Quem
disse que ia ser fácil?
TERESA DE SOUSA
31/01/2016 - PÚBLICO
Não
podemos abdicar da nossa capacidade negocial, nem do dever de
contrariar a destruição económica e social que até os relatórios
de instituições imparciais admitem.
1. Por estes dias,
lembrei-me de uma frase repetida durante a crise estudantil de 69
pela esquerda mais radical para desafiar os estudantes a não ter
medo de combater a ditadura e a guerra colonial e que era qualquer
coisa do género: “Rejeitem o polícia que o fascismo vos enfiou
pela garganta abaixo.” A frase veio-me à memória na tentativa
desesperada de entender o debate em torno das linhas gerais do
Orçamento que o Governo enviou para Bruxelas. As críticas são
quase todas no mesmo sentido, ou seja, que temos de engolir as regras
de Bruxelas e de Berlim, porque não temos alternativa que não
indisponha os mercados, as agências de rating, ou, em última
instância, a chanceler. Também nós engolimos o mercado, temos um
economista dentro de nós a fazer contas com um qualquer powerpoint
construído nos cursos de Gestão das universidades mais
prestigiadas.
Reconhecendo que há
razão nalgumas das críticas a este Orçamento, a minha primeira
perplexidade é simples: António Costa apresentou-se aos eleitores
defendendo uma política diferente da receita única que vigorou
desde o início da crise do euro em Portugal e noutros países do
Sul. Seria impossível esperar que elaborasse um Orçamento de mera
continuidade do anterior Governo. Mas, quando o apresentou, caiu-lhe
toda a gente em cima: do Conselho de Finanças Públicas (ainda que
num tom moderado) à UTAO, passando pelas primeiras reacções da
Comissão e por quase todos os comentadores de todas as origens, como
se fosse uma grande surpresa. Dir-me-ão que não podemos riscar os
mercados do mapa (ou do estômago). Nem queremos, mas a outra
verdade, igualmente importante, diz-nos que, sem soluções mais
flexíveis, a Europa não sobreviverá politicamente como
infelizmente vemos todos os dias. Mesmo que as eleições
presidenciais tenham revelado que somos uma excepção no mar alto do
populismo e da xenofobia europeia, não estamos imunes ao discurso
populista (como também se viu nessas eleições, e não estou a
falar de Tino de Rans ou de Paulo Morais), nem às radicalizações
perigosas. As negociações com Bruxelas vão ser certamente muito
duras. Têm sido sempre, mesmo no anterior Governo, cujo programa
estava em sintonia com a receita da troika, incluindo a ideia de
punição. As metas para o défice falharam várias vezes, sendo
mesmo um dos argumentos da carta de demissão de Vítor Gaspar.
2. Mas há outra
questão a que António Costa não pode deixar de prestar muita
atenção. A sua ideia parece ser fazer rapidamente as concessões
prometidas ao Bloco e ao PCP, para depois passar a funcionar com base
no programa do seu Governo (no qual, por exemplo, a reposição dos
salários levava dois anos). A questão é saber se o preço a pagar
não será demasiado alto. As presidenciais foram um teste nesse
sentido. O PCP viu-se reduzido a pó. A questão é saber por que
razão teimou em ter um candidato próprio. Como me dizia quase todos
os dias uma amiga que vive no Barreiro e que passa frequentemente à
porta da sede dos comunistas, as conversas de rua sobre a necessidade
de votar Nóvoa para impedir a vitória de Marcelo eram às claras. A
tentação do PCP de levantar as pontes levadiças e se entrincheirar
no castelo pode vingar. Mas isso seria o princípio do fim, porque
deixaria de ter qualquer influência na vida do país e arcaria com
as culpas de ter derrotado o único governo que lhe permitiu essa
possibilidade. A greve da função pública no dia 29 mostra até que
ponto o PCP está dependente dos que se julgam com todos os direitos,
deixando de lado os que sofrem mais com a crise: os precários ou os
desempregados. A ideia das 35 horas visa esta base de apoio, mas põe
em causa uma das promessas fundamentais do PS de acabar com os dois
países de que fala Marcelo: público contra privado, velhos contra
novos.
