Por quem os
joacinos dobram
(Miguel Sousa
Tavares, in Expresso, 01/02/2020)
Miguel Sousa
Tavares
Os joacinos
dobram por uma esquerda dogmática e intelectualmente arrogante, que se imagina
dona da verdade, da moral e da ordem justa de todas as coisas. Os joacinos
dobram por uma esquerda refém e aterrorizada pelas modas do tempo, incapaz de
reflectir para além delas e pronta a fazer tábua rasa de tudo o que aconteceu
antes delas. Uma esquerda doutrinária e doutrinadora, que, sendo hoje
maioritária em Portugal, desperdiça cegamente a oportunidade para encontrar os
caminhos que separam a nova geração da política e da cultura democrática,
empurrando-a irresponsavelmente para o amparo da extrema-direita
antidemocrática. Uma esquerda que acredita que a demagogia se combate com mais
demagogia e o populismo se vence dando ao povo tudo aquilo que o povo quer. Uma
luta condenada ao insucesso, sempre atrás do tempo, atrás do prejuízo, no
terreno onde o adversário está mais à vontade. E com as armas dele.
Nunca isto me
pareceu tão claro como nestes dias em que todo o establishment da esquerda saiu
em defesa da deputada Joacine Katar contra o deputado André Ventura. Mas, antes
de ir à questão, um breve resumo sobre a deputada: logo na noite das eleições,
na TVI, e logo após elas, aqui, disse que, ou muito me enganava, ou Joacine
Katar ia espalhar-se ao comprido na primeira curva e em todas as outras, de tal
maneira era evidente a oca vaidade e ânsia de protagonismo de quem se
proclamava “negra, feminista radical e gaga” — como se tudo isso fosse um
programa político e não apenas uma agenda sobre si própria. Desde o início, o
seu objectivo era manter sob coacção, ou mesmo aterrorizados, todos os que
ousassem fazer-lhe frente: quem a contestasse ou era racista, ou machista, ou
contra os portadores de deficiência. E nisso se esgotava o seu programa
político, que, como ela própria viria a esclarecer depois, nem sequer devia
nada ao programa do partido pelo qual se elegera. Os votos, o lugar, a
subvenção, o programa, tudo lhe pertencia e em exclusivo. Para sua salvação,
restava-lhe provar que tinha ao menos alguma competência para a função. Mas,
como todos já percebemos sem necessidade de mais provas, a deputada Joacine
Katar Moreira é apenas negra, feminista radical e gaga. De resto, é
absolutamente impreparada como deputada, incompetente para o trabalho
parlamentar e pateticamente errática e primária ao nível das ideias políticas.
Veio ela agora —
e por iniciativa própria, sem que nenhum dos supostos interessados tivesse
abordado o assunto — levantar a questão da “devolução do património das
ex-colónias portuguesas às suas comunidades de origem”. E isto em sede do
debate sobre o Orçamento do Estado, o que é, sem dúvida, mais uma originalidade
parlamentar da deputada. Sobre isto, começo por dizer que, para mim, Joacine
Katar Moreira é tão portuguesa como eu próprio, nem mais nem menos. Essa noção
difusa daquilo a que hoje chamamos pátria, se alguma coisa é, é o lugar onde
vivemos, onde está a nossa casa, onde temos reconhecidos os nosso direitos e
cumprimos os nossos deveres de cidadãos. E gosto de viver num país onde cada vez
mais é diversa a origem dos seus nacionais — desde que aqui eles se assumam
como portugueses, que é a contrapartida de serem reconhecidos como portugueses.
