REPORTAGEM
Montijo: “Se o
motor de um carro faz isto, imagine o de um avião...”
O estuário do
Tejo alberga, sobretudo no Inverno, centenas de milhares de várias espécies de
aves. Se o aeroporto do Montijo avançar, teme-se que os impactos sobre a
avifauna venham a pôr em risco as migrações de espécies que já estão a
enfrentar declínios de população nos últimos anos.
Patrícia Carvalho
(Texto), Nuno Ferreira Santos (Fotografia) e Carolina Pescada (Vídeo) 4 de
Fevereiro de 2020, 6:06
O bando é
demasiado grande e compacto para parecer um bando e José Alves demora algum
tempo a convencer os ocupantes do carro de que aquela massa castanha que se vê
no meio do rio, e que mais parece uma linha de pedras contínua, é, de facto, um
conjunto de maçaricos-de-bico-direito (Limosa limosa). Estamos junto aos
arrozais da lezíria ribatejana, em plena Reserva Natural do Estuário do Tejo, e
numa zona que, a concretizar-se a construção do aeroporto do Montijo, irá ser
afectada pelas rotas de aproximação e descolagem das aeronaves. “Temos bandos
de milhares de aves em pleno corredor que as aeronaves vão utilizar. Qual é a
hipótese de ter um bando de 20 mil limosas no caminho e desviá-las?”, questiona
Joaquim Teodósio, da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA).
Nos últimos dias,
o biólogo e investigador do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da
Universidade de Aveiro, José Alves, tem-se desdobrado a dar entrevistas a
vários órgãos de comunicação nos Países Baixos. Especialista em aves limícolas,
há anos que acompanha os seus movimentos entre África e o Norte da Europa
(algumas espécies vão até ao Árctico, onde nidificam), e a importância que o
estuário do Tejo e a sua Zona de Protecção Especial (ZPE) têm nessas rotas
migratórias. A notícia de que poderá nascer um aeroporto nas imediações dos
locais de refúgio e alimentação do maçarico-de-bico-direito (ou milherango,
como também é conhecida), que é a ave nacional neerlandesa, está a suscitar
preocupação naquele país e já há perguntas feitas ao Governo local e pedidos de
uma tomada de posição por parte da União Europeia, que financia programas de
apoio à conservação destas aves em países do Norte da Europa. “Uma Europa que
financia programas de apoio no Norte ‘permite’ um aeroporto neste local. É um
bocadinho assustador, estamos a falar dos mesmos indivíduos [de aves]”, diz o
investigador.
PÚBLICO - Os
maçaricos-de-bico-direito passam o Inverno no estuário do Tejo antes de
migrarem para o Norte da Europa
É que o bando de
milhares de aves que agora está à nossa frente vai seguir para norte, para
acasalar, lá para o início de Março, dirigindo-se para os Países Baixos, a
Alemanha ou a Bélgica. E o tempo que as aves passam a repousar e a ganhar energias
para a longa viagem que têm pela frente, no estuário do Tejo, durante o
Inverno, é essencial para que tudo corra bem. É isto que José Alves e várias
organizações não-governamentais (ONG) ligadas ao ambiente, como a SPEA, têm
andado a repetir incessantemente desde que se começou a falar na hipótese de
transformar a base aérea do Montijo num aeroporto civil: que, ao contrário do
que é referido no estudo de impacte ambiental (EIA) do novo aeroporto, o
impacto que a estrutura terá sobre as aves do estuário não é local. O que vier
a acontecer nesta zona do Tejo tem o potencial de afectar espécies que
distribuem o seu ciclo de vida por três continentes.
Nesta tarde
chuvosa, José Alves entusiasma-se com o facto de encontrar um bando tão grande
num tão curto espaço de tempo. Não passaram dez minutos desde que o carro
cruzou o portão accionado por um cartão magnético que dá acesso aos arrozais.
“Às vezes, ando uma hora de um lado para o outro antes de encontrar um bando
tão grande”, diz, desligando o motor do veículo para não perturbar as aves. Sem
outro ruído que ocupe o espaço, só se ouve o barulho feito pelas próprias aves,
pousadas na água. “Chegamos a ter aqui até 50 mil exemplares só desta espécie e
já fizemos contagens de 80 mil. Durante cerca de dois meses – desde finais de
Dezembro até final de Fevereiro – temos no Tejo mais de um terço desta
população europeia”, diz.