O Bloco não é um
problema menor, embora pareça. Está deslumbrado consigo próprio,
sonha com um destino igual ao do Podemos e pode cair na tentação de
sobreavaliar a sua força. Que o PCP defenda a soberania nacional
contra Bruxelas faz parte do seu programa ideológico. Que o Bloco
enverede por um discurso populista e “patriótico” contra
Bruxelas, como temos ouvido nos últimos dias, não é um bom sinal
para um governo que defende a Europa, com todas as suas vantagens e
dificuldades. É por aqui que passa uma linha divisória essencial,
na qual o PS não pode ceder nem um milímetro. Mas é também por
isso que não é possível continuar a aceitar, sem pedir contas a
ninguém, que, de vez em quando, entidades tão respeitáveis como o
Tribunal de Contas Europeu ou o FMI, publiquem relatórios concluindo
que os programas de ajustamento estavam mal feitos, não levavam em
conta a realidade e destruíram mais do que seria necessário. Quer
dizer, destruíram a vida de pessoas. “Olha, enganámo-nos no
efeito sobre o desemprego em Portugal. Que maçada.” Os jornais
resumem-nos e no dia seguinte tudo fica na mesma. Não há nada de
mais revoltante.
3. Enfim, vale a
pena olhar para outros exemplos que nos são próximos, para entender
até que ponto a austeridade versão Berlim começa a ser posta em
causa de uma forma mais sistemática por outros governos (de direita
e de esquerda). Matteo Renzi foi na sexta-feira a Berlim com uma
agenda reivindicativa pesada, da energia aos refugiados. Em Novembro,
travou um braço-de-ferro com Bruxelas por causa do Orçamento, cuja
medida essencial é uma acentuada redução de impostos para
estimular a economia. O seu problema do défice é diferente do
nosso. Já está abaixo dos 3 por cento e o que quer é uma curva de
redução mais lenta (2,6 para 2,2 e não para 1,8, como queria a
Comissão). Tem a sorte de liderar a terceira economia da zona euro e
joga com a ascensão dos populismos, que ele próprio enfrenta, para
fazer Berlim ceder: “Se não me ajudar, olhe com quem vai ter de
lidar.” A sua outra mensagem é: “Se se quer uma estratégia
europeia para resolver a questão dos refugiados [leia-se Merkel],
então não chega telefonar para Hollande e para a Comissão
Europeia, para que eu leia a notícia na imprensa.” Com tudo isto,
consegue manter uma relação cordial com Merkel. O seu problema é
que a Itália começou tarde (bem mais tarde do que nós) a fazer as
reformas para combater o seu maior problema: a competitividade. Em
Espanha, Rajoy também não aceitou as metas impostas por Bruxelas,
que, aliás, raramente cumpriu, com argumentos que têm um fundamento
sólido: o crescimento invejável da economia e a queda acentuada do
desemprego. O problema agora está naquilo a que as agências chamam
“risco político”: a paisagem espanhola mudou radicalmente nas
últimas eleições e os partidos do sistema (PP e PSOE) ainda não
sabem como lidar com esta nova realidade. Na França, a história é
outra. Antes dos atentados terroristas, Paris já tinha negociado a
descida do défice abaixo dos 3 por cento apenas em 2017. Agora, já
disse que o financiamento da luta contra o terrorismo afectará o
cumprimento dessas metas. Mas talvez o mais importante acontecimento
que hoje determina o futuro da Europa seja a luta que a chanceler
trava em torno da identidade alemã e que todos gostaríamos muito
que ganhasse, porque um cenário diferente seria bastante assustador.
António Costa visita-a na próxima quinta-feira. Tem aqui uma boa
matéria para uma aproximação. Não somos a Itália, nem a Espanha,
nem a França, é verdade. Mas não podemos abdicar da nossa
capacidade negocial, nem do dever de contrariar a destruição
económica e social que até os relatórios de instituições
imparciais admitem. Tem de haver uma forma.
Jornalista
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