outra. Basta olhar para José Sócrates – relações públicas, privadas e familiares misturam-se todas na mesma nuvem cinzenta, feita não só de suspeitas de corrupção, branqueamento de capitais e tráfico de influências, mas também de namoradas, réveillons, férias na neve e herdades no Alentejo. Onde acaba a vida privada e começa a vida pública no seu caso? Onde terminam as cumplicidades pessoais e começam as cumplicidades políticas, económicas e mediáticas? A linha de fronteira há muito que se esfumou.

Essa é talvez a principal razão por que em Portugal é tão difícil compreender o sistema que nos rodeia – esse sistema claustrofóbico que limita fortemente a afirmação de uma democracia arejada e assente no mérito individual –, sem conhecer também a teia de famílias, compinchas, caçadas, partidas de golfe, férias partilhadas, jantares ou matrimónios na Quinta do Lago. Ler o PÚBLICO é muito importante. Ler a revista Caras também. Manuel Dias Loureiro é um bom exemplo daquilo que estou a dizer.

Dias Loureiro tem duas filhas com Fátima Varandas, de quem se divorciou em 2006: Catarina, a mais velha, e Joana. Catarina Dias Loureiro casou com Alejo Morodo, filho do ex-embaixador espanhol em Portugal e na Venezuela Raúl Morodo, a quem Nuno Ribeiro, em artigo neste jornal, chamou “o irmão espanhol de Mário Soares”. Morodo frequentava a casa dos Bourbon no Estoril e foi uma figura marcante dos bastidores da política espanhola e portuguesa desde a década de 60. Joana Dias Loureiro casou em 2003 com João Ferro Rodrigues (a união durou apenas dois anos, mas têm um filho em comum), filho do presidente da Assembleia da República Ferro Rodrigues, numa boda que contou com pelo menos três Presidentes da República (Soares, Sampaio e Cavaco), dois primeiros-ministros portugueses (Durão e Santana) e um primeiro-ministro espanhol (José María Aznar, grande amigo de Dias Loureiro).     

Isto não diz nada sobre as pessoas envolvidas – nunca nada de ilegítimo foi encontrado no percurso da filha mais nova de Dias Loureiro. Mas diz muito sobre o ambiente em que se movimenta a elite do país e como se entretece a rede de cumplicidades que domina a política portuguesa e os negócios que gravitam à sua volta. A aristocracia não desapareceu em Portugal – ela apenas deixou de ter sangue azul. Com uma agravante: enquanto a antiga aristocracia reconhecia todos os seus privilégios mas tinha uma missão patriótica a desempenhar – e era por isso que a nobreza partia para a guerra e morria lá –, a actual aristocracia oficiosa reclama todos os seus direitos, mas despreza cada um dos seus deveres. No Reino da República de Portugal, dominam os barões do tipo Dias Loureiro: conhecem tudo, fingem saber nada e ninguém lhes toca.

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