Em segundo lugar, também acho inteiramente legítimo que alguém com dupla
nacionalidade ou com nacionalidade portuguesa mas originário de um outro país,
como Joacine Katar, preste uma particular atenção, inclusive como deputada, ao
seu país de origem. O que já não acho tão justificável é que seja mais exigente
com o seu país de acolhimento do que com o seu país de origem. Joacine Katar é
originária da Guiné-Bissau, que se transformou num narco-Estado, minado por
guerras civis sem fim, golpes de Estado sucessivos e uma cleptocracia
governante que tem roubado o país e o povo para se locupletar a si própria. Ela,
que agora está preocupada com as eventuais riquezas que roubámos ao seu país de
origem, alguma vez se pronunciou sobre isto? E o mesmo em relação às outras
ex-colónias portuguesas, com cujo património desviado agora se preocupa e as
quais, com a notável excepção de Cabo Verde, seguiram todas idêntico caminho de
serem roubadas pelos seus próprios dirigentes? Quando foi, por exemplo, que
Joacine Katar levantou a voz para denunciar o continuado roubo de Angola pela
cleptocracia de José Eduardo dos Santos? É que, por mais que ela vasculhe os
museus e institutos do país, facilmente chegará à conclusão de que, em matéria
de riquezas roubadas, o que os portugueses terão roubado em 500 anos de
colonização é uma ridícula parte comparado com o que os dirigentes dessas
colónias roubaram aos seus próprios povos em menos de 50 anos de
independências.
E nem sequer
entro na discussão de comparar o que trouxemos com o que deixámos, porque seria
absurda: basta ir lá ver. Nós não pilhámos um Parténon, como os ingleses, nem
saqueámos o Egipto, como a expedição de Napoleão Bonaparte. Mesmo países cujo
passado colonial é praticamente inexistente têm um acervo de obras de arte
trazidas de África, América do Sul e Oriente incomparavelmente superior ao que
nós temos. A verdade inconveniente é esta: nós não temos praticamente nada.
Porque não havia nada a que se pudesse chamar arte para trazer e porque, ao
contrário de quase todos os outros, fomos para ficar e não para pilhar e
voltar. Joacine devia aprender mais sobre a história de Portugal.
O que os
portugueses terão roubado em 500 anos de colonização é uma ridícula parte
comparada com o que os dirigentes dessas colónias roubaram aos seus próprios
povos em menos de 50 anos de independências
Pior que tudo,
para mim, é quando na sua proposta a deputada escreve que a comissão que iria
fazer o levantamento das “obras de arte” a devolver deveria ser integrada por
membros “anti-racistas”. O que é isso de um membro anti-racista? Quem é que
está habilitado a passar certidões de anti-racismo? É a deputada Joacine Katar,
é o dirigente da SOS Racismo, Mammadou-Ba, que declarava aqui há semanas que
nenhum branco pode ser verdadeiramente anti-racista pelo simples facto de ser
branco (da mesma forma, presumo, que nenhum heterossexual pode ser
verdadeiramente anti-homofóbico pelo simples facto de ser heterossexual e
nenhum homem pode ser contra a violência de género por ser homem)? É neste
clima de intimidação, de autêntico terrorismo racial, neste ambiente em que a
gritaria arrogante de minorias sobrepostas impede um consenso alargado e
democrático sobre aquilo que nos deveria unir enquanto nação que a
extrema-direita faz e fará o seu caminho, oferecendo-se como única alternativa
nacional e consensual.
Nestes dias que
passaram, ao ver toda a esquerda diligentemente alinhada cavalgar esta querela
e sem pensar lançar-se no tiro ao boneco sobre André Ventura, não tenho dúvida
de que fez mais pela sua popularidade do que ele próprio conseguiria se o
deixassem em paz. Não aprenderam nada com a desastrada bravata de Ferro
Rodrigues e voltaram à carga — para obter o mesmo resultado. Na TV, e como era
de prever, André Ventura desfez em pedaços a argumentação de Ricardo Sá
Fernandes, deixando-o a balbuciar que a devolução das imaginárias obras de arte
às ex-colónias se inseria nas nossas melhores tradições de “multiculturalismo e
intercâmbio”, enquanto Ventura avisava o povo de que a seguir nos vão exigir
que paguemos uma indemnização pela escravatura e pelos 500 anos de
colonialismo. Adivinhem de que lado terá ficado o povo…
2 Outro assunto,
mas não muito diverso deste… Na TV também José Miguel Júdice, figura de proa
(agora retirado) da PLMJ, a sociedade de advogados no olho do furacão Isabel
dos Santos, não podia ter sido mais claro: mexam nisso, mexam, mas está lá toda
a gente — Marcelo, Costa, governador, procuradoria, bancos, Sonae, Amorim.
Enfim, todo o regime. Júdice tem razão, e é por isso que eu digo que Rui Pinto
é um preso político.
Miguel Sousa
Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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