“Ms.
Merkel Invited Me”
A
Europa multicultural e a reversão do Maio de 68
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 16/01/2016 - PÚBLICO
Se
não for bem-sucedida, a Europa irá regressar a valores
tradicionais, imbuídos de tonalidades não europeias.
1. Maio de 1968 em
Paris. Revolução política e cultural. Culminar do processo de
transformação social iniciado na Revolução Francesa de 1789. “Il
est interdit d’interdire” / É proibido proibir. O slogan do
humorista e actor Jean Yanne captou o seu espírito. Os
acontecimentos conquistaram um lugar mítico na história europeia e
ocidental do último meio século. Marcaram a irrupção dos valores
da actual contemporaneidade. Igualdade de género, liberdade sexual,
relações fora casamento, refutação dos valores tradicionais e
patriarcais, contestação da autoridade estabelecida, nas estruturas
estaduais, sociais e familiares. Contestação à opressão do
capitalismo, do imperialismo e do colonialismo sobre os povos. Para
as mulheres, a transformação foi particularmente radical. “La
beauté est dans la rue” / A beleza está na rua, era o slogan de
um dos cartazes mais emblemáticos do Maio de 68. A mulher
(Marianne), já não levantava a bandeira sobre a barricada, como na
famosa pintura de Eugène Delacroix, em 1830, “A liberdade guiando
o povo”. Agora, lançava paralelos contra as forças da ordem, como
os homens que protestavam nas ruas. Agora, era a conquista feminina
do direito de lutar ao lado dos homens, ou, de forma mais abrangente,
de estar em plena igualdade com estes. Vitória da emancipação
feminina. Vitória da emancipação dos corpos. Vitória da
transformação cultural permanente. Os jovens do Maio de 68 tinham
derrotado os valores ancestrais dos seus pais, tornando-se
radicalmente livres. Assim lhes parecia no final dos anos 1960.
2. 8 de Janeiro de
2015, Colónia, Alemanha. “Respektiert uns! Wir sind kein Freiwild,
selbst wenn wit nackt sind!!!” / "Respeite-nos! Não somos
jogo limpo, mesmo se estamos nuas!!!” O slogan (tradução livre),
era exibido pela artista suíça, Milo Moiré. Ao contrário das
feministas do Maio de 68, não estava na rua para fazer uma revolução
cultural e difundir novos valores, ou atirar paralelos à polícia
para afirmar a igualdade com os homens. Protestava, publicamente nua,
na praça em frente à imponente catedral de Colónia, após os
incidentes da passagem de ano de 2015/2016. Motivo: solidariedade com
as dezenas de mulheres molestadas por grupos de homens jovens,
oriundos de África e do Médio Oriente, na noite de passagem de ano.
Na actual Europa, liberal nos costumes e de valores seculares, Milo
Moiré simboliza a luta pelos valores femininos conquistados nas
últimas décadas. Para além dos incidentes do foro criminal, o caso
poderia servir para exemplificar uma clássica discussão sobre um
conflito de valores éticos, em contexto multicultural. Numa cultura
(europeia), o sexismo é objecto de censura social e sancionado
legalmente. Noutras culturas (não europeias), o sexismo tem um
estatuto de normalidade social e está conforme os valores éticos
dominantes sobre o comportamento masculino. Há superioridade dos
valores de uma cultura sobre as outras? Todas as culturas estão num
plano igualitário, os seus valores apenas são diferentes? Se a
resposta é esta última, como se resolve o problema da coexistência,
no mesmo espaço público? Importa sublinhar: no meio século após o
Maio de 68, ocorreram transformações culturais profundas, e, sem
qualquer dúvida, a um ritmo mais rápido do que em qualquer outra
época da história. Mas ocorreram, essencialmente, na Europa, no
Ocidente, e nas partes do mundo que absorveram, de alguma forma, os
seus valores. No passado, eram mundos separados. Hoje, estão
frequentemente em contacto e intersectam-se, no mesmo espaço
público, devido à globalização.
3. Afastemos o nosso
eurocentrismo. Em grande parte do mundo as populações permanecem
essencialmente imbuídas de valores tradicionais. Estes continuam a
ser transmitidos, de geração em geração, como sempre foram, ao
longo de séculos e séculos. Tal como nós europeus, não há muitas
décadas atrás, também o fazíamos. O Portugal dos anos 1960 e 1970
reflectia ainda essa realidade (numa matriz cristã). Mantém-se
assim, hoje, na generalidade do Sul e Leste do Mediterrâneo (numa
matriz islâmica). A questão é que, num mundo globalizado e de
importantes movimentos migratórios — de Sul para Norte —, isso
tem implicações profundas no estilo de vida das sociedades, na sua
organização, na continuidade dos valores. Os migrantes ou
refugiados podem deixar a sua família, amigos e bens nos países de
origem. Fazem-no, frequentemente, em circunstâncias épicas e
trágicas. Mas trazem a sua cultura e valores consigo. É humano. Não
são meros homo economicus da máquina do capitalismo (neo)liberal.
