OPINIÃO
A ladainha do
“não somos todos iguais”
Quando se olha
para aquilo que é o estado do país e para o triângulo entre sistema financeiro,
sistema político e o mundo dos grandes advogados de negócios, as indistinções
tornam-se obscenas.
João Miguel
Tavares
13 de Fevereiro
de 2020, 6:37
Uma das promessas
que fiz a mim próprio quando comecei a escrever nos jornais foi esta: nomearia
as pessoas de quem estava a falar. A opinião publicada na imprensa portuguesa é
muito dada a abstracções, generalizações e referências indirectas do tipo
tu-sabes-que-eu-sei-que tu-sabes-que-eu-sei. Sempre recusei fazer parte de tal
clube. Aquilo a que José Miguel Júdice chamou recentemente o meu “fonds de
commerce”, que me leva a distribuir “ad hominem estatutos, papéis e
reputações”, é uma opção que só traz chatices. Em Portugal não há problema
algum em falar em corrupção, lobbies, corporativismo ou privilégios de classe,
desde que não se diga que A é corrupto, B é lobista, C é corporativo ou D é um
privilegiado. Somos extremamente corajosos a fazer críticas universais, e
extremamente cobardes a fazer críticas singulares e muito concretas.
Esta postura tem
uma consequência mais grave, para além da falta de frontalidade – ela promove
uma cultura malsã que mergulha toda a gente numa sopa podre, onde todos se
parecem com todos. As generalizações promovem outras generalizações, e acabamos
enterrados na conversa do “todos os políticos são corruptos” ou do “todos os
advogados de negócios são aldrabões”. Tragicamente, os mesmos políticos ou
advogados que se fartam de protestar – e com razão – contra as generalizações,
são os mesmos políticos ou advogados que começam por não mexer uma palha para
que as generalizações sejam desfeitas, devido à tradição altamente corporativa
que existe por aqui, às vezes com cheirinho a omertà, que leva políticos ou
advogados a protegerem as costas uns dos outros. “Nós não somos todos iguais!”,
protestam eles. Mas quando esperamos que critiquem publicamente A ou B, está
quieto! Isso seria uma deslealdade e uma traição a um colega, uma tremenda
indelicadeza. Eis Portugal: extremamente bem-educado no cultivo da falta de
virtude. Todos sabem; ninguém bufa.
Se bem se
recordam, o aspecto mais curioso na resposta de José Miguel Júdice ao meu
artigo foi a necessidade que sentiu de defender publicamente Daniel Proença de
Carvalho (“um dos advogados mais brilhantes do nosso tempo”), quando eu tinha
procurado distingui-los em seu benefício, recusando que se equivalessem
enquanto advogados de negócios, e afirmando não serem farinha do mesmo saco.
Espantosamente, o que fez Júdice? Saltou para o cavalo em defesa da honra do
colega, declarou que Proença é brilhante e atirou-se orgulhosamente para dentro
do mesmo saco de farinha. Isso é notável – e muito significativo.
Claro que estes
tiques não são exclusivos de políticos ou advogados – dos médicos aos
jornalistas (ainda recentemente isso se viu no caso Flor Pedroso, com um
abaixo-assinado ridículo subscrito por inúmeros jornalistas respeitáveis),
tiques corporativistas é o que não falta por aí. Para ser justo, eles não são
apenas negativos, na medida em que permitem manter um verniz de civilidade
entre concorrentes da mesma profissão. Eu percebo isso – mas só até certo
ponto. Quando se olha para aquilo que é o estado do país e para o triângulo
entre sistema financeiro, sistema político e o mundo dos grandes advogados de
negócios, as indistinções tornam-se obscenas. Em privado, dizem “não me
confunda”; em público, dizem “magnífico colega”; e sempre que surge um caso
embaraçoso, declaram: “não somos todos iguais”. Ai não são? Então façam o favor
de separar o trigo do joio e manter a coluna direita. Fazer o mal e a
caramunha é que não.
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