Os dois carros
aproximam-se um pouco mais da margem e um deles não desliga o motor. Alguns
segundos depois, grande parte do bando levanta voo, num movimento hipnotizante,
em que as aves parecem mover-se ligadas entre si, criando ondas negras no céu,
correspondentes ao ondear do seu voo. Após este bailado mais próximo do rio,
sobem mais alto como se fossem uma só e desaparecem, para só regressarem, em
grupos mais pequenos, largos minutos mais tarde. “Se o motor de um carro faz
isto, imagine o de um avião...”, diz José Alves.
Não se pode jurar
que foi o motor do automóvel que fez as aves levantar voo, apesar de não se
ouvir ou ver qualquer outra fonte de perturbação nas imediações. E não se pode
jurar porque, algum tempo depois, um carro atravessa o caminho paralelo à
margem e as aves que ali permanecem não se agitam. Mas José Alves e Joaquim
Teodósio não têm dúvidas de que a passagem constante de aviões ao longo do dia
sobre o estuário do Tejo irá perturbar as diferentes espécies de aves que ali
passam o Inverno, numa paragem essencial para o sucesso da sua migração, e
aquelas que ali vivem ou se reproduzem, como o íbis-preto (Plegadis
falcinellus) ou o colhereiro (Platalea leucorodia).
200 a 300 mil
aves
Além do
maçarico-de-bico-direito, que tem visto a sua população diminuir drasticamente
(uma quebra entre os 30% e 49% nos últimos 26 anos, segundo José Alves) e tem
estatuto de conservação, o estuário e a respectiva ZPE acolhem outras espécies
em situação idêntica, como o fuselo (Limosa lapónica), o ostraceiro-europeu
(Haematopus ostralegus), a seixoeira (Calidris canutus) ou o maçarico-real
(Numenius arquata). Segundo o investigador, os últimos censos dão conta da
existência de “200 a 300 mil aves no estuário”, de várias espécies, durante o
Inverno.
Muitos dos
problemas que José Alves e Joaquim Teodósio enumeram junto ao Tejo já foram
referidos por ambos nos últimos meses, em alertas públicos ou, no caso do
primeiro, no parecer que enviou a título individual, como contributo para a
discussão pública em torno do EIA. Aí argumentou que o estudo foi feito com
base em dados desactualizados, que o método para avaliar o impacto do ruído
causado pelas aeronaves foi mal feito – a escala utilizada prevê perturbações a
partir dos 55 decibéis, mas no EIA considera-se que ela só existe a partir dos
65 – e que a área ali definida como vindo a ser afectada pela passagem das
aeronaves está subdimensionada. “Fazendo os cálculos correctos, 49% da zona
intertidal do estuário [zona afectada pelo efeito das marés, que é usada para
alimentação] será afectada”, diz José Alves.
Questionado pelo
PÚBLICO, o presidente do conselho directivo do Instituto da Conservação da
Natureza e da Floresta (ICNF), Nuno Banza, em resposta escrita, garante que
houve “trabalho de campo” durante a realização do EIA, para “validação e
recolha de nova informação”, embora este não tenha sido acompanhado por
técnicos da instituição. E em relação ao método utilizado para medir os
impactos do ruído nas aves, explica que se recorreu a um estudo internacional
que “não é específico sobre aeronaves” e que, portanto, “deve ser olhado nessa
perspectiva”. A opção por colocar os 65 decibéis como o limite para se
considerar a existência de uma “perturbação forte” nas aves decorre do facto
de, segundo aquele modelo, ser apenas a partir deste volume que pelo menos “25%
das aves [serão induzidas] a comportamentos resposta de voo”. O problema,
contrapõe José Alves, é que em casos como o dos grandes bandos ali à frente não
é preciso que uma percentagem tão grande de aves seja induzida a levantar voo.
“São muito gregárias. Quando se perturba uma ou outra, todo o bando reage”,
diz.
