quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

A ladainha do “não somos todos iguais”



OPINIÃO
A ladainha do “não somos todos iguais”

Quando se olha para aquilo que é o estado do país e para o triângulo entre sistema financeiro, sistema político e o mundo dos grandes advogados de negócios, as indistinções tornam-se obscenas.

João Miguel Tavares
13 de Fevereiro de 2020, 6:37

Uma das promessas que fiz a mim próprio quando comecei a escrever nos jornais foi esta: nomearia as pessoas de quem estava a falar. A opinião publicada na imprensa portuguesa é muito dada a abstracções, generalizações e referências indirectas do tipo tu-sabes-que-eu-sei-que tu-sabes-que-eu-sei. Sempre recusei fazer parte de tal clube. Aquilo a que José Miguel Júdice chamou recentemente o meu “fonds de commerce”, que me leva a distribuir “ad hominem estatutos, papéis e reputações”, é uma opção que só traz chatices. Em Portugal não há problema algum em falar em corrupção, lobbies, corporativismo ou privilégios de classe, desde que não se diga que A é corrupto, B é lobista, C é corporativo ou D é um privilegiado. Somos extremamente corajosos a fazer críticas universais, e extremamente cobardes a fazer críticas singulares e muito concretas.

Esta postura tem uma consequência mais grave, para além da falta de frontalidade – ela promove uma cultura malsã que mergulha toda a gente numa sopa podre, onde todos se parecem com todos. As generalizações promovem outras generalizações, e acabamos enterrados na conversa do “todos os políticos são corruptos” ou do “todos os advogados de negócios são aldrabões”. Tragicamente, os mesmos políticos ou advogados que se fartam de protestar – e com razão – contra as generalizações, são os mesmos políticos ou advogados que começam por não mexer uma palha para que as generalizações sejam desfeitas, devido à tradição altamente corporativa que existe por aqui, às vezes com cheirinho a omertà, que leva políticos ou advogados a protegerem as costas uns dos outros. “Nós não somos todos iguais!”, protestam eles. Mas quando esperamos que critiquem publicamente A ou B, está quieto! Isso seria uma deslealdade e uma traição a um colega, uma tremenda indelicadeza. Eis Portugal: extremamente bem-educado no cultivo da falta de virtude. Todos sabem; ninguém bufa.

Se bem se recordam, o aspecto mais curioso na resposta de José Miguel Júdice ao meu artigo foi a necessidade que sentiu de defender publicamente Daniel Proença de Carvalho (“um dos advogados mais brilhantes do nosso tempo”), quando eu tinha procurado distingui-los em seu benefício, recusando que se equivalessem enquanto advogados de negócios, e afirmando não serem farinha do mesmo saco. Espantosamente, o que fez Júdice? Saltou para o cavalo em defesa da honra do colega, declarou que Proença é brilhante e atirou-se orgulhosamente para dentro do mesmo saco de farinha. Isso é notável – e muito significativo.

Claro que estes tiques não são exclusivos de políticos ou advogados – dos médicos aos jornalistas (ainda recentemente isso se viu no caso Flor Pedroso, com um abaixo-assinado ridículo subscrito por inúmeros jornalistas respeitáveis), tiques corporativistas é o que não falta por aí. Para ser justo, eles não são apenas negativos, na medida em que permitem manter um verniz de civilidade entre concorrentes da mesma profissão. Eu percebo isso – mas só até certo ponto. Quando se olha para aquilo que é o estado do país e para o triângulo entre sistema financeiro, sistema político e o mundo dos grandes advogados de negócios, as indistinções tornam-se obscenas. Em privado, dizem “não me confunda”; em público, dizem “magnífico colega”; e sempre que surge um caso embaraçoso, declaram: “não somos todos iguais”. Ai não são? Então façam o favor de separar o trigo do joio e manter a coluna direita. Fazer o mal e a caramunha é que não.

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