( …) “Como ontem aqui
explicou Rui Tavares, e muito bem, milhares de cidadãos adorariam
poder pedir a fiscalização da constitucionalidade de normas que os
aborrecem – só que não podem. Não têm esse privilégio. Os
deputados têm, em função do cargo que ocupam. Ora, usar esse cargo
não para fiscalizar normas em nome do povo, mas em nome do seu
interesse particular, é uma infâmia.”
JOÃO MIGUEL TAVARES
O
regime está podre
JOÃO MIGUEL TAVARES
21/01/2016 - PÚBLICO
Mudam-se
os tempos, mudam-se as vontades. Só mesmo a falta de pudor é que
permanece.
Temos de agradecer
ao Tribunal Constitucional a amabilidade de ter divulgado o acórdão
nº3/2016, que decretou a inconstitucionalidade do corte nas
subvenções vitalícias a antigos detentores de cargos políticos,
em vésperas das eleições presidenciais. Após mais uma paupérrima
campanha eleitoral, este admirável acórdão e respectivo timing
oferecem-nos uma excelente oportunidade para reflectir sobre a
desgraça moral do regime e a incapacidade de o nosso sistema
político e constitucional encontrar respostas decentes para os
problemas que nos cercam. Da esquerda à direita, da Assembleia da
República ao Tribunal Constitucional, muito poucos escapam à
vergonha de todo este processo, enquanto mais uma monumental paulada
ético-político-jurídica no já tão torturado lombo da pátria.
Permitam-me,
contudo, um ponto prévio, para evitar o paleio populista: eu sou dos
que acham que os políticos são muito mal remunerados em Portugal,
devido à enorme desproporção entre vencimento, responsabilidade e
poder. O que acaba invariavelmente por acontecer em casos como este é
os baixos salários serem compensados com prebendas indirectas,
subsídios manhosos e lobismos de todo o tipo. Parece-me
infinitamente preferível um ordenado maior com maior número de
incompatibilidades do que um ordenado menor com privilégios e
subvenções oferecidos por debaixo da mesa.
Dito isto, vamos à
troika de poucas vergonhas. Em primeiro lugar, temos 30 deputados do
Bloco Central – entre os quais a actual candidata à presidência
Maria de Belém – a pedirem às escondidas a apreciação
constitucional de um artigo do Orçamento de Estado para 2015 que só
a eles (titulares de cargos políticos) diz respeito. Como ontem aqui
explicou Rui Tavares, e muito bem, milhares de cidadãos adorariam
poder pedir a fiscalização da constitucionalidade de normas que os
aborrecem – só que não podem. Não têm esse privilégio. Os
deputados têm, em função do cargo que ocupam. Ora, usar esse cargo
não para fiscalizar normas em nome do povo, mas em nome do seu
interesse particular, é uma infâmia.
Em segundo lugar,
somos agraciados com mais uma fundamentação delirante por parte do
Tribunal Constitucional, invocando o sacrossanto princípio da
protecção de confiança para impedir o poder executivo
legitimamente eleito de corrigir situações de privilégio que
considera injustas e reequilibrar as contas do Estado. Nas mãos de
juízes aos quais parecem ter sido extirpados os sentidos da
prudência e da ponderação (sete em 13, neste caso), é evidente
que o princípio da protecção de confiança dará sempre para
impedir qualquer lei de alterar qualquer direito que seja considerado
“adquirido” – ele é uma monumental estátua ao statu quo que
deveria substituir a de Pombal na rotunda do Marquês, já que
estamos todos condenados, pela Maldição do Palácio Ratton, a andar
eternamente à roda do velho regime, sem nunca sair da sua
insustentabilidade.
E em terceiro lugar
– cereja no bolo da desvergonha – temos a reacção furibunda de
políticos de esquerda como Marisa Matias ou Catarina Martins ao novo
acórdão do Tribunal Constitucional. Escasso tempo atrás, quando as
decisões do TC invocavam exactamente o mesmo princípio para impedir
cortes estruturais na despesa pública, essas decisões eram
absolutamente sagradas. Agora já não são. Mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades. Só mesmo a falta de pudor é que permanece.
Assim não vamos longe.
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