A Agência
Portuguesa do Ambiente não respondeu às questões do PÚBLICO, mas o ICNF também
mantém, como consta do EIA, que a área fortemente afectada pela presença dos
aviões corresponde a 1467 hectares. José Alves e Joaquim Teodósio insistem que
esse número peca por defeito e o responsável da SPEA diz que só nas zonas de
alimentação, incluindo a zona entremarés do estuário, serão afectados cerca de
“4500 hectares”.
E isto, a
confirmar-se, é um problema grave, porque 90% da alimentação das aves do
estuário vem destas zonas e não das salinas ou sapais, que funcionam como áreas
de repouso, dizem. E esta também é uma das razões para os especialistas dizerem
que as medidas de compensação previstas na declaração de impacte ambiental
(DIA) favorável condicionada não resolvem coisa alguma. “O estuário é tão
complexo que não é possível mudá-lo de sítio. Com as medidas de compensação
anunciadas não se vai aumentar nada [em termos de zona protegida]. Vai-se usar
o dinheiro para fazer uma coisa que o Estado já devia estar a fazer. Além
disso, a compra ou recuperação de salinas que é proposta vai substituir zonas
de refúgio; as de alimentação, não é possível substituir”, diz Joaquim
Teodósio.
Além disso,
salientam os dois especialistas, o avanço do aeroporto vai, paradoxalmente,
afectar espaços criados no passado como medidas de compensação para a
construção de outras infra-estruturas. Como as salinas de Sarilhos (medida de
compensação pela construção do Freeport) e do Samouco, em Alcochete, uma área
na ZPE do Tejo expropriada para ser gerida para as aves do estuário, aquando da
construção da Ponte Vasco da Gama.
Quando se entra
nas Salinas do Samouco, encontram-se, primeiro, vários coelhos a saltitar no
caminho que atravessa o terreno. Depois, surgem os grupos de aves. Lá estão, de
novo, os maçaricos-de-bico-direito, mas também colhereiros, flamingos
(Phoenicopterus roseus) e alfaiates (Recurvirostra avosetta).
O EIA do futuro
aeroporto considera que as aves que utilizam o estuário do Tejo conseguirão
adaptar-se à presença de um aeroporto civil nessa zona ou irão deslocar-se para
novas zonas nas proximidades e menos afectadas. José Alves tem muitas dúvidas
sobre isto. “A percepção de que as aves, porque podem voar, podem simplesmente
deslocar-se para outros locais, não é comprovada pelos dados que temos. As aves
são muito fiéis aos locais que habitualmente usam, quer na alimentação, quer no
repouso, mas também nas áreas que usam durante a migração. Além disso, o que
sabemos cientificamente é que as espécies podem reagir a alterações de habitat,
mas essa reacção é transgeracional. Estes maçaricos duram 15 a 20 anos e os
adultos são extremamente fiéis aos seus habitats. Não têm capacidade de resposta
[antes de uma mudança geracional] para conseguirem reagir.”
Com as queixas
anunciadas das ONG aos tribunais nacionais e à Comissão Europeia, uma outra já
enviada para a AEWA – African-Eurasian Waterbird Agreement (Acordo para a
Conservação das Aves Aquáticas Migratórias África-euroasiáticas), por alegado
incumprimento nacional das convenções assinadas, e o anúncio de que uma nova
queixa deverá seguir para a UNESCO, por suposto incumprimento da Convenção de
Ramsar (que se refere à protecção das zonas húmidas e que Portugal assinou em
1980), aguarda-se o desenvolvimento do processo. E insiste-se na necessidade há
muito defendida pelas ONG de se realizar uma avaliação ambiental estratégica,
com o Bloco de Esquerda a apresentar mesmo um projecto de resolução na
Assembleia da República, esta semana, a pedir a suspensão do processo em curso
para que se faça essa avaliação.
Se o aeroporto no
Montijo avançar, como parecem indicar os passos dados nos últimos meses, os
impactes reais na vida única do estuário só serão perceptíveis depois do início
da operação. “São questões muito difíceis de prever, mas o que acontece com a
instalação do aeroporto é perda de habitat. E quando há perda de habitat, as
populações diminuem”, sintetiza José Alves.