Trazem uma diferenciação clara do papel dos sexos na família e na
sociedade; trazem a autoridade familiar e do grupo étnico e/ou
religioso sobre o indivíduo; trazem a tendencial restrição do
papel da mulher à família e aos filhos; trazem o confinar da
sexualidade feminina ao casamento; trazem o estatuo de supremacia do
ancião sobre o jovem. Estes valores, de um modo geral, impregnam a
sua identidade e estão profundamente ancorados no religioso e no
transcendental. Não é surpreendente. Em nenhuma cultura
tradicional, seja europeia, africana, asiática, ou qualquer outra,
se desenvolveram os valores seculares e liberais europeus, da forma
como os conhecemos na actual contemporaneidade. Não foi uma evolução
espontânea, nem harmoniosa que os gerou. Afirmaram-se após
revoluções violentas e rupturas culturais profundas, iniciadas nos
séculos XVII e XVIII europeus.
4. Os valores
liberais e seculares do Maio de 68 sempre tiveram ferozes opositores
dentro da Europa. Pela sua própria visão do mundo, os sectores
políticos, sociais e religiosos mais tradicionalistas e
conservadores, estão, desde o início, em oposição a estes. Sempre
os contestaram e tentarem reverter. À excepção do capitalismo
(neo)liberal — que se apropriou, com sucesso, destes,
incorporando-os na lógica de mercado —, a oposição foi, mais
tarde ou mais cedo, sempre superada. A dinâmica sociológica e
política impôs a sua difusão e absorção pelas gerações
pós-Maio de 68. Mas, desde essa mesma época, germina uma outra
dinâmica tradicionalista e conservadora que passou, até agora,
quase despercebida. Tem origem, sobretudo, em populações não
europeias e está associada a fenómenos migratórios. Até há pouco
tempo, não tinha visibilidade, não ocupava o espaço público.
Estava remetida ao gueto. Era ignorada. Nos últimos anos, em parte
pela sua maior dimensão, em parte pelos conflitos do mundo
árabe-islâmico envolvente que se projectam no interior da Europa —
os fluxos de refugiados são um exemplo óbvio —, ganhou
visibilidade. Esta acentua-se pela quebra demográfica e
envelhecimento, sem precedentes, das populações nativas europeias.
O contraste é nítido. Populações demograficamente dinâmicas,
muito jovens, com predominância masculina, mas imbuídas de valores
tradicionalistas e convicções transcendentais, são uma improvável
continuidade geracional da secularização e emancipação feminina.
Uma questão desconcertante vem à mente: serão os tradicionalistas
religiosos a herdar a terra? (Ver o livro de Eric Kauffman, “Shall
the Religious Inherit the Earth? Demography and Politics in the
Twenty-First Century”, Profile Books 2011).
5. Há uma ilação
que vale a pena tirar dos acontecimentos da última passagem de ano
em Colónia, na Alemanha. A continuidade futura de uma Europa
democrática, liberal tolerante nos costumes, enfrenta um desafio
complexo. Pelos seus valores intrínsecos, deve tolerar a diferença,
deve ser uma sociedade plural e aberta. Tem necessariamente de
afastar os radicalismos de extrema-direita e xenófobos que se
alimentam e prosperam com incidentes como esse. Mas não deve evitar
colocar, a si própria, um problema delicado, o qual tem sido
iludido. Não é a diversidade cultural, em si mesma, que o coloca.
Esta, por princípio, é boa e pode ser estimulante do progresso
social e humano. É a crescente coexistência, no mesmo espaço
público, de populações imbuídas de visões do mundo e concepções
éticas muito diferentes, nos valores estruturantes da sua
identidade. De um lado, uma cultura secular e liberal nos costumes,
que perdeu conexão com o transcendental e promove a transformação
social como uma evolução humana. Do outro lado, culturas
tradicionalistas, imbuídas de convicções transcendentais e valores
religiosos, vistos como intemporais. Apreciam o progresso tecnológico
e o bem-estar material, mas convivem mal com a desconstrução dos
valores religiosos e éticos tradicionais, que os europeus apontam
como caminho para si e para a humanidade — herança do Iluminismo e
do Maio de 68. Paradoxalmente, no contexto multicultural actual da
Europa, a abertura ao outro, pode levar a ter, cada vez mais,
população desfasada, e contestatária, dos valores seculares e
liberais. Não é uma inevitabilidade, mas é uma possibilidade real.
A questão decisiva vai jogar-se na capacidade de integração e
socialização nos valores da contemporaneidade europeia. Se não for
bem-sucedida, a Europa irá regressar a valores tradicionais,
imbuídos de tonalidades não europeias. Os emancipados do Maio de 68
serão os primeiros a sentir essa possível transformação
regressiva.
Investigador
Sem comentários:
Enviar um comentário