É difícil
esquecer a imagem de 2009 do avião da US Airways pousado no rio Hudson, em Nova
Iorque (Estados Unidos), depois de uma amaragem bem-sucedida, que permitiu
salvar todas as pessoas a bordo. Mas é provável que já não se lembre que na
origem do acidente esteve a colisão do avião com um ganso. O risco de colisão
com aves, ou bird strikes, em inglês, foi uma das questões analisadas no Estudo
de Impacte de Ambiental (EIA) do Aeroporto do Montijo, mas apenas do ponto de
vista da preservação das aves e não do risco para a segurança de quem vai a
bordo de um avião. Essa análise ainda está por fazer.
Numa zona onde
existem milhares de aves de médio e grande porte – flamingos, garças,
maçaricos-de-bico-direito – não é de estranhar que, como se refere na síntese
da discussão pública do EIA, a probabilidade de choques com estas aves seja
“muito realçada” em várias participações, havendo quem salientasse que uma
colisão desta natureza poderá ter “uma dimensão catastrófica” para passageiros
e tripulação das aeronaves.
A resposta dada
ao conjunto de preocupações relacionadas com a segurança de pessoas e aeronaves
por potenciais colisões com aves deixa, contudo, tudo em aberto: “Os aspectos
suscitados no respeitante ao risco de bird strike, no contexto da avaliação de
segurança da operação aeronáutica, serão desenvolvidos aquando da certificação a
emitir pela ANAC [Autoridade Nacional da Aviação Civil] para o aeroporto. Não
foram por isso, nem teriam de ser, objecto da presente AIA [avaliação de
impacte ambiental.”
Porque o que o
EIA analisou foram os riscos que essas potenciais colisões teriam para a
avifauna, não para as aeronaves ou as pessoas a bordo. O estudo referiu que,
apesar de terem sido detectados cerca de três milhões de potenciais alvos,
entre as aves que utilizam a zona, não há qualquer risco grave que possa levar
a uma diminuição de qualquer espécie. Mas esse, já lembrava em Julho do ano
passado ao PÚBLICO Joaquim Teodósio, da Sociedade Portuguesa para o Estudo das
Aves (SPEA), não é o principal problema de uma eventual colisão entre ave e
aeronave. “Nunca foi, do ponto de vista da SPEA, o problema, porque, se houver
uma colisão, é uma ave que vai morrer”, disse, na altura. “Para os aviões é que
haverá certamente [perigo]”, acrescentou.
Na Base Aérea n.º
6, onde deverá ficar instalado o futuro aeroporto civil, o número de voos
efectuados e o tipo de aeronaves utilizadas (quase todas com hélices e não
motores a jacto) são muito distintos do que se espera para o futuro. Em
resposta escrita enviada ao PÚBLICO, o porta-voz da Força Aérea Portuguesa
explica que em 2019 o total de movimentos aéreos foi “11.445”, salientando que
“o número de incidentes verificados com aves, nos últimos dez anos, não teve
impactos na actividade aérea regular” da base. A mesma fonte confirma, contudo,
que em Janeiro do ano passado uma colisão entre um aparelho C-295 e uma ave
resultou em “danos num dos motores”.
No EIA refere-se
que as medidas para mitigar os riscos de colisão com aves devem ser postas em
prática rapidamente, afirmando-se que “para afugentamento de avifauna apenas
devem ser utilizados métodos sonoros e recurso a falcoaria na área do
aeroporto, sendo interditas outras medidas, nomeadamente métodos visuais,
barreiras físicas, armadilhas e uso de produtos químicos e venenos”.
José Alves,
biólogo e especialista em aves limícolas da Universidade de Aveiro, tem dúvidas
de que estas medidas se mantenham em vigor se, no futuro, houver um acidente
grave com uma aeronave por causa de uma colisão com aves. “Se isso acontecer,
pode-se passar para o abate a tiro, como já acontece noutros países. Se
estiverem vidas em risco, quem se vai importar?”, questiona.
Segundo o diário
britânico The Guardian, após o acidente no rio Hudson, quase 70 mil aves foram
mortas em Nova Iorque, abatidas a tiro ou com recurso ao uso de armadilhas,
para tentar limitar os perigos da coexistência, nos céus da cidade, de aves de
médio e grande porte e aeronaves.
Sem comentários:
Enviar um comentário